The Project Gutenberg EBook of Ubirajara, by José Alencar This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Ubirajara Lenda tupi Author: José Alencar Release Date: January 5, 2012 [EBook #38496] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UBIRAJARA *** Produced by Júlio Reis, Fernanda Brojo, Manuela Alves, Rory OConor and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
LENDA TUPI
FRANCISCO ALVES & C.a
RIO DE JANEIRO
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S. PAULO
65, Rua de S. Bento, 65
BELO HORIZONTE
1055, Rua da Baía, 1055
AILLAUD, ALVES & C.a
PARIS
96, Boulevard Montparnasse
(Livraria Aillaud)
AILLAUD, ALVES, BASTOS & C.a
LISBOA
73, Rua Garrett, 75
(Livraria Bertrand)
1911
Composto e impresso na Tipografia JOSÉ BASTOS
Rua da Alegria, 100—Lisboa
I | —O caçador | 5 |
II | —O guerreiro | 15 |
III | —A noiva | 24 |
IV | —A hospitalidade | 37 |
V | —Servo do amor | 51 |
VI | —O combate nupcial | 61 |
VII | —A guerra | 74 |
VIII | —A batalha | 85 |
IX | —União dos arcos | 92 |
Notas | 101 |
Pela marjem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.
O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.
Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.
Jaguarê não vê o timido campeiro; seus olhos buscam um inimigo capaz de rezistir-lhe ao braço robusto.
O rujido do jaguar abala a floresta; mas o caça[6]dor tambem despreza o jaguar, que já cançou de vencer.
Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fojem espavoridos quando de lonje o presentem.
Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.
Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela gloria do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é precizo que o joven caçador conquiste esse titulo por uma grande façanha.
Por isso deixou a taba dos seus e a prezença de Jandira, a virjem formoza que lhe guarda o seio de espoza.
Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador através das campinas, e tres vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.
A sombra vai decendo da serra pelo vale e a tristeza cae da fronte sobre a face de Jaguarê.
O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.
Nenhum guerreiro brandiu jámais essa arma terrivel, que sua mão primeiro fabricou.
Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.
O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer lonje nas cavernas da montanha.
Respondeu o ronco da sucurí na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao dezafio do caçador.
Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.
A copa frondoza ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até á raiz.
O caçador repouza á sombra de sua lança.
Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.
Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexivel.
Ergue-se Jaguarê.
Seu olhar ardente voou, sofrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.
Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.
Pela faxa côr de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos Tocantins, senhora do grande rio, cujas marjens elle pizava.
A liga vermelha que cinjia a perna esbelta da estranjeira dizia que nenhum guerreiro jámais possuira a virjem formoza.
A corça veiu cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da joven caçadora que a seguia de perto.
A virjem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos campos do Taari e da qual os pajés tinham dado noticia.
—Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pizas os campos dos Tocantins como[8] hospede, bem vindo sejas; mas se vens como inimigo, foje, para que tua mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.
—Virjem dos Tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle piza os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prizioneira. Não que vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que elle espera.
—Se o veado te der a sua lijeireza, joven guerreiro, elle não te servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.
A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ella se arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapir.
Mas a virjem dos Tocantins corria como a nandú no dezerto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.
Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do assaí a faxa que flutuava ao sopro do vento.
—A filha dos Tocantins tem no pé as azas do beija-flôr; mas a seta de Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virjem das florestas; tua formozura venceu o impeto de meu braço e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.
—Eu sou Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação Tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por espoza. Vem comigo, guerreiro araguaia; excede aos outros no trabalho e na constancia, e tu romperás a liga de Arací na proxima lua do amor.
—Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais, onde Jandira lhe guarda o seio de espoza, para ser escravo da virjem. Elle vem com[9]bater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna á taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os dezafia ao combate.
—Arací vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ella guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virjem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.
A virjem disse e dezapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo lijeiro da formoza caçadora, como o guachimim que rasteja a zabelê.
Quando ella dezapareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.
Do outro lado da campina assoma um guerreiro.
Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.
É um guerreiro tocantim. De lonje avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.
As duas nações não estão em guerra; mas sem quebra da fé póde um guerreiro cansado do longo repouzo oferecer a outro guerreiro combate leal.
Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensajeira do dezafio.
Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.
Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.
—Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de lonje em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama de caçador; elle quer um nome de guerra, que diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virjem de Jaguarê.
—O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente, guerreiro chefe da terrivel nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Ha tres luas, desde que fujiram espavoridos os barbaros Tapuias, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.
—Jaguarê agradece a Tupan que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da terrivel nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos seus e o terror das outras nações.
Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.
Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra outro brandindo o tacape.
Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuozas no remoinho da Itaoca.
Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para bater de novo.
Os animais que passavam na floresta fujiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.
Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.
—O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe reziste. Como o braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.
—Se tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria o seu caminho. Mas tu és a giboia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.
Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cinjiu os lombos do guerreiro.
Cada um dos campeões pôz na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.
Ambos, porém, ficaram imoveis. Eram dois jatobás que naceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.
Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem ajital-os; e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.
Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os, pensando que eram as almas de dois guerreiros prezos no abraço da morte.
Já a sombra se desdobrava pelo vale fóra e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.
Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.
Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.
—Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem rezista a seu braço. É precizo que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.
—Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.
Disse, e, arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas, caminhou outra vez para Pojucan.
—Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue[13] ella vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.
Pojucan repeliu a lança que o joven caçador lhe aprezentára.
—Jámais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario dezarmado; nem Pojucan preciza da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.
—O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejal-a.
O chefe tocantim cruzou os braços.
—Toma a lança, Pojucan, se não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará dezarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande Camacan.
O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que lhe travou dos pulsos e outra vez os dois campeões ficaram imoveis.
A noite veiu achal-os na mesma pozição. Tres vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o outro.
Então Pojucan disse:
—Guerreiro araguaia, é precizo acabar o com[14]bate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á marjem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.
Assim fizeram os dois campeões. Chegados á marjem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucan.
O guerreiro chefe enrista desdenhozamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vitima.
—Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já, se quizesse, elle te houvera ferido com tua propria mão.
—Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucan te concederá a vida, e te levará cativo á taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.
—Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.
Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodára e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.
Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê de um salto calcou a mão[15] direita sobre o hombro esquerdo do vencido e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:
—Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes delle.
—Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucan sofra mais um instante a vergonha de sua derrota.
—Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguaias para narrar meu valor. A fama de Jaguarê preciza de um prizioneiro como o grande Pojucan na festa da vitoria.
—Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que, se tua arma traiçoeira me feriu o peito, o suplicio não vencerá a constancia do varão tocantim que sabe afrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança dos araguaias.
Retumba a festa na taba dos araguaias.
As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.
Toda a tarde o trocano reboou chamando os[16] guerreiros das outras tabas á grande taba do chefe.
Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos araguaias.
No fundo da ocara prezide o conselho dos anciãos, que decide da paz ou da guerra, e governa a valente nação.
Os anciãos, sentados no longo giráu, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que elles ensinaram a combater, e têm saudades da passada gloria.
Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.
É a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ouza disputal-a.
Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencivel tacape, elle dirije a festa.
De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem; primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por ultimo os moços guerreiros.
Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.
Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.
Todos invejam a gloria de Jaguarê que hontem era o primeiro entre elles, e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros.
Por detraz da estacada apinham-se as mulheres,[17] que segundo o rito patrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.
De lonje acompanham silenciozas com os olhos, as velhas aos filhos, as espozas aos seus guerreiros, e as virjens aos noivos.
Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ouzam murmurar uma palavra.
Entre ellas está Jandira, a doce virjem, cujos negros olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.
Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao joven caçador, para ter a felicidade de servil-o como escrava na paz, e acompanhal-o como espoza ao combate.
No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.
Defronte delle, Pojucan, no corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.
Camacan troou a inubia para ordenar silencio e o filho começou:
—Guerreiros araguaias, ouvi a minha historia de guerra.
«Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu para conquistar um nome famozo.
«Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as aguas sem fim, e Jaguarê disse:
«O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; elle será a fama do guerreiro araguaia que atravessará as nuvens e subirá ao céu.
«Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por elle.
«O sol despediu-se e voltou; uma, duas, tres vezes. No ultimo sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.
«Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupan enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?
«Elle aí está diante de vós.
«É o grande Pojucan, o feroz matador de gente, chefe da tribu mais valente da poderoza nação dos tocantins, senhores do grande rio.
«Vós que o tendes aqui prezente, vêde como é terrivel o seu aspeto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.
«O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratan que brotou no rochedo e creceu.
«Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão; e foi obrigado a despedaçal-o.
«Os braços de Pojucan, quando elle os estende na luta, não ha quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.
«Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacan, o póde abalar.
«Pojucan era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até áquelle momento.
«Foi este, guerreiros araguaias, o heróe que ofereceu combate ao filho de Camacan; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno de seu valor.
«Elle vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguem duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucan.»
O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador á multidão dos guerreiros; mas nenhum ouzou aceitar o dezafio.
Pojucan alçou a mão em sinal de que dezejava falar; todos escutaram com respeito o heróe, ainda maior na desgraça.
—Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucan, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.
«Pojucan, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jámais encontrou guerreiro que rezistisse á força de seu braço invencivel.
«Mas Tupan, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucan, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pizou a terra.
«Eu que senti o impeto de sua corajem, posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderozo.
«Foi alguma virjem araguaia que vagando pela floresta encontrou Pojucan, e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.
«Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que dece das nuvens.»
Calou-se Pojucan; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:
«Quando a sombra começava a decer da crista da montanha, Pojucan e Jaguarê caminharam um contra o outro.
«Toda a noite combateram. O sol nacendo veiu[20] achal-os ainda na peleja, como os deixára; nem vencidos, nem vencedores.
«Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.
«Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.
«Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.
«Tres vezes seu punho robusto a brandiu, e tres vezes ella escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.
«Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.
«Elle caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucan, o feroz matador de gente.
«E Jaguarê brandindo a arma da vitoria bradou:
«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupan.
«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrivel que tem por arma uma serpente.»
O trocano ribombou, derramando lonje pela amplidão dos vales e pelos écos das montanhas a pocema do triunfo.
Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.
Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor clamando:
—Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucan, o maior guerreiro da nação tocantim.
«Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão nas armas e te aclamam forte entre os fortes.
«Os cantores celebrarão teu nome como os mais famozos da nação araguaia e Camacan terá a gloria de chamar-se pai de Ubirajara, como foi gloria para Jaguarê ser filho de Camacan.»
Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacan, o grande chefe dos araguaias.
De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insignia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.
O arco era de ubiratan, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.
Os mais possantes varões da nação araguaia a custo empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para disparar a seta.
Era Camacan, o chefe dos chefes, que dirijia na guerra os guerreiros araguaias.
Assim falou o ancião:
—Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacan o conquistou no dia em que escolheu por espoza Jaçanan, a virjem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apezar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ouzaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua audacia. Mas Tupan ordena que o ancião se curve para a[22] terra até dezabar como o tronco carcomido, e que o mancebo se eleve para o céu como a arvore altaneira. Camacan revive em ti; a gloria de ser o maior guerreiro crece com a gloria de ter gerado um guerreiro ainda maior do que elle.
Ubirajara tomou o arco que lhe aprezentava o pai e disse:
—Camacan, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a gloria de Jaguarê bastava que elle se mostrasse teu filho no valor como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o ha de conquistar pela sua pujança.
Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:
—O guerreiro que ouze empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputal-o a Ubirajara.
Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.
O trocano reboou de novo, e no meio da pocema de triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:
—Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.
Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.
Era a primeira seta, mensajeira do chefe, que levava ás nuvens a fama de Ubirajara.
Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes: a do velho Camacan, que trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o pai na robustez dos anos.
Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome, repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.
Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde os tempos remotos em que os projenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.
Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vazos cheios do generozo cauim e aprezentaram as taças aos guerreiros.
Jandira suspirou; ella era virjem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.
Sentiu não ser já espoza, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ella fabricado, a taça de seu heróe e senhor.
O guincho agoureiro da inhúma resoava na mata, quando começou a dansa guerreira que durou até perto da alvorada.
Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.
Seu canto foi o primeiro que saudou o nacer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.
A doce filha de Majé saltou da rêde que embalára os sonhos castos da virjem, e despediu-se della como a jaçanan que deixa a moita para habitar o ninho do amor.
A virjem tocantim acreditava ter dormido a ultima noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do espozo.
O joven caçador que a amava, Jaguarê, fôra aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros o chefe da nação.
Como guerreiro elle póde tomar uma espoza; e como chefe pertence-lhe a virjem de sua escolha, entre as mais formozas da taba.
Ainda que a virjem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a dezeja, a vontade de Tupan é que lhe pertença.
Tupan assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.
Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o joven caçador a quem amava.
Ella o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, ha de vir buscal-a.
Então a virjem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rêde da espoza.
Lijeira e contente corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e se unje com o oleo fragrante do sassafraz.
Ella quer que o destemido guerreiro ache seu amor saborozo como o vinho que espumá na taça, e ferve nas veias.
Tornando á cabana, perfumou de beijoim a larga rêde que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.
Essa rêde tinha duas vezes o tamanho de sua rêde de virjem, porque era a rêde do cazamento em que devia receber o espozo.
Depois arrumou no urú a louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar á sua nova cabana.
Quando terminou todos os preparativos, encostou-se á porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.
Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da serra.
A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe afagára os sonhos da noite fujia agora da alma de Jandira.
Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.
No mais escuro da mata vaga o chefe dos araguaias.
Seus olhos fojem á luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imajem que traz na lembrança.
Á noite quando o guerreiro dormia em sua rêde solitaria, Arací, a linda virjem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:
—Jaguarê, joven caçador, tu dormes descansado emquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virjem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.
Elle erguera-se para seguil-a; mas a virjem formoza desferiu a corrida veloz através da campina e dezapareceu na floresta.
Neste ponto do sonho o guerreiro acordára.
Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lagrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Arací, a filha da luz.
A jurití arrolhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz mavioza da virjem do sol.
O guerreiro tornou á rêde, esperando achar ali outra vez o sonho que vizitára sua alma; porém o sono fujira de seus olhos.
Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra propicia á saudade.
Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.
É assim que os coqueiros, imoveis na praia, inclinam para o nacente seu verde cocar.
Ubirajara ouviu o rumor de um passo lijeiro através da mata; de lonje conheceu Jandira que o procurava.
A doce virjem achára á porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.
—Que máu sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que elle se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera.
—A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virjem.
—A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro, o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ella fabricará em seus labios os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ella derramará na alma do espozo.
—Filha de Majé, doce virjem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma espoza; nem elle sabe ainda qual o seio que Tupan destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.
O labio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.
A virjem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se della, e que de todo o perderia se o não defendesse.
Então escondeu a dôr no fundo da alma e chamou o rizo a seus labios, a alegria a seus olhos.
Ella sabia que os guerreiros amam a flôr da formozura, como a folhajem da arvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virjem.
—Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezes Jandira que outr'ora escolheste para tua noiva. Se[28] então ella era formoza a teus olhos, mais formoza se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos negros que arrastam no chão; ella os entrançará com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te falavam, ella os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanan. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que bebas nella o contentamento.
Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os labios mudos do guerreiro não se abriram.
—Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flôr no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos, que te pertencem, ella os nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciãos, depois de Camacan. Seus braços que outr'ora querias para tua cintura, não servirão unicamente para te abraçarem, mas tambem para te servirem. Tua espoza te acompanhará por toda a parte, na taba, como no campo do combate; ella cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborozas iguarias para seu guerreiro, e fabricará para elle o vinho, que é a alma da festa.
—Jandira é a mais bela das virjens araguaias. Seu amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara não podia achar para si uma espoza mais fiel, nem para seus filhos outra mãi tão fecunda. Mas a noite deceu em sua alma. Só a estrela do dia póde restituir-lhe a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha olhos para a sua formozura.
Pojucan sentou-se pensativo á porta da cabana.
O semblante, sempre grave, como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.
A noite que foje da terra, vencida pelo sol, parece recolher-se na alma do chefe tocantim.
Não é sua ferida que o faz sofrer. O balsamo suave da embaiba sára rapidamente os golpes mais profundos; e os varões tocantins aprendem desde o berço a desprezar a dôr.
É em seu coração de guerreiro, que Pojucan sente as garras do Anhanga.
O revez de ser vencido e cair prizioneiro, elle o suporta como o varão forte que viu prostrados por Aresqui no campo da batalha os mais terriveis guerreiros.
A grandeza do vencedor o consola; resta-lhe ainda a gloria de ter rezistido a um braço, como o de Ubirajara, grande chefe dos araguaias.
Mas elle esperava que depois de haver ornado com sua prezença a festa do triunfo, o vencedor fosse generozo, e lhe concedesse a honra do sacrificio.
É o temor de que Ubirajara lhe recuze uma morte glorioza e o retenha cativo, que nesse momento acabrunha o chefe dos tocantins.
Elle, um guerreiro livre que pizára outr'ora como senhor aquelles campos, reduzido á condição de escravo?
Elle, um varão chefe que tinha na obediencia de seu arco mais de mil guerreiros valentes, obrigado a reconhecer um dono?
Elle, que afrontava a cólera de Tupan, quando o deus irado rujia do céu, curvar-se ao aceno de um homem, fosse embora o mais pujante dos filhos da terra?
Pojucan estremecia quando se lembrava que podia ser condenado a tão grande humilhação.
Em seu terror promovia o passo, com o impeto de fujir para sempre da taba dos araguaias, onde o ameaçava aquella vergonha.
Mas uma força invencivel atava-lhe a vontade. Elle não se pertencia desde o momento em que Ubirajara lhe calcou a mão direita no hombro.
Esse era o sinal da conquista, que prendia o vencido ao vencedor; aquelle que violasse a lei da guerra, perderia para sempre o nobre titulo de guerreiro.
O desprezo do inimigo o acompanharia aos seus campos nativos; e a taba de seus irmãos não se abriria para o fujitivo que houvesse dezhonrado o nome de sua nação.
Por isso na cabana solitaria, Pojucan está mais guardado do que se o cercasse a multidão dos guerreiros araguaias.
Véla elle proprio em si, porque véla em sua fama.
Póde Ubirajara esquecel-o, que na volta o encontrará ali onde o deixou.
Nada o arrancará da cabana; nem a necessidade de buscar o alimento para o corpo.
Bem vinda será a fome, se durar tanto que prostre seu corpo robusto, e o entregue ao seio da terra, onde o guerreiro dorme o sono da gloria.
Além rompe da selva Ubirajara, que se encaminha para a cabana com o passo rapido.
Segue-o de perto Jandira, como a gentil corça acompanha o caçador, que lhe roubou o companheiro.
Descobrindo o chefe dos araguaias, Pojucan encerrou a tristeza dentro de sua alma;[31] e chamou ao rosto a altivez dos grandes guerreiros.
O chefe tocantim não queria que seu vencedor se regozijasse de ter-lhe abatido o animo inflexivel.
Quando Ubirajara se aproximou da cabana, Pojucan tomou-lhe o passo.
—Ubirajara, senhor da lança, grande chefe da nação araguaia, não confessaste tu diante dos anciãos das tabas e de todos os teus guerreiros, que Pojucan era o varão mais forte e o mais terrivel no combate, que o sol tinha visto até o momento de ser vencido por ti?
—Ubirajara o disse. É a voz da nação araguaia.
—Desde que tu cruzaste comigo a seta do dezafio até este momento, Pojucan, guerreiro varão, e chefe de uma taba, na valente nação dos tocantins, mostrou-se pela sua constancia e valor digno do sangue de seus avós?
—Pojucan o disse; e a fama o repete.
—Então porque Ubirajara, o grande chefe dos araguaias, não concede a Pojucan a morte glorioza, que os tocantins jámais recuzaram a um guerreiro valente, e que sómente se nega aos fracos? Já não serviu Pojucan á tua gloria na festa do triunfo? Esperas delle que te obedeça como um escravo? Se aviltas o varão, a quem venceste, humilhas o teu valor que elle exaltava.
O grande chefe araguaia ouviu sem interromper o prizioneiro, e respondeu com gravidade:
—Ubirajara não recuza ao bravo chefe tocantim, seu terrivel inimigo, o suplicio, que não negaria a qualquer guerreiro valente. Elle esperava que tua ferida se fechasse de todo, para que o grande Pojucan possa no dia do ultimo combate sustentar a fama de seu nome, e a gloria de um varão que só foi vencido por Ubirajara.
O grande chefe dos araguaias levou aos labios a inubia de Camacan; a voz do mando reboou pelo vasto ambito da taba.
Apareceram vinte jovens guerreiros, a quem elle ordenou que chamassem a conselho os anciãos.
Depois tornou ao chefe tocantim:
—Os araguaias receberam de seus avós o costume das nações que Tupan creou. Elles destinam ao prizioneiro a mais bela e a mais ilustre de todas as virjens da taba, para que ella conserve o sangue generozo do heróe inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.
—É esta tambem a lei, que os guerreiros tocantins observam em suas tabas.
—A mais bela e a mais nobre de todas as virjens araguaias, aquella que se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flôres, é Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha.
Travando então do pulso de Jandira, que ali ficára preza de sua vista, levou-a ao prizioneiro.
—Recebe-a como espoza do tumulo.
Jandira que ouviu espavorida aquellas palavras, quiz fujir; porém a mão do chefe araguaia a reteve.
—Ubirajara parte, mas elle voltará para assistir[33] a teu suplicio e vibrar-te o ultimo golpe. Pojucan terá a gloria de morrer pela mão do mais valente guerreiro.
Ficaram Jandira e Pojucan em face um do outro.
—Virjem dos araguaias, Tupan te rezervou para espoza do mais terrivel dos inimigos de tua nação. O filho de seu sangue será o mais valente dos guerreiros; tu sentirás orgulho por havel-o gerado em teu seio.
—Pojucan, chefe tocantim, Jandira nunca será tua espoza.
—Não é Ubirajara o chefe de tua nação, e não te destinou elle para servir de noiva do tumulo ao guerreiro que vai morrer no suplicio?
—Ubirajara é o grande chefe da nação araguaia; á sua voz cala-se a palavra dos anciãos; a seu gesto curva-se a fronte dos guerreiros; á sua vontade obedecem as tabas. Mas no amor de Jandira, ninguem manda, nem Tupan. Jandira é noiva de Ubirajara, e se elle não quizer aceital-a, o guanumbí a levará para os campos alegres onde repouzam as virjens que morreram.
—Pojucan não carece do amor de Jandira. Nas tabas dos tocantins a mais bela das virjens se regozijaria de pertencer ao mais valente dos chefes, e de habitar sua rêde. Nas tabas dos araguaias, onde nacem guerreiros como Ubirajara, não faltarão virjens formozas, que dezejem a gloria de ser mãi de um filho de Pojucan.
—Jandira seria a primeira, se não conhecesse[34] Jaguarê, o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos chefes. Pojucan merece uma espoza que nunca tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno delle.
—Os ritos de tua nação não punem a noiva que rejeita o prizioneiro?
—Jandira sabe que se sujeita á morte; mas a morte é menos cruel do que o abandono.
—Então foje, virjem dos araguaias, e esconde-te á cólera dos anciãos. Talvez mais tarde Ubirajara se arrependa e te perdôe.
—Jandira parte. Ella te dezeja uma espoza terna e a morte glorioza.
A filha de Majé penetrou na floresta, e afastou-se rapidamente da taba.
Quando já estava muito lonje, sentou-se á sombra de um manacá coberto de flôres e cantou:
—Eu fui Jandira, a linda abelha, que fabricava os favos de cêra para enchel-os de mel saborozo.
«Agora arrancaram-me as minhas azas com que eu voava pela campina colhendo o pó das flôres; e secou a doçura de meu sorrizo.
«O canto que saía de meu seio era como o da patativa ao pôr do sol, quando se recolhe em seu ninho de paina macia.
«Agora eu queria ter no coração uma serpente para morder aquella que me roubou o amor de meu guerreiro.
«Guardei a minha formozura para orgulho do espozo, e inveja dos outros guerreiros.
«Agora eu trocaria a flôr do meu rosto por um aspeto terrivel que infundisse pavor.
«Meus seios mais lindos que os botões do cardo por um peito feroz, e as mãos lijeiras que tecem os fios do algodão pelas garras do jaguar.
«Eu fui Jandira, o manacá viçozo que se vestia de flôres azues e brancas.
«Agora sou como a jussara que perdeu a folha, e só tem espinhos para ferir aquelles que se chegam.»
Os anciãos já estavam reunidos na oca do conselho, quando Ubirajara entrou.
Falou Camacan:
—Ubirajara, senhor da lança, chefe dos chefes, os pais da grande nação araguaia escutam a tua voz.
O grande chefe tres vezes bateu no chão com a ponta do arco e disse:
—Pojucan, o chefe tocantim, pede a morte do combate; elle a merece, porque é um grande guerreiro e um varão ilustre. Ubirajara concedeu-lhe essa honra, como seu vencedor.
—Ubirajara é um inimigo generozo; respondeu Camacan.
Todos os anciãos inclinaram gravemente a cabeça encanecida para exprimirem sua aprovação ás palavras de Camacan.
Proseguiu Ubirajara:
—É tempo de escolher para o prizioneiro uma espoza digna de acompanhar em seus ultimos dias ao heróe inimigo, e de ser mãi do marabá, o filho da guerra.
Todos os abarés dezejavam para si a gloria de oferecer uma filha ao prizioneiro.
—Ubirajara destinou-lhe Jandira, filha de Majé.[36] Ella o merece por sua formozura, e pelo sangue do grande guerreiro que gira em suas veias.
—Ubirajara é um grande chefe, disse Camacan.
Os anciãos aprovaram outra vez com a cabeça; Majé acrecentou:
—O sangue do velho Majé não desmentirá em Jandira a fama da nação araguaia.
—Não! disse Ubirajara e todos os anciãos repetiram: Não!
O grande chefe tornou com a voz pauzada:
—Celebrai a ceremonia da entrega da espoza ao prizioneiro. Ubirajara parte; só estará de volta na proxima lua para assistir ao suplicio de Pojucan. Se na auzencia de Ubirajara cair na taba a flecha, nuncia da guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se abraçam os grandes rios, e soltai a voz da nação araguaia. Nesse dia Ubirajara será comvosco.
Os prudentes anciãos, com a cabeça inclinada para melhor ouvir, recebiam as palavras do grande chefe e as guardavam na memoria.
Quando Ubirajara se calou, Camacan repetiu, ainda mais pauzado, as recomendações do filho:
—É esta a vontade de Ubirajara?
—Tu o disseste.
—Os anciãos guardaram a palavra do chefe dos chefes? perguntou ainda Camacan.
—Ella entrou no espirito dos abarés, como a raiz no seio da terra, observou Majé.
—Bem dito, repetiram todos.
Ubirajara saiu do carbeto; após elle os anciãos se retiraram lentamente.
Na entrada do vale ergue-se a grande taba dos tocantins.
É a hora em que as sombras abraçam os troncos das arvores e o sol descansa em meio da carreira.
A floresta emudece, e todos os viventes se abrigam da calma que abraza.
Ubirajara deixa o escuro da mata e caminha para a grande taba dos tocantins.
Quando chegou á distancia do tiro de uma flecha despedida pelo mais robusto guerreiro, tocou a inubia.
O guerreiro de vijia respondeu; e o chefe araguaia, quebrando a seta, alçou a mão direita para mostrar a senha da paz.
Então avançou para a taba; na entrada da caissara que cercava o campo dos tocantins, atirou ao chão a seta partida.
Os guerreiros que tinham acudido ao som da inubia, deixaram passar o estranjeiro sem inquirir donde vinha, nem o que o trouxera.
Era este o costume herdado de seus maiores, que o hospede mandava na taba aonde Tupan o conduzia.
Ubirajara passou entre os guerreiros, e dirijiu-se á cabana mais alta que ficava no centro da ocara.
A figura do tucano, feita de barro pintado, e colocada em cima da porta, dizia que era ali a cabana do grande chefe.
Mas Ubirajara já o sabia; pois antes de penetrar na taba, subira á grimpa do mais alto cedro da floresta para conhecer o sitio onde habitava Arací, a estrela do dia.
A cabana estava dezerta naquelle instante, mas ouvia-se a fala das mulheres que trabalhavam no terreiro.
Ubirajara transpôz o limiar, e levantando a voz disse:
—O estranjeiro chegou.
Acudiram as mulheres, e conduziram Ubirajara á prezença do grande chefe dos tocantins.
Itaquê passava as horas da ardente calma á sombra da frondoza gameleira, que podia abrigar cem guerreiros em baixo de sua rama.
Repouzando dos combates, o formidavel guerreiro não desdenhava as artes da paz em que era tão consumado como nas batalhas.
Assim honrava as fadigas da taba, dando o exemplo do trabalho á familia de que era pai, e a nação de que era chefe.
Nesse momento as mulheres colocadas em duas filas, com as mãos erguidas, urdiam os fios de algodão, passados pelos dedos abertos em fórma de pente.
Itaquê manejava a lançadeira, tão destro como na peleja vibrava o tacape. Sua mão lijeira tramava a teia de uma rêde, que entretecia das penas douradas do galo da serra.
Quando chegou Ubirajara, o grande chefe dos tocantins, depois de ter rematado a urdidura, entregou a lançadeira ao guerreiro Pirajá que estava a seu lado, e veiu ao encontro do hospede.
—O estranjeiro veiu á cabana de Itaquê, grande chefe da nação tocantim, disse Ubirajara.
—Bem vindo é o estranjeiro á cabana de Itaquê, grande chefe da nação tocantim.
Então o tuxava voltou-se para Jacamim, a mãi de seus filhos:
—Jacamim, prepara o cachimbo do grande chefe, para que elle e o estranjeiro troquem a fumaça da hospitalidade.
Os mensajeiros já corriam pela taba, avizando os guerreiros moacaras da vinda do hospede á cabana de Itaquê.
Os moacaras, revestidos de seus ornatos de festa, se encaminharam com o passo grave á oca principal afim de honrar o hospede do grande chefe da nação tocantim.
Ali chegados, cada um dirijiu ao estranjeiro a pergunta da hospitalidade e deu-lhe a boa vinda.
Depois que Itaquê ofereceu a Ubirajara o cachimbo da paz, e com elle trocou a fumaça da hospitalidade, os cantores entoaram a saudação da chegada:
«O hospede é mensajeiro de Tupan. Elle traz a alegria á cabana; e quando parte leva comsigo a fama do guerreiro que teve a fortuna de o acolher.
«Nas tabas por onde passa, e na terra de seus pais, elle conta aos velhos, que depois ensinam aos moços, as proezas dos heróes que viu em seu caminho, e de quem recebeu o abraço da paz.
«O hospede é mensajeiro de Tupan. Elle traz comsigo a sabedoria; na cabana do guerreiro que tem a fortuna de o acolher, todos o escutam com respeito.
«Em suas palavras prudentes, os anciãos da taba aprendem, para ensinar aos moços, os costumes dos outros povos, as façanhas de guerra desconhecidas por elles, e as artes da paz, que o estranjeiro viu em suas viajens.
«O hospede é mensajeiro de Tupan. O primeiro que apareceu na taba dos avós da nação tocantim, foi Sumê, que veiu de onde a terra começa e caminhou para onde a terra acaba.
«Delle aprenderam as nações a plantar a mandioca para fazer a farinha, e a tirar do cajú e do ananaz o generozo cauim, que alegra o coração do guerreiro.
«O hospede é mensajeiro de Tupan. Quando o estranjeiro entra na cabana, o guerreiro que tem a fortuna de o acolher, não sabe se elle é um chefe ilustre ou o grande Sumê que volta de sua viajem.
«O sabio ensina por onde passa os segredos da paz, e o heróe as façanhas da guerra; mas ambos deixam na cabana da hospitalidade a gloria de ter abrigado um grande varão.
«O hospede é mensajeiro de Tupan. Por seu caminho vai deixando a abundancia e a festa; depois do banquete da boa vinda as arvores vergam com os frutos, e a caça não cabe na floresta.
«A cabana que fecha a porta ao hospede, o vento a arranca, o fogo do céu a abraza. O guerreiro que não se alegra com a chegada do hospede, vê murchar ao redor de si a espoza, os filhos, as mulheres e as roças que elle plantou.
«Bem vindo seja o estranjeiro na cabana de Itaquê, o grande chefe da nação tocantim, que teve a gloria de ser escolhido pelo hospede.
«Os guerreiros exultam com a honra de seu chefe, e os cantores te saudam, mensajeiro de Tupan.»
Emquanto na cabana resôa o canto da boa vinda, Jacamim, a espoza de Itaquê, chamou as amantes do marido, suas servas, para ajudal-a a preparar o banquete da hospitalidade.
As servas pressurosas estenderam á sombra da gameleira as alvas esteiras de palmas entrançadas de airis e colocaram sobre ellas os urús cheios de farinha d'agua.
Trouxeram tambem os camocins razos, onde se apinhavam as moquecas envoltas em folha de banana, e peças de carne, assada no biaribí, que ainda fumegava nos pratos feitos de concha de tartaruga.
Depois suspenderam a caça mais volumoza, veados e antas, assim como as igaçabas de cauim, nos ramos inclinados da arvore, em altura que o braço do guerreiro podesse alcançar.
Frutas de varias especies, pencas douradas de banana, cachos rôxos de assaí, os rubros croás, e os fragrantes abacaxis, enchiam o giráu levantado no meio do terreiro.
Jacamim conduzira o hospede á sombra da gameleira, onde o esperava o banquete da chegada.
Ao lado de Ubirajara sentou-se Itaquê e depois os moacaras que tinham vindo para a festa da hospitalidade.
Os guerreiros comeram em silencio. As mulheres dilijentes os serviam, enchendo de vinho de cajú e ananaz as largas combucas, tintas com a pasta do crajurú que dá o mais brilhante carmim.
Quando o hospede, depois de satisfeito o apetite, lavou o rosto e as mãos, Jacamim ordenou ás servas que recolhessem os restos das provizões, e retirou-se com ellas.
Tambem se afastaram os jovens guerreiros que ainda não tinham voz no conselho. Só ficaram sentados com o hospede, Itaquê, e os moacaras senhores das cabanas.
O cachimbo do grande chefe passou de mão em mão e cada ancião bebeu a fumaça da herva de Tupan, que inspira a prudencia no carbeto.
Então disse o chefe:
—Itaquê dezeja dar a seu hospede um nome que lhe agrade, e preciza que o ajude a sabedoria dos anciãos.
A lei da hospitalidade não consentia que se perguntasse o nome ao estranjeiro que chegava, nem que se indagasse de sua nação.
Talvez fosse um inimigo, e o hospede não devia encontrar, na cabana onde se acolhia, senão a paz e a amizade.
O chefe, que tinha a fortuna de receber o viajante, escolhia o nome de que elle devia uzar emquanto permanecia na cabana hospedeira.
Foi Ipê quem primeiro falou:
—Tu chamarás ao hospede Jutaí, porque sua cabeça domina o cocar dos mais fortes guerreiros, como a copa do grande pinheiro aparece por cima da mata.
Disse Tapir:
—Chama ao hospede Boitatá, porque elle tem os[43] olhos da grande serpente de fogo, que vôa como o raio de Tupan.
Os moacaras, cada um por sua vez, falaram; e como a voz começava do mais moço para acabar no mais velho, as ultimas falas eram menos guerreiras e traziam a prudencia da idade.
Assim Caraúba, que era o segundo antes do chefe, disse:
—Itaquê, o hospede é o nuncio da paz. Tu deves chamal-o Jutorib, porque elle trouxe a alegria á tua cabana.
Guaribú, cujos anos enchiam a corda de sua existencia de mais nós, do que tem o velho cipó da floresta, falou por ultimo:
—O viajante é senhor na terra que elle piza como hospede e amigo; e o nome é a honra do varão ilustre, porque narra sua sabedoria. Pergunta ao estranjeiro como elle quer ser chamado na taba dos tocantins.
—Bem dito!
Itaquê, aprovando as palavras prudentes do ancião, perguntou a Ubirajara que nome escolhia; este lhe respondeu:
—Eu sou aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Chama-me Jurandir.
Nesse momento, Arací, a estrela do dia, apareceu por entre as palmeiras, e caminhou para a cabana.
Os mais valentes entre os jovens guerreiros tocantins acompanhavam a formoza caçadora. Eram os servos do amor, que disputavam a beleza da virjem.
Os cantores saudaram de novo o hospede pelo nome que elle escolhera:
—Tu és aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; para que te alegres ouvindo o nome de tua escolha.
«Tu és aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; e o nome de tua escolha alegrará o ouvido dos guerreiros.»
De longe Arací viu o estrangeiro, sentado entre os anciãos, como o frondoso jacarandá no meio dos velhos troncos das aroeiras.
A virgem reconheceu logo o caçador araguaia e adivinhou que ele viera á cabana de Itaquê para disputar sua beleza aos guerreiros tocantins.
O coração de Arací encheu-se de alegria. Seus negros cabelos estremeceram de contentamento, como as penas da jaçanan quando presente o formoso inverno.
O estrangeiro não queria ser conhecido; pois deixára o cocar das plumas da arara, que era o ornato guerreiro da sua nação. Mas a imagem do jovem caçador ficára na lembrança da virgem, como fica na terra a verde folhajem, depois da lua das aguas.
A lei da hospitalidade proíbia á virgem revelar o segredo do estranjeiro, só della sabido. Nesse momento foi á sua alma que obedeceu e não ao costume da nação.
Quando Arací chegou ao terreiro, os anciãos se preparavam para ouvir a maranduba do hospede. Os guerreiros e as mulheres escutavam em silencio.
O estrangeiro começou:
—Jurandir é moço; ainda conta os anos pelos dedos e não viveu bastante para saber o que os[45] anciãos da grande nação tocantim aprenderam nas guerras e nas florestas.
«O moço é o tapir que rompe a mata, e vôa como a seta. O velho é o jabotí prudente que não se apressa.
«O tapir erra o caminho e não vê por onde passa. O jabotí observa tudo, e sempre chega primeiro.
«Jurandir é moço; mas conhece as grandes florestas, e atravessou mais rios do que as veias por onde corre o sangue valente de seu pai.
«A primeira agua em que Jaçanan, sua mãi, o lavou, quando elle lhe rasgou o seio, foi a do grande lago onde Tupan guardou as aguas do diluvio, depois que as retirou da terra.
«Ainda Jurandir não era um caçador, quando elle se banhou no pará sem fim, onde os rios despejam a sua corrente e cujas aguas quando dormem se mudam em sal.
«Duas vezes Jurandir seguiu o pai dos rios desde a grande montanha onde nace, até á varzea sem fim que elle enche com suas aguas.
«Elle viu o grande rio combater com o mar, no tempo da pororoca. Os dois chefes tocam as inubias antes da peleja, para chamar seus guerreiros.
«Vem de um lado as aguas do mar, são os guerreiros azues, com penachos de araruna; vem do outro as aguas do rio, são os guerreiros vermelhos com penachos de nambú.
«Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como a corrente da cachoeira, batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão das aguas.
«Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo; carrega-o nos hombros; solta o grito de triunfo.
«Por muito tempo os Tetivas, que habitam sobre as arvores, vêem passar correndo as aguas do mar;[46] são os guerreiros azues que fojem espavoridos e vão esconder-se na sombra das florestas.
«Jurandir tambem viu a terra onde habitam as mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, que vivem em baixo das aguas do grande rio.
«Só ellas sabem o segredo das pedras verdes, que tornam os guerreiros cativos de seu amor, sem prival-as da liberdade.
«Por isso todas as luas, grande numero de guerreiros as vizitam em sua taba; e ellas guardam para os mais valentes a flôr de sua beleza.
«Quando chega o tempo de vir o fruto do amor, guardam sómente as filhas; e enviam aos guerreiros os filhos, de onde saem os maiores chefes.
«Feliz o guerreiro que acha uma terra valente e fecunda para a flôr de seu sangue. O filho será maior do que elle; e o neto maior do que o filho.
«Sua geração vai assim crecendo de tronco em tronco; e fórma uma floresta de guerreiros, onde o ultimo cedro se ergue mais frondozo e robusto, porque recebe a seiva de seus avós.»
Quando Jurandir proferiu as ultimas palavras, seus olhos que tinham muitas vezes buscado Arací, repouzaram nella.
A virjem tocantim compreendeu que o estranjeiro se referia a si; e não escondeu sua alegria, como não esconde sua flôr a juquerí que o rio beija.
A formoza caçadora cantou. Sua voz era limpida[47] e sonora como o gorjeio do sabiá, quando se deleita com o calor do sol.
—Feliz a terra que recebe a semente do cedro frondozo e robusto; ella se cobrirá de sombra e frescura. Os guerreiros gostarão de reunir-se aí para falar da paz e da guerra.
«Ella é como a virjem que um chefe ilustre escolheu para sua espoza, e que se povôa de uma prole numeroza. As nações a respeitam porque é a mãi de valentes guerreiros; os anciãos escutam seu conselho na paz e na guerra.
«As mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, são como a palmeira do murití, que rejeita o fruto antes que elle amadureça e o abandona á correnteza do rio.
«A espoza não desprende de si o filho, senão quando elle não chupa mais seu peito. Ella é como a mangabeira; nutre o fruto com seu leite, que é a flôr de seu sangue.
«Não é na terra das mulheres guerreiras que o estranjeiro deve buscar a espoza; mas na taba de sua nação, onde Tupan guarda para seu valor a mais bela das virjens, aquella que tem o sorrizo de mel.»
O hospede respondeu:
—Jurandir sabe onde encontrará a virjem que dezeja para espoza. A luz do céu o guia, e nada reziste á força de seu braço.
Depois de responder ao canto de Arací, o estranjeiro continuou sua maranduba, que todos ouviram silenciozos.
Elle contou o que havia aprendido nas praias do mar habitadas pela valente nação dos Tupinambás, decendentes da mais antiga geração de Tupi.
Os pajés dos Tupinambás lhe disseram que nas aguas do pará sem fim vivia uma nação de[48] guerreiros ferozes, filhos da grande serpente do mar.
Um dia esses guerreiros saíriam das aguas para tomar a terra ás nações que a habitam; por isso os Tupinambás tinham decido ás praias do mar, para defendel-as contra o inimigo.
Os guerreiros do mar tambem tinham suas guerras entre si, como os guerreiros da terra. Então as aguas pulavam mais altas do que os montes; seu estrondo era como o trovão.
Jurandir contou mais que nas praias do mar se encontrava uma rezina amarela, muito cheiroza, a qual a grande serpente creava no bucho.
Os Tupinambás faziam dessa goma contas para seus colares; Jurandir mostrou a pulseira que lhe cinjia o artelho, prezente de um guerreiro daquella nação.
Essas contas tornavam o pé do guerreiro ajil na corrida, e protejiam o viajante contra os caiporas da floresta, que se apartavam de seu caminho.
Muitas outras coizas referiu Jurandir; e os anciãos admiravam-se de ver o juizo prudente de um abaré no corpo joven de tão forte guerreiro.
Os mais velhos dos moacaras acreditaram que o hospede era o filho de Sumê, mandado por seu pai correr as terras que o sabio tinha visto em sua mocidade.
Calaram, porém, seu pensamento, para o comunicarem aos anciãos quando se reunisse o carbeto da nação.
O sol já decia para as montanhas quando terminou a festa da hospitalidade na cabana de Itaquê.
Os moacaras partiram. Itaquê voltando á sua ocupação, deixou o hospede senhor de sua vontade para fazer o que lhe agradasse.
Vieram os jovens pescadores da taba com os anzóes e gequis saber do hospede que peixe elle preferia.
Depois delles chegaram os jovens caçadores que antes de partir para a floresta vinham receber os dezejos do hospede.
Por fim aproximaram-se as mulheres que já tinham rompido o fio da virjindade, mas não eram nem espozas, nem amantes de guerreiros.
Essas eram as mulheres livres, que davam seu amor e o retiravam quando queriam, mas não recebiam a proteção de um guerreiro nem podiam jámais ser mãis da prole.
Os filhos concebidos no proprio seio só tinham por mãi a espoza, que o guerreiro tomou por companheira de sua existencia e raiz de sua geração.
O rito da hospitalidade entre os filhos da floresta manda que se dê ao estranjeiro amigo tudo que deleita ao guerreiro.
Por isso vinham as moças oferecer a Jurandir sua beleza, para que elle escolhesse entre ellas uma companheira, que partilhasse sua rêde na cabana hospedeira.
Todas se tinham enfeitado com seus mais belos ornatos, para agradar aos olhos de Jurandir; pois não havia para ellas maior gloria do que a de merecer o amor do estranjeiro.
Umas traziam as tranças urdidas com penas vistozas dos passaros de sua predileção; outras haviam perfumado da essencia do sassafraz os cabelos soltos, que derramavam sua fragancia ao sopro da briza.
Chegando diante do estranjeiro, começaram uma dansa amoroza para mostrar a graça de seu corpo. Aquellas que tinham a voz doce cantavam em louvor de Jurandir.
Arací fôra buscar seu balaio de palha vermelha, e sentára-se no terreiro, junto á porta da cabana. Seus dedos ajeis enfiavam as sementes de jequerití, de que fazia um ramal para seu colo gentil.
Emquanto compunha o colar, a virjem percebia que os olhos de Jurandir abandonavam os encantos das mulheres, e buscavam seu rosto.
Mas ella voltava-se para a floresta; com o trinado de seus labios chamava o crajuá, que voava no olho da palmeira. O passarinho iludido vinha, cuidando ouvir o canto da companheira.
Jurandir apartou as mulheres e disse:
—As moças tocantins são formozas, qualquer dellas alegraria o sono do estranjeiro. Mas Jurandir não veiu á cabana de Itaquê para gozar do amor de uma noite; elle veiu buscar a espoza que ha de acompanhal-o até á morte, e a virjem que escolheu para mãi de seus filhos.
Quando Arací ouviu estas palavras cobriu-se de sorrizos, como o guajerú se cobre de suas flôres alvas e perfumadas com os orvalhos da manhã.
Jurandir voltou-se então para a virjem caçadora:
—Estrela do dia, Arací, conduze-me á prezença de Itaquê. É tempo que elle saiba o segredo do estranjeiro.
—Os sonhos disseram a Arací duas noites seguidas, que o joven caçador chegaria á cabana de Itaquê; ella te esperou. Quando meus olhos te viram sentado entre os moacaras, logo conheceram que tu vinhas buscar a espoza.
O estranjeiro respondeu:
—Jurandir chegou á taba dos seus, e recebeu um nome de guerra e o grande arco de sua nação.[51] Mas a cabana do chefe estava dezerta; e sua rêde não lhe guardou o sono tranquilo do guerreiro. Elle ouviu tua voz que o chamava, virjem tocantim, e ergueu-se; tua luz o guiou, filha do sol, e o trouxe á tua prezença.
Jurandir, conduzido pela virjem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:
—Grande chefe dos tocantins, Jurandir não veiu á tua cabana para receber a hospitalidade; veiu para servir ao pai de Arací, á formoza virjem, a quem escolheu para espoza. Permite que elle a mereça por sua constancia no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força de seu braço.
Itaquê respondeu:
—Arací é a filha de minha velhice. A velhice é a idade da prudencia e da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma espoza como Arací terá a gloria de gerar seu valor no seio da virtude. Itaquê não póde dezejar para seu hospede maior alegria.
Desde esse momento, Jurandir não foi mais estranjeiro na taba dos tocantins. Pertencia á oca de Itaquê, e devia, como servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.
Os guerreiros, cativos da beleza de Arací, conheceram que tinham de combater um adversario for[52]midavel; mas seu amor creceu com o receio de perder a filha de Itaquê.
Jurandir tomou suas armas e deceu ao rio. Era a hora em que o jacaré boia em cima das aguas como o tronco morto, e a jaçanan se balança no seio do nenufar.
O manatí erguia a tromba para pastar a relva na marjem do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na corrente; mas já levava o arpéu do pescador cravado no lombo.
Jurandir não esperou que o peixe ferido dezenrolasse toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo á cabana de Itaquê, onde tres guerreiros custaram a deital-o no giráu.
As mulheres cortaram as postas de carne, e os guerreiros cavaram a terra para fazer as grelhas do biaribí.
Jurandir partiu de novo, e entrou na floresta. Ao lonje reboavam os gritos dos caçadores, que perseguiam a féra.
Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapir. O animal zombára dos caçadores e vinha rompendo a mata como a torrente do Xingú.
As arvores que seu peito encontrava caíam lascadas.
Jurandir estendeu o braço. O velho tapir, agarrado pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho prezo no laço. Nunca até aquelle momento encontrára força maior que a sua.
Uma vez decera á lagôa para beber. A sucurí, que espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Elle fujia, esticando a serpente; e a serpente encolhendo-se o arrastava até á beira d'agua.
Assim tornou, uma, duas, tres vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho tapir disparou pela floresta; e a sucurí com a cauda preza á raiz da arvore arrebentou pelo meio.
O velho tapir rompeu a serpente como se rompe uma corda de piassaba; mas não pôde abalar o braço de Jurandir, mais firme do que o tronco do guaribú.
O estranjeiro tornou á cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê, pôde aguentar com as duas mãos a féra bravia.
Então Jurandir obrigou o animal a agachar-se aos pés de Arací e disse:
—O braço de Jurandir fará cair assim a teus pés o guerreiro que ouze disputar ao seu amor a tua formozura, estrela do dia.
Nunca a abundancia reinára na cabana sempre farta do chefe dos tocantins, como depois que a ella chegára o estranjeiro.
Jurandir era o maior caçador das florestas, e o primeiro pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como na profundeza das aguas.
Nada escapava á destreza de sua mão. Onde ella não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que rasgavam o seio da vitima, como as garras do jaguar.
O estranjeiro soubera de Arací qual era a caça que Itaquê preferia, e qual o peixe que elle achava mais saborozo. Desde então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predileto.
Se não era a lua propria do peixe dezejado,[54] Jurandir sabia onde o podia encontrar. Não tornava á cabana sem a provizão necessaria para a refeição do dia.
Depois da caça e da pesca, Jurandir trabalhava nas roças de Itaquê. Fazia no taboleiro os matumbos, para que Jacamim enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.
Entre os filhos das florestas a plantação devia ser feita pela mão da mulher, que era mãi de muitos filhos; porque ella transmitia á terra sua fecundidade.
A semente que a mão da virjem depozitava no seio da terra dava flôr; mas da flôr não saía fruto. E se era um guerreiro que plantava, o aipim endurecia como o páu de arco.
Nas vazantes do rio, Jurandir capinava a terra coberta de relva e outras plantas, e só deixava crecer o arroz, o inhame e as bananeiras.
Quando o estranjeiro partia pela manhã, Arací o acompanhava de lonje pela floresta.
Sua vontade a levava após elle.
O costume da taba não consentia que a virjem dezejada pelos servos de seu amor, preferisse um guerreiro antes de saber se elle a obteria por espoza.
A filha de Itaquê não queria pertencer a outro guerreiro; mas lembrava-se que a virjem deve merecer o espozo por sua paciencia, assim como o guerreiro merece a espoza por sua constancia e fortaleza.
Então voltava ao terreiro: emquanto os outros guerreiros espreitavam sua vontade, ella tecia as franjas para a rêde do cazamento.
Sua mão sutil urdia com o alvo fio do crauatá a fina penujem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do peito do tucano; mas ella sabia que era do peito da arára e que tinha as côres de seu guerreiro.
Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto de Jurandir que voltava da caça. A virjem seguida pelos guerreiros ia ao encontro do estranjeiro.
Então deciam ao rio. Era a hora do banho. Arací cortava as ondas mais linda que a garça côr de roza; e os guerreiros a seguiam de perto, como um bando de galeirões.
Mas nenhum, nem mesmo Jurandir, que nadava como um bôto, podia alcançar a formoza virjem. Ella parecia a flôr do mururê que se desprendeu da haste, e passa levada pela corrente.
Uma vez a filha das aguas soltou um grito, e dezapareceu no seio das ondas. Jacamim cuidou que o jacaré tinha arrebatado a filha de seu seio. Os guerreiros mergulharam para salval-a; mas não a encontraram.
Todos a julgavam perdida, quando apareceu Jurandir que trazia nos braços o corpo da virjem formoza. Pizando em terra, ella correu para a cabana, onde foi esconder sua alegria.
Desde então era no banho que Arací recebia o abraço de Jurandir, sem que os outros guerreiros suspeitassem da preferencia dada ao estranjeiro.
No seio das ondas ninguem a adivinhava, a não ser o ouvido sutil de Jurandir, a quem ella chamava com o doce murmurio do irerê.
Encontravam-se no fundo do rio emquanto durava a respiração. Depois desprendiam-se do abraço e surjiam lonje um do outro.
Á tarde, voltando da caça, Jurandir viu na floresta um rasto, que elle conhecia.
Chegado á cabana, entregou a Jacamim o veado que matára, e saiu para vizitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rasto, que o inquietava, não chegára até ali.
No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho os guerreiros partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.
Arací tomou o arco e entrou na floresta. A imajem do guerreiro amado fujia naquelle instante de seus olhos; elles buscaram entre as folhas o sinal de seus passos e não o descobriram.
Lembrou-se a virjem, que Jurandir gostava da polpa do guaranan adoçada com o mel da abelha, e colheu os frutos encarnados que pendiam dos ramos da trepadeira.
Nesse momento a arára cantou no olho do pirijá. Arací precizava de suas plumas vermelhas para o cocar que ella tecia em segredo.
Era o cocar do amor, com que dezejava ornar a cabeça de seu guerreiro senhor, no dia em que elle a conquistasse por espoza.
A virjem armou o arco e seguiu a arára rompendo a folhajem. Quando ia disparar a seta, ouviu ao lado um rumor dezuzado.
Jurandir estava perto della, e segurava o braço de uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.
Arací conheceu a virjem araguaia, pela faxa de algodão entretecida de penas que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era Jandira, a noiva do guerreiro.
—Filha de Majé, tua mão quiz matar a virjem que Jurandir escolheu para espoza. Tu vais morrer.
—Desde que Ubirajara abandonou Jandira, ella começou a morrer, como a baunilha que o vento arranca da arvore. Acaba de matal-a, para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite na voz dos sonhos.
—A virjem araguaia ameaçou a vida de Arací; ella lhe pertence, disse a filha de Itaquê.
Jurandir cortou na floresta uma comprida rama de imbê, e atou as mãos de Jandira.
—Jandira é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ella tem a astucia da serpente e seu veneno.
—Eu era a cobra d'agua, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez a cascavel venenoza, que traz nos labios o sorrizo da morte?
Jurandir não respondeu. Nesse momento elle teve saudade de sua cabana; e lembrou-se do tempo em que, joven caçador, seguia na floresta a formoza virjem araguaia.
As duas virjens ficaram sós no claro da floresta.
Já o rumor dos passos de Jurandir se apagára ao lonje, e ainda tinham ambas os olhos cativos uma da outra.
Jandira pensou que ella não podia dar a Ubirajara a formozura da filha de Itaquê. Arací receiou que o amor do guerreiro se voltasse outra vez para a linda virjem araguaia.
A filha de Majé preparou-se para morrer á mão de sua rival, mas ella preferia a morte ao suplicio de contemplar sua beleza.
Arací, a estrela do dia, cantou:
—O amor do guerreiro é a alegria da virjem; quando elle foje, a virjem fica triste como a varzea que perdeu sua relva.
«Por isso Jandira está triste; o amor do guerreiro fujiu della; e a deixou solitaria como a nambú, a quem o companheiro abandonou.
«Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite. Quando o sol queima a varzea, elle dece do céu para cobril-a de verdura e de flôres.
«Arací está alegre, porque o amor do guerreiro voltou-se para ella; e Jurandir vai fazel-a companheira de sua gloria e mãi de seus filhos.
«Quando a espoza de Jurandir não tiver mais beleza para dar a seu guerreiro, ella consentirá que Jandira durma em sua rêde.
«E o orvalho da noite decerá do céu para cobrir a varzea de verdura e de flôres. E Jandira achará outra vez seu sorrizo de mel.»
Assim cantou Arací, a estrela do dia; e a virjem araguaia respondeu:
—A arvore que morreu não sofre quando o fogo a queima. Jandira prefere a morte á vergonha de ser tua serva, e á tristeza de ver a cada instante a formozura da estranjeira que roubou seu amor.
«Arací, a estrela do dia, é mais bela do que Jandira, mas não sabe amar o guerreiro que a escolheu para mãi de seus filhos.
«Nunca Jandira ofereceria sua rêde de espoza a outra mulher; e aquella que recebesse o amor de seu guerreiro, morreria por sua mão.
«Ella amaria seu espozo tanto que sua graça nunca se retirasse della; pois saberia morrer quando não tivesse mais beleza para dar-lhe.
«A nação araguaia nunca levanta a taba do vale onde acampou, senão quando a terra já não póde dar-lhe mais frutos.
«Assim é o guerreiro. Elle não retira seu amor da espoza que habita, senão quando ella já não sabe alegrar sua alma.»
Tornou a virjem tocantim:
—A cajazeira, depois que dá seu fruto, perde a folha; o guerreiro busca a sombra de outra arvore para repouzar.
«Mas vem a lua das aguas e a cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.
«A espoza é como a cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em seus braços, ella sofre que busque outra sombra, e espera que lhe volte a flôr para chamal-o de novo ao seio.
«Arací ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu amor nunca abandonou a espoza.
«As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro amor do guerreiro não morre nunca.
«Elle é como a grama que nunca mais deixa a terra onde naceu: podem arrancal-a que brota sempre.
«Arací quer apagar a tristeza de tua alma; e beber o teu sorrizo de mel, para que o espozo ache mais doces seus labios, quando os provar.
«Tu serás irmã de Arací, e lhe darás um filho de Jurandir, tão valente, como os que seu amor ha de gerar no seio da espoza.»
Jandira afastou os olhos da virjem dos tocantins, para desviar della sua ira.
—Tua palavra dóe como o espinho da jussara, que tem o côco mais doce que o mel.
«As flechas de teu arco não matam mais do que os sorrizos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto, estrela do dia.
«Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandira que elle primeiro escolheu para espoza, quando ainda era joven caçador.
«Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando morrem, elle me chamará; e o guanumbí virá buscar a minha alma no seio da flôr do manacá para leval-a a seu amor.
«Mata-me, ou deixa que eu morra para não ver mais tua beleza, e não ouvir o canto de tua alegria.»
Arací caminhou para Jandira e dezatou-lhe os pulsos.
—O amor do guerreiro não pertence á mulher que seus olhos primeiro viram; mas áquella que elle escolheu. Apanha teu arco; e morra aquella que não souber defender seu amor, e merecer o espozo.
Arací disse, e tirou da uiraçaba uma seta. Jandira ficou imovel, com os pulsos cruzados, como se ainda estivessem prezos:
—A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandira; ella rejeita a liberdade dada por ti. Arací póde ser preferida, porém não será mais generoza do que a filha de Majé.
Chegou o dia em que os noivos de Arací deviam disputar a posse da formoza virjem.
Era a hora em que o sol transpondo a crista da montanha estende pelo vale sua arassoia de ouro.
A grande nação tocantim cerca a vasta campina. No centro estão os anciãos, que formam o grande carbeto.
Em frente aparece Arací, a estrela do dia, que ha de ser o premio da constancia e fortaleza do mais destro guerreiro.
Jacamim acompanha a filha; nesse momento remoça com a lembrança do dia em que Itaquê a conquistou, lutando com os mais feros mancebos tocantins.
De um e outro lado seguem pela ordem da idade os moacaras. Cada um cerca-se da espoza, das servas e das filhas, que vieram para assistir ao combate.
É a unica das festas guerreiras, em que o rito de Tupan consente a prezença das mulheres, porque se trata da sua gloria.
Contemplando o esforço heroico dos mais nobres guerreiros para conquistar a formozura de uma virjem, as outras virjens aprendem a prezar a castidade, e as espozas se ufanam de guardar a fé ao primeiro amor.
Itaquê, o grande chefe dos tocantins, prezide ao combate, orgulhozo pela valente nação que dirije, como pela formoza virjem de que é pai.
Quando seus olhos admiram a multidão de guerreiros, servos do amor de Arací, que se preparam a disputar a espoza, o grande chefe ergue a fronte soberba como o velho ipê da floresta coroado de flôres.
Os noivos distinguem-se dos outros guerreiros pelo bracelete de contas verdes, que o guerreiro cinje ao pulso da espoza, quando rompe a liga da virjindade.
Lá caminha Pirajá, o grande pescador, senhor dos peixes do rio, a quem obedece o manatí e o golfinho.
Junto delle ergue-se Uirassú, que tomou este nome do valente guerreiro dos ares, pelo ímpeto do assalto.
Vem depois Arariboia, a grande serpente das lagôas; Cauatá, o corredor das florestas; Corí, o altivo pinheiro; e tantos outros, ainda mancebos, e já guerreiros de fama.
Entre todos, porém, assoma Jurandir. Sua fronte passa por cima da cabeça dos outros guerreiros, como o sol quando se ergue entre as cristas da serrania.
Os muzicos fizeram retroar os borés, anunciando o começo da festa; e os servos do amor se estenderam em linha pelo meio da campina.
Então os nhengaçáras levantaram o canto nupcial.
«A espoza é a alegria e a força do guerreiro. Ella acende em suas veias um fogo mais generozo que o do cauim, e prepara para seu corpo o repouzo da cabana.
«Por isso o primeiro dezejo do mancebo,[63] quando ganha nome de guerra é conquistar uma espoza.
«Não basta ser valente guerreiro para merecer a virjem formoza, filha de um grande chefe; é precizo a paciencia para sofrer, e a perseverança no trabalho.
«Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, será a alegria e a gloria do mais forte e do mais valente.
«Os filhos que ella gerar em seu seio, onde corre o sangue do grande chefe, serão os maiores guerreiros das nações.»
Itaquê deu sinal; o combate começou.
Pirajá foi o primeiro que saiu a campo, e clamou esgrimindo o tacape:
—Arací, estrela do dia, tu serás espoza do guerreiro Pirajá, que te vai conquistar pela força de seu braço.
Avançou Uirassú, e disse:
—A virjem formoza ama ao guerreiro Uirassú e ha de pertencer-lhe.
A noiva cantou:
«Arací ama o mais forte e mais valente. Ella pertencerá ao vencedor, que vencer a bravura dos outros guerreiros, como venceu a vontade da espoza.»
A voz mavioza da virjem afagou a esperança de todos os campeões; mas seus olhos ternos só viam o nobre semblante de Jurandir, o escolhido de sua alma.
Os dois guerreiros travaram a pugna; os tacapes girando nos ares encontravam-se como dois madeiros arrojados pelo remoinho da cachoeira.
Afinal Pirajá, ameaçado pelo bote do adversario, recuou um passo do logar em que se postára. Pela lei do combate estava vencido, e teve de deixar o campo.
Arariboia tomou seu logar; e o combate proseguiu com varia fortuna até Corí que, expelindo o vencedor, manteve-se firme contra todos que vieram disputal-o.
Faltava Jurandir. O estranjeiro avançou gravemente, como convinha a um grande guerreiro da nação araguaia.
Elle queria dar ao vencedor de tantos combates o tempo precizo para descansar.
A mão do guerreiro arrastava pelo chão o tacape, que desdenhava erguer para um combate sem gloria.
Quando Jurandir se achou em face do vencedor, levantou a voz e disse:
—Para merecer Arací, a estrela do dia, Jurandir queria vencer a cem guerreiros, e não combater um guerreiro fatigado.
«Tu empunhas um tacape; toma outro habituado a vencer; elle restituirá a teu braço a força que perdeu. Basta a Jurandir esta mão, para te arrebatar todas as tuas vitorias.»
Disse e arremessou a arma aos pés do adversario.
Corí, pensando que seu rival o atacava, desfechou-lhe o golpe. Mas Jurandir aparou-o na mão firme e arrebatando o tacape que o ameaçava arrancou o guerreiro do chão.
Assim o pinheiro que o tufão arrebata, antes de partir o tronco, desprende a raiz da terra, onde nada o abalava.
Jurandir ficou só no campo. Mas todos os noivos se haviam mostrado valentes guerreiros; talvez nas outras provas saíssem vencedores.
Os muzicos tocaram os borés; e os jovens caçadores trouxeram para o meio do campo a figura da noiva.
Era um grosso tóro de madeira, no qual a mão destra de um pajé entalhára com o dente da cotia a cabeça de uma mulher.
Tres caçadores vergavam com o pezo da carga; e foram precizos dez para trazel-o desde a cabana do pajé até o campo, onde ficou semelhante á uma mulher sentada.
Na vespera o pajé burnira de novo com a folha da sambaiba o tóro de madeira, e o esfregára com a banha do teú, para que elle escorregasse da mão do caçador.
Depois os mancebos guerreiros espalharam pelo campo troncos de arvores cortadas com as ramas e as folhas, e fincaram cercas de estacas entre os barrancos da varzea que ia morrer á marjem do rio.
Itaquê deu sinal, e os guerreiros começaram a nova prova, mais dificil que a primeira.
Era precizo que o guerreiro á disparada levantasse do chão, sem parar, o tóro de madeira; e se defendesse dos rivais que o assaltavam para tomal-o.
Esse jogo era o emblema da ajilidade e robustez[66] que o marido devia possuir para disputar a espoza e protejel-a contra os que ouzassem dezejal-a.
Na primeira corrida foi Jurandir quem mais rapido chegou. Como o condor que rebatendo o vôo leva nas garras a tartaruga adormecida, assim o veloz guerreiro suspendeu a figura da espoza e com ella arremessou-se pela campina.
Os outros o seguiam ardendo em ímpetos de roubar-lhe a preza. Na planicie aberta seria vão intento, porque nenhum corria como o estranjeiro.
Mas Jurandir achava diante de si, para tolher-lhe o passo, as arvores derrubadas, os barrancos profundos e outros obstaculos de propozito acumulados.
Não hezitou, porém, o destemido mancebo. Salvou as corcovas, galgou as caiçaras, e subiu pelos galhos que estrepavam o chão.
Uma vez os guerreiros se aproximaram tanto, que Jurandir sentiu nos cabelos o sopro da respiração ofegante. Em frente erguia-se a alta estacada.
Se tentasse subir carregado como estava, os guerreiros com certeza o alcançariam a tempo de arrancar-lhe a preza.
Então arremessou pelos ares o tóro de madeira, como se fosse o tacape de um joven caçador; e seguiu após.
Sempre vencedor dos assaltos dos rivais, Jurandir percorreu a vasta campina, e foi colocar a figura da espoza no meio do carbeto dos anciãos.
Ali era o termo da correria. O guerreiro que chegava a esse ponto com a sua carga, saía triunfante da prova.
Elle mostrava como arrebataria a espoza do meio[67] dos inimigos, e a defenderia contra seus ataques até recolhel-a em um azilo seguro.
De todos os guerreiros só Corí e Uirassú conseguiram ganhar a prova; mas nenhum com a galhardia de Jurandir.
Corí por vezes foi alcançado, e só á confuzão dos outros deveu escapar-se. Uirassú recuperou a preza já perdida, porque Pirajá, que a havia empolgado, falseou na corrida e tombou.
Os tres vencedores entraram de novo em campo para decidir entre si. O triunfo não se demorou. Jurandir o arrebatou, como o gavião arrebata a preza que disputam duas serpes.
Soaram os borés; e ao som do canto de triunfo entoado pelos nhengaçáras, os chefes e os guerreiros saudaram o vencedor dos vencedores.
Quando voltou o silencio, Ogib, o grande pajé dos tocantins, estava em pé no meio do campo.
Junto delle uma das velhas mãis dos guerreiros segurava o camucim da constancia, que tinha o bojo pintado de vermelho.
O pajé disse:
—Não basta que o guerreiro seja forte e valente, para merecer a espoza.
«É precizo que tenha a constancia do varão, e não se perturbe com o sofrimento.
«É precizo que elle tenha a paciencia do tatú, e suporte sereno as mortificações das mulheres e as importunações das crianças.
«O guerreiro que não tem constancia e paciencia, depressa gasta suas forças.
«O rio que se derrama pela varzea, nunca verá suas marjens cobertas de grandes florestas.
«Assim é o guerreiro que não sabe sofrer, e derrama sua alma em lamentações.
«Nunca elle será pai de uma geração forte e glorioza, nem verá sua cabana povoar-se dos guerreiros de seu sangue.
«Se queres merecer a filha de Itaquê, mostra, Jurandir, que és varão ainda maior do que o famozo guerreiro que todos admiram.»
O grande pajé levantou o tampo do camucim, e descobriu uma abertura, bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro.
Jurandir meteu a mão no vazo. O semblante sempre grave do guerreiro cobriu-se de um sorrizo doce como a luz da alvorada; e seus olhos, mais contentes que dois saís, pouzaram no rosto de Arací.
O camucim da constancia continha um formigueiro de saúvas, que o pajé havia fechado ali na ultima lua.
Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes se prepararam para dilacerar a primeira vitima que lhes caísse nas garras.
A dentada da saúva, que anda solta no campo, dóe como uma braza; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira.
Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro, para espreitar-lhe o minimo gesto de sofrimento.
Mas Jurandir sorria; e seus labios ternos soltaram o canto do amor. De propozito o guerreiro adoçou a voz, para não parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro.
Assim cantou elle:
«A dôr é que fortalece o varão, assim como o fogo é que enrija o tronco da crauba, da qual o guerreiro fabríca o arco e o tacape.
«A jussara tem setas agudas: mas Arací, quando atravessa a floresta, colhe o côco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.
«O ferrão da saúva dóe mais do que o espinho da jussara; mas Jurandir acha o mel dos labios de Arací mais doce do que o côco da palmeira.
«Quando Jurandir era joven caçador, gostava de tirar a cotia da toca, embora o seu dente agudo lhe sarjasse a carne.
«O ferrão da saúva não dóe como o dente afiado; e Jurandir sabe que o pelo dourado da cotia, não é tão macio como o colo de Arací.
«Jurandir despreza a dôr. Seus olhos estão bebendo o sorrizo da virjem, mais suave que o leite do sapotí. Sua mão está sentindo o roçar dos cabelos da virjem formoza.»
Os anciãos deram sinal para concluir a prova da constancia; mas o guerreiro continuou seu canto de amor.
«A cumarí arde no labio do guerreiro; mas torna mais gostoza a carne do veado assada no moquem.
«O cauim queima a boca do guerreiro; mas derrama a alegria dentro da alma.
«A saúva arde como a cumarí e queima como o cauim; porém torna os beijos de Arací mais saborozos: e o amor de Jurandir espuma como o vinho generozo.
«Arací ha de sorrir de felicidade, quando o filho de seu guerreiro lhe rasgar o seio.
«Jurandir não tem corpo para sofrer, quando o sorrizo de Arací lhe enche a alma de amor.»
Foi precizo quebrar o camucim para que o guer[70]reiro podesse retirar a mão, de inflamada que ficára.
O grande pajé esfregou na pele vermelha, o suco de uma herva delle conhecida; e logo dezapareceu a inchação.
Faltava a ultima prova, chamada a prova da virjem.
As outras serviam para conhecer o valor, a destreza e robustez do guerreiro, assim como a força de seu amor.
Nesta era que a virjem podia mostrar seu agrado pelo vencedor ou livrar-se de um espozo, que não soubera ganhar-lhe o afeto.
Os cantores disseram:
«Tupan deu azas á nambú para que ella escape ás garras do carcará.
«Tupan deu lijeireza á virjem, para que ella fuja do guerreiro que não quer por espozo.
«Mas a nambú, quando ouve o canto do companheiro, espera que elle chegue para fabricar seu ninho.
«A virjem, quando a segue o guerreiro que ella prefere, pensa na cabana do espozo, e corre de vagar para chegar depressa.»
Arací deixou a mãi, e avançou até o meio do campo.
O grande pajé colocou Jurandir na distancia de uma mussurana, que cinje dez vezes a cintura do guerreiro.
Estrela do dia lançou para as espaduas as[71] longas tranças negras que voaram ao sopro da briza.
Arqueou os braços mimozos, vestidos com franjas de penas, como as azas brilhantes do arirama; e quando soou o sinal, desferiu a corrida.
Jurandir seguiu-a. Elle conhecia a velocidade do pé gentil de Arací, que zombava do salto do jaguar.
Nem que podesse alcançal-a, o guerreiro o tentaria; depois de vencedor, queria dever a espoza ao amor della e não a seu esforço.
Disputaria Arací não só a todos os guerreiros das nações, como a todas as nações das florestas; só á vontade da propria virjem não a disputaria, pois a queria rendida, e não vencida.
Mas sua gloria mandava que elle, o chefe de uma grande nação, se mostrasse digno da formoza virjem, que o aceitasse por espozo.
Arací voava pela campina. Ás vezes trançava a corrida como o colibri que adeja de flôr em flôr, outras vezes fujia mais rapida do que a seta emplumada de seu arco.
Quando mostrou a todos que Jurandir não a alcançaria nunca, se ella quizesse fujir-lhe, reclinou a cabeça para esconder o rubor.
Jurandir abriu os braços e recebeu a espoza que se entregava a seu amor.
O guerreiro suspendeu a virjem formoza ao colo; e levou-a á cabana do amor que elle construira á marjem do rio.
As ramas de jasmineiro e do craviri vestiam a cabana, e matizavam o chão de flôres.
Arací foi buscar a rêde nupcial, que ella tecera de penas de tucano e arara; e Jurandir conduziu os utensilios da cabana.
Então o estranjeiro sentou-se com a virjem no terreiro, e antes de passar a soleira da porta, revelou a Arací quem era o guerreiro que ella aceitára por espozo.
—Arací pertence ao grande chefe da nação araguaia. Ella teve a gloria de vencer ao maior guerreiro das florestas. Ella será mãi dos filhos de Ubirajara; e terá por servas as virjens mais belas, filhas dos chefes poderozos.
«A palmeira é formoza quando se cobre de flôres e o vento ajita as suas folhas verdes, que murmuram; mais formoza, porém, é quando as flôres se mudam em frutos, e ella se enfeita com seus cachos vermelhos.
«Arací tambem ficará mais formoza quando de seu sorrizo saírem os frutos do amor, e quando o leite encher seus peitos mimozos, para que ella suspenda ao colo os filhos de Ubirajara.»
Arací ouviu as palavras do guerreiro, palpitante como a corça; e ornou a fronte do espozo com o cocar de plumas vermelhas, que tecera em segredo.
Depois, sentindo os olhos de Ubirajara que bebiam a sua formozura, ella vestiu o aimará mais alvo do que a pena da garça.
A tunica de algodão entretecida de penas de beija-flôr dece das espaduas até á curva da perna, cinjida pela liga da virjindade.
Quando Arací passava entre os guerreiros que admiravam sua beleza, ella não córava, porque sua castidade a vestia, como a flôr á sapucaia.
Mas agora em prezença do guerreiro a quem[73] ama e para quem guardou a sua virjindade, tem pejo, e esconde sua formozura ás vistas de Ubirajara.
—Os olhos do espozo são como o sol, disse o guerreiro: elles queimam a flôr do corpo de Arací.
—Arací tem medo que os olhos do espozo não a achem digna de seu amor; e vestiu seus enfeites.
«Arací queria ser como a jurití, e ter no corpo uma penugem macia, que só a deixasse ver em sua formozura.
«Foi por isso que tua espoza se cobriu com o seu aimará. Os olhos de Ubirajara não lhe queimarão mais a flôr de seu corpo.
O guerreiro respondeu:
—A flôr do igapê é mais formoza quando abre e se tinje de vermelho aos beijos do sol, do que fechada em botão e coberta de folhas verdes.
Ubirajara tomou nos braços a espoza, e pôz o pé na soleira da porta.
Nesse momento soou um clamor; chegaram os guerreiros que vinham chamar o vencedor á prezença de Itaquê.
O carbeto dos anciãos tinha decidido que o vencedor antes de receber a espoza, devia declarar quem era; pois fôra recebido como estranjeiro, e ninguem na taba o conhecia.
Itaquê esperava sentado na cabana, e cercado do carbeto dos anciãos.
Jurandir entrou; Arací ficou na porta, orgulhoza do espozo que a conquistára e da admiração que elle ia inspirar aos guerreiros da sua nação.
Itaquê falou:
—Quando o estranjeiro chegou á cabana de Itaquê, ninguem lhe perguntou quem era e donde vinha. O hospede é senhor.
«Mas agora o estranjeiro saiu vencedor do combate do cazamento e conquistou uma espoza na taba dos tocantins.
«É precizo que elle se faça conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da nação dos tocantins, jámais entrará como espoza na taba onde habite quem tenha ofendido a um só de seus guerreiros.»
O estranjeiro disse:
—Morubixaba, abarés, moacaras e guerreiros da valente nação tocantim, vós tendes prezente o chefe dos chefes da grande nação araguaia.
«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior guerreiro depois do grande Camacan, cujo sangue me gerou. Se quereis saber porque tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra.»
Ubirajara contou o seu encontro com Pojucan; o combate em que o venceu, e a festa do triunfo,[75] até o momento em que deixou a taba dos araguaias.
Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir ao combate da morte, como prometera ao prizioneiro.
Ninguem interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido; mas não soube que rompera do seio de Arací.
Itaquê arquejou como o rio ao pezo da borrasca.
—Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucan. Tenho em face o matador de meu filho; mas elle é meu hospede!
«Chefe dos araguaias, tu és um joven guerreiro; pergunta a Camacan que te gerou, qual deve ser a dôr do pai, que não póde vingar a morte do filho.»
O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido pelo tufão.
Pojucan tinha sua taba mais lonje, na outra marjem do rio. Elle partira na ultima lua para rastejar a marcha dos tapuias; e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.
Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que elle buscava na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava prizioneiro na taba dos araguaias o combate da morte.
Anciãos e guerreiros emudeceram. Todos respeitavam a dôr do pai, e não ouzavam perturbal-a.
Jacamim, a mãi de Pojucan, aproximára-se. O grande chefe ouviu seu gemido.
—A espoza de Itaquê não chora na prezença do matador de seu filho.
Á voz do espozo, a mãi teve força para esconder no seio sua tristeza, e mostrar-se digna do grande chefe dos tocantins.
Ubirajara falou:
—A vingança é a gloria do guerreiro; Tupan a deu aos valentes. Ubirajara venceu Pojucan em combate leal, e aceita o dezafio de Itaquê e de todos os chefes tocantins.
—Tu és meu hospede; emquanto Itaquê brandir o grande arco da nação tocantim, ninguem ofenderá o amigo de Tupan na taba de seus guerreiros.
Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o estranjeiro a fumaça da despedida.
—Parte. O sol que viu o estranjeiro na cabana hospedeira o acompanhará amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais velozes que o nandú, partirão para levar-te a morte.
Ubirajara tomou suas armas e disse:
—O hospede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins; tu verás chegar o guerreiro inimigo.
Itaquê seguiu o estranjeiro até o terreiro; em torno delle se reuniram os abarés, os moacaras e os guerreiros para assistirem á partida.
Ubirajara caminhou com o passo lento e grave até o fim da taba.
Chegado ali, tornou rapido á entrada da cabana, e retrocedeu apagando no chão o vestijio de seus passos.
A nação tocantim o observava imovel.
Por fim o estranjeiro postou-se no centro da ocara e com o formidavel tacape vibrou no largo escudo um golpe que repercutiu pela taba como o estrondo da montanha.
—O hospede passou o lumiar da cabana que o tinha acolhido, e apagou seu rasto na taba dos tocantins.
«Quem está aqui é um guerreiro armado, que piza senhor a taba de seus inimigos.
«Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande chefe dos araguaias, te envia a guerra na ponta de sua seta.»
Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê levantou os olhos e viu cravada na figura do tucano, que era o simbolo da nação, a seta de Ubirajara.
Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.
Disse o morubixaba:
—A lei de hospitalidade é sagrada. A cólera do estranjeiro não deve perturbar a serenidade do varão tocantim.
Depois voltou-se para o inimigo:
—Ubirajara, grande chefe dos araguaias: Itaquê, o pai da poderoza nação tocantim aceita a guerra que tu lhe enviaste. Recebe em teu escudo o penhor do combate.
A corda do grande arco da nação tocantim brandiu, e a seta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.
—Vai buscar teus guerreiros e nós combateremos á frente das nações.
—Ubirajara combaterá até que lhe restituas a espoza; assim como elle a conquistou a seus rivais, saberá conquistal-a a ti e á tua nação.
O chefe araguaia partiu. No seio da floresta encontrou Arací que o esperava.
A formoza virjem fôra á cabana do cazamento buscar a rêde nupcial e preparar-se para acompanhar o espozo.
—Ubirajara parte; mas antes de cinco sóes elle estará aqui para te conquistar á tua nação.
—A espoza te acompanha. Teu braço valente já a conquistou; e ella entregou-se a seu senhor. Arací te pertence; deves leval-a.
A virjem tocantim dezejava seguir Ubirajara á taba dos araguaias. Falava em sua alma a ternura da espoza e da irmã.
Partindo, ella unia-se para sempre a seu guerreiro, e esperava que o amor o moveria a salvar Pojucan.
Ubirajara pensou e disse:
—Se Ubirajara tivesse rompido a liga de Arací, ella era sua espoza, e ninguem a arrebataria de seus braços. Mas a virjem tocantim não póde abandonar a cabana onde naceu sem a vontade de seu pai.
Arací suspirou:
—Ubirajara vai deixar a lembrança de Arací nos campos dos tocantins. Jandira o espera na taba dos araguaias, e lhe guarda o seu sorrizo de mel.
—A luz de teus olhos, Arací, estrela do dia, foi buscar Ubirajara na taba dos seus, onde resoavam os cantos de seu triunfo, e o trouxe á tua cabana.
«Quando elle partiu encontrou Jandira, e para que a filha de Majé não o acompanhasse a deu a Pojucan, como espoza do tumulo.»
—O goaná do lago vôa lonje, para banhar-se nas aguas da chuva que alagaram a varzea; mas logo volta ao seu ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.
—Ubirajara é um guerreiro; elle não aprende com o goaná do lago, que foje do perigo, mas com o gavião, grande chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde assentou a sua oca.
—Se Ubirajara amasse a espoza, tambem não a[79] abandonaria. Os braços de Arací já cinjiram o colo de seu guerreiro. O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus galhos.
Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Arací:
—Itaquê respeitou a lei de hospitalidade no corpo de Ubirajara, Ubirajara não deixará a traição na terra hospedeira.
«Arací não deve querer para espozo um guerreiro menos generozo do que seu pai.»
A virjem emudeceu. Ella sabia que a honra é a primeira lei do guerreiro.
Antes de partir, o chefe consolou a espoza:
—Ubirajara vai pedir ao gavião suas azas para voltar ao seio de Arací. Elle virá á frente de sua nação, conduzido pela luz de teus olhos.
«As outras mulheres são o premio de um combate entre os servos de seu amor. Arací terá essa gloria, que ella será o premio da maior guerra que já viram as florestas.»
O chefe araguaia pôz as mãos nos hombros de Arací; duas vezes uniu o seu ao rosto della, por uma e outra face, para exprimir que nada os podia separar.
Quando o guerreiro dezapareceu na floresta, Arací caminhou para a cabana do espozo, que ficára triste e solitaria.
A virjem fechou a porta; sentou-se na soleira, e cantou sua tristeza.
Dois sóes tinham passado, e viera a noite.
A ultima estrela se apagava no céu, quando Ubirajara pizou os campos dos araguaias.
Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano. A voz da nação araguaia derramou-se ao lonje pelo vale, como o estrondo da montanha que arrebenta.
Com o primeiro raio do sol que subia o pincaro da serra, chegaram á grande taba os chefes das cem tabas araguaias, com todos seus guerreiros, convocados á ocara da nação.
Ubirajara mandou que Pojucan, o prizioneiro, viesse á sua prezença:
—Vê o mar dos meus guerreiros que enche a terra, como as aguas do grande rio quando alaga a varzea. Elles esperam o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.
«A nação tocantim carece neste momento do braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o socorro de teu valor, para que se aumente a gloria de Ubirajara, seu vencedor.
«Tu és livre, Pojucan; parte e vôa, que a guerra dos araguaias te segue os passos.»
O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio:
—Pojucan é um chefe ilustre; não merece esta dezhonra. Tu lhe prometeste a morte dos bravos. Elle exije o combate.
O chefe araguaia contou a maranduba da hospitalidade:
—Ubirajara não sabia que Pojucan era filho de Itaquê; pois elle nunca pizaria como hospede a cabana de um guerreiro, a quem tivesse decepado um filho. É precizo que recuperes a liberdade para que não se diga que Ubirajara surpreendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins.
Pojucan não respondeu. Elle reconhecera que a[81] honra de seu vencedor exijia sua volta á taba dos seus.
—Parte. Nós combateremos á frente das nações. Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois delle terás a gloria de ser vencido outra vez por este braço.
—Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro. Se Tupan não consente que Pojucan seja vencedor, elle não quer maior gloria do que a de morrer combatendo Ubirajara.
Pojucan foi á cabana de seu vencedor buscar as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apoia ao tronco do ipê, e meditou.
Quando passou o chefe tocantim que voltava á sua taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:
—Os olhos de Ubirajara te acompanham; tu és irmão de Arací, e vais para junto della. Dize á estrela do dia, que seu espozo está com ella.
O conselho dos abarés se reunira para meditar sobre a guerra. O velho Majé, a quem irritava o dezaparecimento da filha, reparou que sem o voto do carbeto se convocasse a nação.
Veiu um mensajeiro chamar o grande chefe para o carbeto. Ubirajara chegou. Antes que falasse a voz dos anciãos, o guerreiro levantou o arco e disse:
—O conselho dos anciãos governa a taba, e medita nella coizas da paz. Toda a nação respeita sua prudencia e sabedoria.
«Mas emquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguaias, tem a guerra fechada em sua mão.
«Quando elle soltar o grito de combate, a voz que falar da paz emudecerá para sempre, ainda que venha da cabeça do abaré que a lua já embranqueceu.
«Quem não quizer assim, venha arrancar da mão[82] de Ubirajara este arco que elle conquistou por seu valor.»
Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou, e decidiu que a maior gloria e sabedoria da nação era ter o seu grande arco de guerra na mão de um chefe como Ubirajara.
Camacan tratou com os anciãos ácerca da defeza das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.
Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela marjem do grande rio, elle viu que uma nação tapuia se preparava para assaltar a taba dos tocantins.
O grande chefe tocou a inubia, cuja voz chamava o joven Murinhem, primeiro dos cantores araguaias.
Correu o nhengaçára á prezença do grande chefe, e delle recebeu a mensajem que devia levar ao campo inimigo.
Os cantores eram respeitados por todas as nações das florestas, como os filhos da alegria; pelo que serviam de mensajeiros entre as nações em guerra.
Elles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum guerreiro ouzava ofender aquelle a quem Tupan concedera a fonte da alegria.
Murinhem atravessou rapido a campina e aprezentou-se em frente de Canicran, chefe dos tapuias.
—Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco da poderoza nação araguaia, te manda, a ti[83] quem quer que sejas, e a todos quantos te obedecem, a sua vontade.
O tapuia rujiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros araguaias que o cercava, e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo sombrio e imovel no meio dos borbotões da cachoeira.
Os guerreiros de Canicran só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicran afronta a cólera de Tupan e das nações que elle gerou. Dize, mensajeiro, o que pede Ubirajara, ao grande chefe dos tapuias.
—Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A nação tocantim aceitou a sua flecha de dezafio, e elle não consente que ninguem combata seu inimigo, antes de o ter vencido.
—Torna e dize ao grande chefe araguaia, que Canicran veiu trazido pela vingança. Pojucan, um dos chefes tocantins penetrou em sua taba e incendiou a cabana do pajé, que foi devorado pelas chamas.
«Ubirajara é um grande chefe araguaia; elle que diga se o pai da nação póde sofrer tão dura afronta. Canicran escuta a voz de sua amizade.»
O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão e deu ao mensajeiro a haste emplumada com azas negras do anun, que era o emblema guerreiro de sua nação.
—Toma; entrega ao grande chefe araguaia o penhor da aliança.
Murinhem partiu e foi á taba dos tocantins levar igual mensajem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu:
—Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a seta do dezafio, Pojucan tinha levado a guerra á taba dos tapuias.
«Canicran veiu trazido pela vingança; e a nação[84] tocantim não póde recuzar o combate. Mas Itaquê sabe honrar seu nome; se Ubirajara quer, elle combaterá juntamente os dois inimigos.»
O mensajeiro tornou ao campo dos araguaias com as respostas dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.
—Escuta a vontade de Ubirajara para leval-a aos inimigos. O grande chefe araguaia não roubará a Canicran a gloria da vingança; elle respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita sua aliança. Restitue o penhor que recebeste.
«Itaquê póde aceitar o combate que Pojucan foi buscar; Ubirajara não ofende o nome de um guerreiro, ainda mais de um morubixaba, e do pai de Arací.
«O chefe dos araguaias não carece de auxilio para triunfar de seus inimigos: dezeja que a nação tocantim derrote aos tapuias, para ter elle a gloria de vencer ao vencedor.
«Se Itaquê não póde repelir os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os barbaros; e depois de varrel-os das florestas, combaterão as duas nações.
«Se os tocantins necessitam de aliados para rezistir ao ímpeto dos araguaias, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que elles venham.
«Murinhem falará assim a um e outro chefe; a ambos dirá que a cabana onde estiver Arací fica sob a guarda de Ubirajara; quem nella penetrar como inimigo, sofrerá a morte vil do cobarde.»
O guerreiro deixou a voz do chefe e falou com a voz de espozo:
—A Arací levarás o canto de amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a rêde nupcial, e não deixe nossa cabana, emquanto Ubirajara não a fôr buscar.
«Conta-lhe tambem que o canitar que ella teceu, ainda não deixou a cabeça de seu guerreiro e ha de acompanhal-o sempre.»
A um lado da imensa campina move-se a multidão dos guerreiros tocantins, do outro lado a multidão dos guerreiros tapuias.
As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se transformam em rios e atravessam o vale.
De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremetendo travaram a batalha.
Itaquê achou-se em frente de Canicran. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fôra vencido.
Emquanto viverem os formidaveis guerreiros, não é possivel quebrar a flecha da paz entre as duas nações.
Era precizo que um delles morresse, para que o vencedor encostasse o tacape do combate, e désse repouzo á sua nação para reparar os estragos da guerra.
Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram imoveis, contemplando o pavorozo combate.
Ubirajara, de lonje, apoiado em seu grande arco, admirava os dois guerreiros, e pensava qual não seria o seu orgulho em vencel-os a ambos.
Durára a peleja o espaço de uma sombra. Em[86] torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que se tinham espedaçado aos golpes de cada um.
Imoveis no mesmo logar, só ajitavam a cabeça e os braços, semelhantes a dois condores que, de garras prezas aos pincaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.
Um rujido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e rolou pelas profundezas da floresta.
Paan, a seta, era o ultimo filho de Canicran. Ainda corumim, pelejava ao lado do irmão, o guerreiro Creban, cujo hombro mal alcançava com o braço.
Elle tinha nos olhos a vista da gaivota, e nas setas de seu arco, feitas de espinhos de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo do guanumbí.
Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as motuças traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rapidas e certeiras que as vespas venenozas.
Paan saltára sobre os hombros do guerreiro Creban para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicran, teve orgulho e inveja do pai.
Itaquê desfechára tão formidavel golpe, que o tacape e escudo de Canicran se espedaçaram em suas mãos, deixando-o á mercê do inimigo.
O chefe tocantim arrojou-se, e já sua mão decia sobre a espadua do tapuia para fazel-o prizioneiro.
O arco de Paan sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca humedecera uma lagrima, choraram sangue.
As setas do corumim tinham vazado as pupilas do fero guerreiro cuja vista era raio. Assim a jandaia rôe o grelo do procero coqueiro.
Foi então que Itaquê soltou o rujido pavorozo que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto[87] sossobrou no peito dos guerreiros, e rompeu em um grito de horror.
Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor.
A mão direita abarcou o penacho e a cabeleira de Canicran, a esquerda entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o queixo.
Separaram-se os braços do guerreiro cégo, e a cabeça de Canicran abriu-se como um côco que se fende pelo meio.
Ajitando no ar o craneo sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fujia.
Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.
O velho heróe voltou á cabana conduzido por Pojucan:
—Tupan viu que Itaquê não podia ser vencido pela mão dos homens, e quiz vencel-o elle mesmo pela mão de um menino.
Quando Ubirajara viu o exito do combate, lamentou que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que elle o vencesse.
Seus olhos descobriram Paan que fujia no meio dos destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não chegou a retezar a seta.
A aguia não persegue a andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.
O chefe chamou á sua prezença Tubim, um dos jovens caçadores que tinham acompanhado a guerra para prover o alimento.
—Tubim tem as azas da abelha; se elle alcançar o corumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome de Abeguar.
O joven caçador seguiu o olhar do chefe, e sumiu-se num turbilhão de poeira. Quando os vagalumes começaram a luzir no escuro da mata, elle estava de volta no campo dos araguaias e trazia o corumim fechado nos braços.
Nessa mesma noite Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor do vôo, em honra da façanha que tinha realizado.
Os cantores entoaram seu louvor; e o joven caçador teve a gloria de receber os aplauzos dos moacaras de sua nação, e de um chefe como Ubirajara.
Ao raiar da manhã, Murinhem foi á taba dos tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o corumim.
Quando chegou em frente á cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no terreiro sentado em uma sapopema.
O guerreiro fitava os olhos no céu, onde o calor lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que para sempre o abandonára.
Então o velho guerreiro abaixava os olhos para terra, como se buscasse o logar do repouzo.
Quando soaram lonje os passos dos estranjeiros, o chefe alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recuzavam.
Murinhem chegou e disse:
—Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança. Este é Paan, o filho de Canicran. Elle te roubou a vista; mas não salvou o pai de tua mão terrivel. Faze do corumim tapuia um mancebo tocantim; e[89] elle será a luz de teus olhos e caminhará na frente do grande chefe para abrir-lhe o caminho da guerra.
Paan avançou:
—O filho de Canicran jámais será escravo; naceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou. Emquanto o ouriço viver nas florestas, elle roubará seus espinhos para furar os olhos dos tucanos.
Itaquê pouzou a palma da mão na cabeça do menino:
—O corumim que ama seu pai é filho de Itaquê. Tu és livre, Paan; vai caçar o ouriço. Quando fôres um guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem tua audacia.
O chefe voltou-se para o cantor:
—Tupan tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas aumentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatel-o um inimigo digno de seu valor.
Murinhem tornou ao chefe araguaia com esta resposta.
Quando partia o cantor, chegaram á cabana de Itaquê os abarés da nação tocantim.
Os anciãos sentaram-se em torno do guerreiro cégo; e bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.
Falou Guaribú:
—O grande arco da nação carece de uma mão robusta para brandir sua corda, e de um olho seguro para dirijir sua seta. Itaquê é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer aos mais[90] valentes dos inimigos; seu braço fere como o raio. Mas a luz fujiu de seus olhos e elle não póde mais abrir o caminho da guerra.
O velho chefe ergueu-se com o passo trôpego. Alcançando o grande arco dos tocantins abraçou-se com elle e falou-lhe.
—Quando Itaquê te recebeu da mão do grande Javarí elle pensava que só a morte o separaria de ti, para transmitir-te a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco levado pela corrente, que não sabe onde vai.
Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho tivera os olhos. Era a lagrima que a desgraça lhe deixára.
Os abarés meditaram. Guaribú falou de novo:
—O grande arco da nação que tu recebeste do grande Javarí, teu pai, não te abandonará. Elle fica em tua mão invencivel; haverá outro arco na mão do mais valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas emquanto Itaquê viver, sua voz governará a nação que elle defendeu com seu braço.
O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorrizo como o negro rochedo sobre o qual desliza um raio do luar.
—Pais da sabedoria, abarés, olhai aquelle jatobá que se levanta no meio da campina, e que eu só posso ver agora na sombra de minha alma.
«Elle tem muitas raizes que o sustentam nos ares; tem muitos galhos que o cercam e estendem ao lonje a sua rama. Mas o tronco é um só.
«As grossas raizes são os abarés que sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os moacaras que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numeroza que as folhas das arvores. O tronco é o chefe da nação; se elle se dividir, o jatobá não subirá ás nuvens nem terá forças para rezistir ao tufão.
«O logar de Itaquê é no conselho. O ultimo dente de seu colar de guerra foi o que elle arrancou da boca de Canicran. Convocai os guerreiros, e o que fôr mais forte e mais valente empunhe o grande arco da nação.
O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas tribus.
O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros que chegavam. O grande arco da nação, que elle segurava direito, parecia um dos esteios da cabana, e tinha a corda tão grossa como a da rêde do chefe.
Os mais famozos guerreiros tocantins se aprezentaram para disputar o grande arco; muitos conseguiram vergal-o; mas a seta não partiu.
Itaquê escutava com o ouvido atento: o som delle conhecido não feriu os ares.
—Onde está Pojucan? perguntou o velho chefe.
O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do arco chefe, que elle devia ser o primeiro a disputar.
—Teu filho te escuta, respondeu.
—Empunha o arco chefe; se ha um guerreiro tocantim que possa conquistal-o esse deve ser do sangue de Itaquê.
Pojucan recebeu o arco. Fincando nelle os pés, o guerreiro arrojou-se para traz como a giboia quando se enrista para armar o bote.
A seta partiu, e foi cravar a cabeça de um chefe tapuia, fincada na estaca, á entrada da taba.
Itaquê curvára a cabeça. Elle ouviu brandir a arma; não era, porém, aquelle o zunido da corda do arco, quando o vergava sua mão possante.
Pojucan depôz o arco chefe aos pés de Itaquê e disse:
—Pojucan mostrou que em suas veias corre o[92] sangue generozo de Itaquê. Mas o grande arco peza em sua mão. Só ha um guerreiro na terra que o possa brandir como Itaquê: e esse não cinje a fronte com o cocar das penas de tucano.
—Pojucan negou a Itaquê esta ultima consolação. O arco invencivel do grande Tocantim que foi o pai da nação, vai sair de sua geração. Tocantim o transmitiu a seu filho Javarí, que me gerou; mas eu não sube gerar com seu sangue um guerreiro digno delles.
Os tapuias voltaram; e com elles vinha Agniná á frente de sua nação, para vingar a morte de Canicran, seu irmão.
Era grande a multidão dos guerreiros; e maior a tornavam a sanha da vingança e a fama do chefe que a conduzia.
Não eram tantos os tocantins; mas bastaria seu valor para igualal-os, se não lhes faltasse a cabeça, que reje o corpo.
A poderoza nação estava como o bando de caitetús que perdeu o pai, e desgarra-se pela floresta, correndo sem rumo.
Os mais valentes moacaras, chefes das tribus, esperavam pelo grande chefe da nação para abrir-lhes o caminho da guerra.
Os abarés meditaram. Elles não podiam inventar[93] um guerreiro capaz de suceder a Itaquê; mas não se rezignavam a abater a gloria da nação, trocando o arco invencivel do grande Tocantim por outro arco mais leve, que Pojucan manejasse.
Tambem Pojucan anunciára, que não podendo brandir o arco de Itaquê, jámais empunharia outro arco chefe, menos gloriozo do que o do grande Tocantim.
Abarés, chefes, moacaras, guerreiros, toda a nação se reuniu em torno do heróe cégo.
Daquelle que durante tantas luas defendera a nação com a força de seu braço, e a protejera com o terror de seu nome, esperavam ainda a salvação.
O velho ouviu a voz dos abarés, a voz dos chefes, a voz dos moacaras, a voz dos guerreiros, e disse:
—Itaquê ainda póde combater e morrer por sua nação; mas sem a luz do céu, elle não póde mais abrir a seus filhos o caminho da vitoria.
«O braço de Itaquê defendeu sempre a nação tocantim; quer ella ser defendida agora pela palavra daquelle, que não tem mais para dar-lhe senão a experiencia de sua velhice?
«Pensem os abarés, os chefes, os moacaras e os guerreiros.»
Guaribú respondeu:
—A nação pensou. Fala e todos obedecerão á tua palavra, como obedeciam ao braço de Itaquê.
—A voz do coração diz ao neto de Tocantim, que a gloria da nação que elle gerou, não se póde extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo seio de Arací, se unirá a outro sangue generozo para brotar maior e mais ilustre.
«Assim a terra onde naceu uma floresta de acajás recebe o limo do rio e gera nova floresta mais frondoza que a outra.
«Jacamim, chama Arací, a filha de nossa velhice. E vós, abarés, chefes, moacaras e guerreiros, seguí-me.»
O velho heróe atravessou a taba guiado por Arací.
A nação o seguia em silencio.
Quando o guerreiro cégo passava com a mão no hombro da virjem formoza que dirijia o seu passo incerto, os guerreiros lembravam-se do tronco já morto que a rama do maracujá ainda sustenta de pé junto ao penedo.
Os cantores iam adiante, e entoavam um canto de paz.
Um mensajeiro de Itaquê o precedera no campo dos araguaias.
Ubirajara, cercado de seus abarés, chefes, moacaras e guerreiros, veiu ao encontro do morubixaba dos tocantins.
A alma do grande chefe araguaia encheu-se da alegria de ver Arací; mas elle retirou os olhos da espoza, para que o amor não perturbasse a serenidade do varão.
—Ubirajara está em face de Itaquê; para combatel-o se trouxe a guerra, para abraçal-o se trouxe a paz.
—Nunca Itaquê pediu a paz ao inimigo que lhe trouxe a guerra, antes de o vencer; nem teria vivido tanto para cometer essa fraqueza. Elle vem trazer-te a vitoria para que tu a repartas com seu povo.
O velho heróe avançou o passo:
—Chefe dos araguaias, tu levaste a guerra á taba dos tocantins para conquistar Arací, a filha de minha velhice.
«Por teu heroismo, e ainda mais pela nobreza com que restituiste a liberdade a Pojucan, tu merecias uma espoza do sangue tocantim.
«Mas desde que tu ameaçaste tomal-a pela força de teu braço, Itaquê não podia mais conceder-te a filha de sua velhice, senão depois que abatesse teu orgulho.
«Elle preparava-se para te combater, e á tua nação; mas fujiu-lhe dos olhos a luz que dirije a seta da guerra; e não ha entre seus guerreiros um que possa brandir o arco do grande Tocantim.»
Quando pronunciou estas palavras, a voz do velho guerreiro sossobrou-lhe no peito:
—O arco de Itaquê é como o gavião que perdeu as azas e não póde mais levar a morte ao inimigo. As andorinhas zombam de suas garras.
«Empunha o arco de Itaquê, chefe dos araguaias, e tu conquistarás por teu heroismo uma espoza e uma nação.
«Á espoza farás mãi de cem guerreiros como Itaquê; e á nação conservarás a gloria que ella conquistou quando o filho de Javarí a conduzia á guerra.
«Tupan dará a teu braço esta força para que o sangue de Itaquê brote mais vigorozo e os netos de Tocantim dominem as florestas.»
Ubirajara sorriu:
—Chefe dos tocantins, teus olhos não podem ver o grande arco da nação araguaia; mas pergunta á tua mão, se o arco que Camacan brandia invencivel e agora empunha Ubirajara, cede ao arco de Itaquê.
O velho heróe palpou o arco chefe dos araguaias[96] e vergou-lhe a ponta ao hombro, como se a haste fosse de taquarí.
Ubirajara travou do arco de Itaquê e desdenhando fincal-o no chão, elevou-o acima da fronte. A flecha ornada de penas de tucano partiu.
O semblante de Itaquê remoçou, ouvindo o zunido que lhe recordava o tempo de seu vigor. Era assim que elle brandia o arco outr'ora, quando as luas creciam aumentando a força de seu braço.
O velho inclinou a fronte para escutar o sibilo de sua flecha que talhava o azul do céu. Os cantores não tinham para elle mais doce harmonia do que essa.
Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de Camacan. A flecha araguaia tambem partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava á terra.
As duas setas deceram trespassadas uma pela outra como os braços do guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade.
Ubirajara apanhou-as no ar:
—Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nação tocantim tão poderoza como a nação araguaia. Ambas serão irmãs na gloria e formarão uma só, que ha de ser a grande nação de Ubirajara, senhora dos rios, montes e florestas.
O chefe dos chefes ordenou que tres guerreiros araguaias e tres guerreiros tocantins, ligassem com o fio do crautá as hastes dos dois arcos.
Quando o arco de Camacan e o arco de Itaquê não fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou na mão possante e mostrou-o ás nações:
—Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de minhas nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes chefes. Suas flechas são gemeas, como as duas nações, e voam juntas.
Ambas as cordas brandiram a um tempo. A seta[97] araguaia e a seta tocantim partiram de novo como duas aguias que par a par remontam ás nuvens.
Quando se calou a pocema do triunfo, Ubirajara caminhou para a filha de Itaquê:
—Arací, estrela do dia, tu pertences a Ubirajara que te conquistou pela força de seu braço. Agora que é senhor, elle espera tua vontade.
A formoza virjem rompeu a liga vermelha que lhe cinjia a perna, e atou-a ao pulso de seu guerreiro.
Ubirajara tomou a espoza aos hombros e levou-a á cabana do cazamento.
O jasmineiro semeava de flôres perfumadas a rêde do amor.
O outro sol rompia, quando os tapuias estenderam pela campina a multidão de seus guerreiros.
Na frente assomava Agniná, a montanha dos guerreiros, ainda mais feroz do que o irmão, o terrivel Canicran.
De um lado e do outro seguiam-se os chefes, cada um á frente de seus guerreiros.
Ubirajara escolheu mil guerreiros araguaias e mil guerreiros tocantins, com que saiu ao encontro dos tapuias.
Depois que desdobrou sua batalha pela campina, o chefe dos chefes caminhou só para o inimigo.
Quando chegava a meio do campo, os tapuias levantaram a pocema de guerra, que atroou os ares, como o estrépito da cachoeira.
Um turbilhão de setas crivou o longo escudo do[98] heróe, que ficou semelhante ao grosso tronco da jussára, erriçado de espinhos.
Ubirajara embraçou o escudo na altura do hombro, e com o pé brandiu sete vezes a corda do grande arco gemeo.
As setas vermelhas e amarelas subiram direitas ao céu e se perderam nas nuvens.
Quando voltaram, Agniná e os chefes que obedeciam a seu arco, tinham cada um fincado na cabeça o dezafio do formidavel guerreiro.
Enfurecidos mais pelo insulto, do que pela dôr, arremessaram-se contra o inimigo que os esperava coberto com seu vasto escudo.
Agniná era o primeiro na corrida, e o primeiro na sanha. Após elle vinham os outros, a dois e dois, lutando na rapidez.
Quando o espozo de Arací viu que elles se estendiam pela campina, como dois ribeiros que se aproximam para confundir suas aguas, o heróe empunhou a lança de duas pontas e soltou seu grito de guerra que era como o bramir do jaguar, senhor da floresta.
Seu pé devorou o espaço; e a lança de duas pontas girou em sua mão, como a serpente que se enrosca nos ares silvando.
Caiu Agniná do primeiro bote; após elle caíram aos dois os chefes tapuias, como caem os juncos talhados pelo dente afiado da capivara.
Então o heróe soltou seu grito de triunfo, que era como o rujido do vento no dezerto:
—Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem por arma uma serpente.
«Eu sou Ubirajara, o senhor das nações, o chefe dos chefes, que varre a terra, como o vento do dezerto.»
O heróe estendeu a vista pela campina, e não descobriu mais o inimigo, que se sumia na poeira.
Ubirajara lançou-lhe seus guerreiros, que tinham fome de vingança; porém o terror de sua lança dava azas aos fujitivos.
Desde esse dia nunca mais um tapuia pizou as marjens do grande rio.
Ubirajara voltou á cabana, onde o esperava Arací.
A espoza despiu as armas de seu guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o macio cotão da monguba, e cobriu-o do balsamo fragrante da embaiba.
Encheu depois de generozo cauim a taça vermelha feita do côco da sapucaia; e aplacou a sêde do combate.
Emquanto nas grandes tabas se preparava a festa do triunfo e o heróe repouzava na rêde, Arací foi ao terreiro, e voltou conduzindo Jandira pela mão.
—Arací, tua espoza, é irmã de Jandira. Ubirajara é o chefe dos chefes, senhor do arco das duas nações. Elle deve repartir seu amor por ellas, como repartiu sua força.
A virjem araguaia pôz no guerreiro seus olhos de corça.
—Jandira é serva de tua espoza; seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ella ficará em tua cabana para ensinar a tuas filhas como uma virjem araguaia ama seu guerreiro.
Ubirajara cinjiu ao peito com um e outro braço, a espoza e a virjem.
—Arací é a espoza do chefe tocantim; Jandira[100] será a espoza do chefe araguaia; ambas serão as mãis dos filhos de Ubirajara, o chefe dos chefes, e o senhor das florestas.
As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do heróe.
Foi esta poderoza nação que dominou o dezerto.
Mais tarde, quando vieram os caramurús, guerreiros do mar, ella campeava ainda nas marjens do grande rio.
Este livro é irmão de Iracema.
Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum titulo responde melhor pela propriedade, como pela modestia, ás tradições da patria indijena.
Quem por desfastio percorrer estas pajinas, se não tiver estudado com alma brazileira o berço de nossa nacionalidade, ha de estranhar entre outras coizas a magnanimidade que resumbra no drama selvajem e lhe fórma o vigorozo relevo.
Como admitir que barbaros, quais nos pintaram os indijenas, brutos e canibais, antes féras que homens, fossem sucetiveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da creação?
Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o periodo colonial, devem ser lidos á luz de uma critica severa. É indispensavel sobretudo escoimar os fatos comprovados das fabulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espiritos acanhados, por demais embuidos de uma intolerancia rispida.
Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de seculos, queriam esses forasteiros achar nos indijenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de idéas e costumes. Não se lembravam, ou não sabiam, que elles mesmos provinham de barbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os selvajens americanos.
Desta prevenção não escaparam muitas vezes espiritos graves e bastante ilustrados para escreverem a historia sob um ponto de vista mais largo e filozofico.
Entre muitos citarei um exemplo. Barloeus referindo as justas que se faziam entre os selvajens para obterem em premio de seu valor a virjem mais formoza, não se esqueceu de acrecentar este comento—finis spectantium est voluptas.
Narrados com este pessimismo, as cenas da cavalaria, os torneios e justas não passariam de manejos inspirados pela sensualidade. Nada rezistiria á censura ou ao ridiculo.
Por igual teor, senão mais grosseiras, são as apreciações de outros escritores ácerca dos costumes indijenas. As coizas mais poeticas, os traços mais generozos e cavalheirescos do carater dos selvajens, os sentimentos mais nobres desses filhos da natureza, são deturpados por uma linguajem impropria, quando não acontece lançarem á conta dos indijenas as extravagancias de uma imajinação desbragada.
Releva ainda notar, que duas classes de homens forneciam informações ácerca dos indijenas: a dos missionarios e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acôrdo nesse ponto, de figurarem os selvajens como féras humanas. Os missionarios encareciam assim a importancia de sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os indios.
Faço estas advertencias para que, ao lerem as palavras textuais dos cronistas citados nas notas seguintes, não se deixem impressionar por suas apreciações muitas vezes ridiculas. É indispensavel escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado, para fazer uma idéa exata dos costumes e indole dos selvajens.
Grande rio.—Os tupís chamavam assim ao maior rio que existia na rejião por elles habitada: e daí rezultou ficarem tantos rios com essa dezignação na lingua orijinal ou traduzida.
O rio grande de que se trata nesta lenda é o Tocantins, em cujas marjens se passa a ação dramatica.
Jaguarê.—Nome composto de Jaguar, a onça e o sufixo ê que na lingua tupí reforça emfaticamente a palavra a que se liga. Jaguarê, significa, pois, a onça, verdadeiramente onça, digna do nome, por sua força, corajem e ferocidade.
Uiraçaba.—Nome que davam os tupís á aljava, de uira—seta e aba—dezinencia exprimindo o logar, modo e instrumento; literalmente «o que tem a seta.»
Os selvajens a faziam, ou do tubo de taquarussú, ou da casca de certas arvores, guarnecida de fios embebidos de rezina, o que as tornava muito rezistentes.
Nome de guerra.—«Mal nacia a criança logo se lhe punha nome. Hans Stade achou-se prezente numa dessas ocaziões. Convocou o pai aos mais proximos vizinhos de dormitorio, pedindo-lhes para o filho um nome viril e terrivel; não lhe agradando nenhum dos propostos, declarou que ia escolher o de um de seus quatro antepassados, o que daria fortuna ao rapaz, e repetindo-o em voz alta, fixou a escolha. Ao chegar á idade de ir á guerra, dava-se outro nome ao mancebo que aos seus titulos ia acrecentando um por inimigo que trazia para caza a ser imolado. Tambem a mulher tomava adicional apelido quando o marido dava uma festa antropofaga. De objetos viziveis se tirava o cognome, determinando o orgulho ou a ferocidade a escolha. O epiteto grande frequentemente se compunha com o nome. Southey, H. do Brazil, tom. 1o, cap. 8o, paj. 336.
Póde-se ler tambem a este respeito o que diz Gabriel Soares, cit. no cap. 160, ácerca do nome que tomava o tupinambá quando matava o contrario, e no cap. 164 onde acrecenta: «Acontece muitas vezes cativar um tupinambá a um contrario na guerra, onde o não quiz matar para o trazer cativo para sua aldêa, onde o faz engordar com as ceremonias já declaradas para o deixar matar a seu filho quando é moço e não tem idade para ir á guerra, o qual o mata em terreiro, como fica dito, com as mesmas ceremonias; mas atam as mãos ao que ha de padecer, para com isso o filho tomar nome novo e ficar armado cavaleiro e mui estimado de todos.»
A este trecho de Gabriel Soares é precizo dar o devido desconto ácerca da engorda do cativo, e do papel insignificante que reprezenta o mancebo. Devemos crer que entre gente, cuja alma era a guerra, o titulo de guerreiro não se conferia ao mancebo que não fizesse prova real de seu esforço e corajem.
Ives d'Evreux, cap. XXI, trata minuciozamente da graduação que a idade estabelecia entre os tupís. Havia para os guerreiros seis classes: 1o das crianças até dois anos, mitanga, que significa chupador ou mamador; 2o curumim mirim, isto é o pequeno que balbucia; compreendia os meninos até sete anos; 3o curumim simplesmente, correspondia á segunda infancia de 7 a 15 anos; 4o curumim-guassú, era a adolecencia, em que os rapazes se empregavam na caça e na pesca; 5o aba—o homem, indicava o principio da virilidade, o qual logo que se cazava tornava-se apiaba, o varão, ou como diz d'Evreux, mendarama, o cazado; 6o tijubaê, o ancião ou veterano, o homem de experiencia, guerreiro consumado.
Jandira.—O nome é jandaíra, de uma abelha que fabrica excelente mel; Jandira é uma contração mais eufonica daquelle nome, que tambem por sua vez é contração de Jemonhaíra, que fabrica mel.
Aratuba.—Palavra que se compõe de ara—o sol e tuba—infinito do verbo ajub—estar deitado. Vem a ser a significação leito do sol, aplicada pelos indios á montanha do poente, onde o sol se esconde no seu ocazo.
Lança.—O uzo da lança não era comum aos selvajens, que empregavam de preferencia o arco, o tacape, a macana, e a igarapema, especie de remo, que fazia as vezes de partazana. Outros escrevem iverapema; mas o nome é aquelle de igara-pema, espada da canôa; basta ver-lhe a fórma para compreender seu duplo destino.
Craúba.-É a mesma carabiuba dos indios, assim contraída pelo uzo dos nossos sertanejos. Madeira roxa, excessivamente rija, que não cede ao páu-ferro no pezo e na dureza.
A liga vermelha.—Era este um dos mais curiozos e interessantes ritos dos tupís.
Quando a menina atinjia a puberdade, depois de sua purificação, da qual tratam os autores, especialmente Orbigny e Thevet, a mãi punha-lhe nas pernas, abaixo do joelho, uma liga de fio de algodão tinta de vermelho, de tres dedos de largura, e tecida no proprio logar de modo que uma vez fechada, não era mais possivel tiral-a. Vide Gabriel Soares, cap. 153.
A essa liga chamavam tapacora, e não a podia trazer senão a virjem, de modo que se acontecesse quebrar a castidade havia de rompel-a, para que todos conhecessem sua falta. Eis como Gabriel Soares se exprime a este respeito no cap. 152: «E como o marido lhe leva a flôr, é obrigada a noiva a quebrar estes fios para que seja notorio que é feita dona; e ainda que uma moça destas seja deflorada por quem não seja seu marido, ainda que seja em segredo, ha de romper os fios de sua virjindade, que de outra maneira cuidará que a leva o diabo, os quais dezastres lhes acontecem muitas vezes, etc.»
Este simples traço é bastante para dar uma idéa da moralidade dos tupís, e vingal-a contra os embustes dos cronistas, que por não compreenderem seus costumes, foram-lhes emprestando gratuitamente, quanto inventavam exploradores mal informados e prevenidos.
Em que sociedade civilizada se observa tão profundo respeito pela união conjugal, a ponto de não consentir-se que a mulher decaída conserve o segredo de sua falta, e iluda o homem que a busque para espoza?
A rezignação com que a moça culpada rompia a liga da virjindade, e fazia confissão publica de seu erro, é um exemplo da lealdade do carater tupí e da veneração que inspiravam os ritos de sua relijião.
Nega Southey, cap. VIII, que a liga vermelha e o respeito que ella inspirava indicassem guarda da castidade, porquanto a castidade como a caridade é virtude da civilização; do mesmo modo considera o amor uma delicadeza da vida civilizada. São paradoxos de escritor. Sentimentos naturais á creatura humana, dezenvolvem-se nella em qualquer estado e condições.
Não é possivel negar a castidade da mulher tupí; além desse recato da virjindade, prova-a de modo cabal a continencia que homens e mulheres guardavam em certas cir[106]cumstancias. Assim, nenhum homem tinha relações com a mulher inubil, nem ella o consentia; o proprio marido não violava essa lei, embora tivesse a espoza em seu poder. Gabriel Soares cit. Durante a gravidez e a amamentação interrompia-se absolutamente o ajuntamento conjugal. (Barlœus 2a edic.)
Onde está a sociedade civilizada, que observe leis tão rigorozas, e refreie os instintos sensuais com a severidade uzada pelos tupís?
Poderiamos fazer muitas outras observações que rezervamos para um estudo especial ácerca dos selvajens brazileiros.
Tocantim.—Compõe-se de tocano e tim; literalmente o nariz, o rostro do tucano. Nome que tomou um guerreiro por trazer na cabeça o despojo de um tucano com o grande bico da ave; e que transmitido a uma nação selvajem, ficou dezignando o rio a cujas marjens vivia.
Taarí.—Rio que despeja no Tocantins, pouco depois da confluencia do Araguaia. Indica o logar da cena.
Araguaia.—O nome é araguara, de ara e guara, literalmente, os guerreiros das araras, porque uzavam nos seus ornatos das penas encarnadas daquellas aves. Conservei a versão que ficou no nome do rio.
Arací.—Esta palavra tupí compõe-se de ara, dia, e ceí ou cejí, grande estrela. Este ultimo nome davam os indijenas ás pleiades, que lhes serviam para contar os anos.
Cem dos melhores guerreiros.—Nesta e outras frazes identicas, os numerais cem ou mil não reprezentam algarismo[107] exato, que não os tinham os tupís para exprimir numero tão elevado. Traduzem apenas esses termos a dezinencia tiba, com que os tupís dezignavam cópia e multidão.
Canitar.—Enfeite de cabeça. Adotei esta dezignação empregada pelos autores sob a autoridade de Hans Stade por me parecer mais eufonica. A exata lição pede acanga atara.
As duas nações não estão em guerra.—As nações tupís não viviam em um estado perene de guerra, como propalaram alguns escritores. A guerra era frequente; mas não constante. As nações faziam a paz e nella se mantinham até que sobrevinha alguma cauza de rompimento. Então não começavam as hostilidades senão depois de anunciada a guerra ao inimigo, o que se fazia lançando-lhe uma flecha na taba, ou levando-lhe um guerreiro o dezafio.
É uma prova do carater leal dos selvajens. Foi depois da colonização, que os portuguezes, assaltando-os como a feras, e caçando-os a dente de cão, ensinaram-lhes a traição que elles não conheciam.
Pojucan.—Contração de uma fraze tupica.I-pojuca;—significa: eu mato gente. Essas contrações não são arbitrarias; ellas eram da indole da lingua e conformes ao seu sistema de aglutinação. Todas as vezes que os indijenas compunham uma palavra, cerceavam as sílabas dos vocabulos que entravam na compozição, para ligal-as mais eufonicamente.
Lemos em Alfred Maury La Terre et l'homme, cap. VIII, o seguinte trecho:
«Nas linguas americanas, não é sómente uma sinteze que concentra em uma palavra todos os elementos da idéa mais complexa; ha ainda engrazamento (enchevêtrement) das palavras umas nas outras; é o que M. F. Lieber chama incapsulação, comparando a maneira por que as palavras entram na fraze a uma caixa na qual se conteria outra que a seu turno conteria terceira, esta uma quarta, e assim por diante.[108] A incorporação das palavras é por vezes levada á extrema exajeração nesses idiomas, o que produz a mutilação dos vocabulos incorporados.»
Esta observação é da maior justeza e conforma-se de todo o ponto com a indole da lingua, como se vê nas seguintes palavras—A-por-u—como gente—A-poro-tim—enterro gente—A-po-çub—vizito a gente. (Vide Figueira, Gramatica da lingua do Brazil, paj. 51.)
Tapuia.—de taba e puir, o que foje das tabas. Davam os indijenas esse nome a povos mais barbaros e de lingua diversa. Segundo as ultimas investigações etnolojicas, pertenciam esses povos a uma raça diversa da tupí, e muito aproximada, senão conjenere do tipo mongolico. Entretanto Orbigny, L'Homme Américain, sustenta a identidade das duas raças, tapuia e tupí.
Tacape.—Davam os tupís o nome de apem, a um corpo alongado de fórma analoga á espada, e como ella cortante. Daí vinha chamarem a unha—po-apem, espada do dedo; e á raiz que surje da terra e se eleva como um galho—sapopema—raiz espada.
Á sua principal arma de guerra chamavam ita-ca-apem, espada de páu-pedra; ou ita-qui-apem, machado comprido de pedra, por ter sido dessa materia que primeiro o fabricaram, antes de aprenderem a lavrar a madeira.
Ácerca da força dessa arma e da destreza com que a manejavam, diz Lery que um tupinambá com ella armado daria que fazer a dois soldados de espada.
Guerreiro chefe.—Para compreender-se bem a força dessa dezignação, diremos alguma coiza ácerca da hierarquia selvajem.
Como a relijião, era simples o governo dos tupís; mas não careciam delle, segundo inculcam os cronistas: antes o tinham, e bem regulado para o seu estado de civilização.
Podemos distinguir na taba selvajem uma sociedade civil[109] e uma sociedade politica; a primeira reduzida á familia, e a segunda excluziva á subzistencia, defeza e guerra.
A sociedade civil era constituida pela oca, a caza, onde o varão, aba, morava com suas mulheres, sua prole, os servos que trabalhavam para granjear as filhas em cazamento, os cativos que fazia na guerra, e os parentes que agregava a si.
O dono da caza, ou literalmente o que fazia a caza, moacara, era a perfeita imajem do patriarca. Elle governava a sua gente; e formava uma sociedade independente, no seio da grande sociedade politica, de que era membro e para cuja defeza concorria não só por interesse proprio, mas pela honra da nação.
Moacara nos dicionarios significa fidalgo. A tradução resente-se da preocupação do homem civilizado; mas havia realmente uma distinção entre o moacara, chefe da oca, pai de muitos guerreiros, e o simples individuo que ainda não possuia uma familia.
A sociedade politica, taba, era a reunião das ocas. Essa denominação vem de tama, a patria, o berço, a terra natal, e aba dezinencia que indica o logar, modo, instrumento da coiza. Assim, taba significa literalmente onde ou o que faz a patria, isto é, aldeia natal.
O governo da taba, essencialmente democratico, rezidia no conselho dos moacaras, entre os quais predominava a experiencia dos anciãos, que se chamavam abarés ou abaetês; isto é, varões egrejios.
Nações essencialmente guerreiras, tinham um chefe para governal-as nas jornadas e batalhas. A estes davam o nome de tuxava, ou tauxaba, o dono da taba, morubixaba, o que governa o povo; de moro, gente, e aba, dezinencia.
Quando as nações eram grandes e não cabiam numa taba, destacavam-se alguns moacaras com suas familias e formavam novas tabas, sujeitas á taba mãi. Daí se orijinaria a diferença das duas dezignações, vindo então tauxaba a dezignar o simples chefe de uma taba; e morubixaba o chefe da taba primitiva, ou da nação, moro.
Tambem acontecia que muitas vezes um moacara poderozo separava-se de sua nação por cauza de alguma dissenção intestina, e constituia-se independente com seus decendentes, e os guerreiros a elle sujeitos pelo parentesco. Essa oca independente, chamava-se moroca, isto é, oca de gente, de tribu e não mais de familia. O termo moloca tão frequente nos cronistas não é senão corruptela daquelle, e póde corresponder ao de tribu ou horda.
A nomeação do chefe participava da natureza dessa so[110]ciedade democratica e guerreira. O mais audaz e o mais forte impunha-se: a permanencia de sua autoridade, bem como sua extensão, dependia do respeito que elle conseguia infundir a seus guerreiros.
No momento em que surjia outro ambiciozo a disputar o poder, este tornava-se o premio do mais valente. Acontecia então que o vencido com seus sectarios revoltava-se; e daí as frequentes guerras intestinas, que aniquilaram a raça indijena, ainda mais talvez do que a crueldade dos europeus.
Na morte do morubixaba ocorria igual pleito. O filho apossava-se do poder pelo direito de herança; e o conservava se não aparecia algum emulo mais poderozo que lh'o arrebatasse.
Falando com as nossas teorias da civilização, podemos dizer que a baze desse poder executivo era, como nas republicas, o sufragio universal. Mas era o sufragio sempre ativo e vijilante, pronto a inclinar-se ao merecimento superior, onde elle se revelasse.
Entre o chefe guerreiro (poder executivo), e o conselho dos moacaras (poder lejislativo) os conflitos eram inevitaveis. Morubixaba haveria, como o celebre Cunhanbebe, que era um verdadeiro despota. O tacape de muito heróe tupí ha de ter governado tão absolutamente como a espada de Cezar ou de Napoleão.
Outros conflitos tambem se deviam dar frequentemente entre a influencia dos pajés e o poder do chefe ou dos anciãos. Aquelles sacerdotes, cercados do respeito dos guerreiros, fortes pelo prestijio de seus augurios e sortilejios, tentariam insuflados pela ambição governar a taba, ou pelo menos fomentar a rezistencia ao chefe.
Eis em escorço as paixões que deviam ajitar aquella sociedade politica, depois da guerra que era a maior preocupação.
Além das ocas, ou familias, havia na taba uma especie de oca mais vasta e comum. Nessa parece que moravam aquellas pessoas, que já não tinham oca, e estavam a cargo da nação; tais eram as velhas, e por este nome devem-se entender as mulheres sem companhia de marido, nem parentes; os orfãos, aos cuidados daquellas mãis emprestadas; e finalmente as moças que não faziam vida conjugal.
Vejamos agora a sociedade civil, tal como a podemos induzir dos acanhados esclarecimentos que nos deixaram os cronistas.
O cazamento, baze da familia, devia ter alguma ceremonia simbolica, ainda que não passasse da simples entrega da noiva ao varão. Essa minha supozição funda-se no fato[111] de haver entre esses povos um cazamento bem caracterizado, e não simples coito.
A mulher lejitima distinguia-se pelo nome. O marido a chamava temireco, isto é, a verdadeira mãi de meus filhos; emquanto que ás outras mulheres, suas amantes, chamava aguaçaba. O marido tinha tambem um nome especial menda, que o distinguia do simples amante.
Acrece que para obter a noiva o varão sujeitava-se a certas condições, e até mesmo a provas de corajem; donde devemos inferir com boa razão, que não era esse um ato insignificante para os selvajens, a ponto de não o distinguirem com uma fórmula qualquer, elles que em outros pontos eram tão ceremoniozos, como na recepção do hospede, na declaração da paz ou da guerra.
Os cronistas, porém, não se ocuparam disso e todo seu tempo foi pouco para lamentarem a poligamia dos tupís, tirando logo dalí argumento para pintarem os selvajens vivendo a modo de cães.
É uma falsidade. Os tupís tinham moralidade conjugal, e até muito severa. O adulterio era punido de morte; e tambem por isso permitia-se o divorcio por mutuo consentimento.
A poligamia dos tupís foi da mesma natureza da que existiu entre os hebreus; era uma poligamia patriarcal, filha das condições da vida selvajem, e não a poligamia sensual dos turcos e outros povos do oriente, produzida unicamente pelo requinte da libidinajem.
Compreende-se que no estado selvajem ou primitivo, a mulher, fraca para rezistir aos perigos que a rodeavam, tinha necessidade de acolher-se ao amparo e proteção do homem. Por outro lado cada varão, no interesse não sómente de sua gloria, como de seu poder, carecia rodear-se de uma familia numeroza, e de gerar do seu proprio sangue, os seus guerreiros.
Entretanto, e é isto que distingue a poligamia patriarcal, a posse de muitas mulheres não destruia a instituição da familia, bem caracterizada pela preeminencia da primeira mulher ou a verdadeira espoza; e pela adoção dos filhos nacidos das outras mulheres, que se tornavam todos filhos da espoza, ou da verdadeira mãi, temireco.
Muita coiza poderia dizer ácerca da educação dos filhos e da condição da mulher, mas não cabe esse estudo em uma nota. Mais tarde e a propozito é possivel que o faça.
Para a intelijencia do texto basta saber-se que além da espoza, temireco, mãi da familia, das amantes, aguaçabas, que [112]faziam parte da familia na condição de servas, havia—1.o as virjens, cunhantem, mulheres debalde, que pertenciam á familia, e se destinavam para espozas dos guerreiros que as obtivessem pelas provas de esforço e denodo; 2.o as velhas, ou mulheres já privadas de seus maridos, e que ficavam sob a proteção da comunhão, incumbidas da educação dos orfãos, e dos filhos anonimos; 3.o as moças ou mulheres que desprezavam o cazamento e viviam livremente aceitando o amor do guerreiro que lhes agradava, e do qual tinham filhos, que não pertenciam á familia, mas á tribu; eram estas as mulheres que ofereciam seu amor como penhor de hospitalidade ao estranjeiro que chegava á taba; 4.o finalmente, a classe infeliz, abandonada de todo o sentimento e de todo o pudor, á qual davam o nome de morixaba, literalmente coiza de todos; ou, segundo o testemunho de Ives d'Evreux, menondere, que equivalia a ladra; porquanto entendiam os selvajens que a mulher roubava seu primeiro amante dando ou vendendo a outro o amor que lhe pertencia.
Ainda nesta ultima escala, se estão manifestando as leis severas do recato e fidelidade da união sexual entre os selvajens. Além do cazamento lejitimo, havia o concubinato, como existiu entre os romanos, produzindo direito e obrigação reciproca. A mulher que traía a fé conjugal, ou o concubinato, era uma adultera, isto é, uma ladra e decia á ultima infamia. O marido tinha o direito de matal-a; o amante entregava-a ao desprezo da tribu.
Jaguarê agradece a Tupan.—Não achando entre os aborijenes templos e idolos, ainda que alguns cronistas atestam a existencia dos ultimos, foram os colonizadores peremptoriamente declarando ateus a esses povos. Mas logo, com incoerencia flagrante, reconheciam a existencia de uma superstição, que outra coiza não é a relijião na infancia da humanidade.
Os tupís adoravam uma excelencia superior, Tupan, que se manifestava pelo raio e pelo trovão; donde se induz o grande poder que atribuiam a essa divindade. Seu nome de raça aprezenta uma afinidade que faz prezumir a crença de uma decendencia celeste.
Tambem temiam os tupís o espirito do mal, personificado em Anhanga, o fantasma, que habitava as trévas, e a quem referiam um poder funesto. Para conjurar essa divindade malefica, tinham sacerdotes, os pajés, que buscavam sua força e virtude no fumo da planta sagrada, o tabaco.
Além disso contava a mitologia tupica genios bons e máus, que habitavam as florestas e os rios, e percorriam as solidões montados em caitetús, ou transformados em certos animais. Entre estes mencionarei o caipora e a mãi d'agua, cuja abuzão transmitiu-se á raça conquistadora, e de que ainda se encontram vestijios entre as populações do norte.
Não ha contestar que aí está uma relijião bem caracterizada. Mas como faltassem templos e idolos, os decendentes dos barbaros gaulezes, godos, francos e celtas não podiam admitir na America uma relijião sem culto regular, qual a tiveram aquelles selvajens europeus.
Entre os viajantes que mais tarde percorreram a America havia espiritos superiores, dedicados ao estudo da humanidade, que investigavam sem prevenções a orijem e indole das raças indijenas do novo mundo. Na primeira plaina destes sabios figura Alexandre de Humboldt.
O eminente naturalista assinalou a cauza dessa auzencia de culto dos aborijenes do Brazil, quando observou que o antropomorfismo da divindade se manifesta por dois modos: da terra ao céu, como na Grecia, ou do céu á terra, como na America. Voyage au Nouveau Continent—8.o volume, paj. 243.
Quando a imajinação do homem personificando a divindade á sua imajem a faz subir ao céu, como os numes pagãos da Grecia, ella é levada naturalmente a oferecer-lhe uma constante adoração com que mantêm o vinculo da creatura ao creador. Daí a necessidade de idolos, que simbolizem esses numes, e a tenham prezente aos olhos mortais.
Diverso, porém, é quando, concebendo a divindade á sua imajem, o mortal a humana inteiramente, transportando-a do céu á terra. Então o homem figura-se não a creatura, mas o decendente, o filho de seu deus.
Dezaparece a necessidade dos idolos, pois a verdadeira reprezentação da divindade na terra é o mesmo homem que a continúa. Cada um tem o seu nume em si. A adoração transforma-se naturalmente no culto da propria individualidade, nessa exajeração prodijioza do estalão humano, que distingue as idades heroicas.
É pela ostentação da corajem, da força, da grandeza de animo, que o selvajem se elevava até o deus, seu projenitor; e não pela adoração, pelas preces e oferendas uzadas no paganismo grego, o qual estava bem lonje da humildade evanjelica do cristianismo. Os tupís não careciam, pois, de orações e sacrificios; as façanhas com que se mostravam dignos de sua orijem celeste eram as melhores oblações do seu culto.
Tal era o respeito que o selvajem professava pela dignidade humana, que matava as pessoas mais caras quando não se podiam curar da enfermidade. Essa implacavel sujeição ao mal, abatia e humilhava uma raça forte e guerreira.
Muitos outros exemplos podia aprezentar dessa elevada conciencia da individualidade, que distinguia no mais alto ponto o selvajem brazileiro.
Eis o que não souberam ver os cronistas, quando taxaram de ateus aos indijenas americanos.
Abstraindo da moral absoluta em que só ha uma verdade, a do cristianismo, e tomada a questão no ponto de vista da arte, não se póde recuzar a essa relijião tupí, que nivela o homem á divindade, certo cunho de grandeza selvajem e um vigorozo sentimento da individualidade.
O paganismo grego lhe fica inferior nesse ponto da dignidade humana; ao passo que elle tornava a raça de Japeto escrava submissa dos deuzes, e vitima de seus caprichos e vinganças, na mitolojia americana o homem é o filho e o emulo da divindade.
Á parte as ficções graciozas do espirito helenico, a mitolojía grega só tem uma creação que reveste a majestade da relijião tupí; é a creação dos semi-deuzes, em que se operava o antropomorfismo terrestre da divindade, qual se deu na America.
Considerando-se divino, o selvajem americano acreditava-se combatido por um ente malefico, antagonista do deus de quem decendia. Nos achaques e mizeria que aflijem a humanidade via as manifestações desse poder funesto. Os sacerdotes o esconjuravam por sortilejios; os heróes, porém, rezistiam-lhe pela constancia e o afrontavam.
Á essa relijião simples e sem aparato, como devia ser uma relijião das florestas, professada por povos caçadores e guerreiros, coroava a crença profunda e inalteravel da imortalidade da alma, revelada pela veneração ás cinzas dos mortos, e pelas ceremonias da inhumação.
Os indijenas encerravam suas mumias em tumulos especiais, a que davam o nome de Camucins; e as acompanhavam não só das armas e objetos de uzo proprio, como de alimentos para a viajem aos campos alegres, onde iam reviver os guerreiros e suas mulheres.
Basta este rapido esboço para dar idéa da relijião dos tupís, e avaliar o criterio daquelles que os consideravam estranhos a qualquer noção da divindade.
Um povo que mantinha as tradições a que aludimos, não[115] era certamente um acervo de brutos, dignos do desprezo com que foram tratados pelos conquistadores. E quando, através de suas falsas apreciações, a verdade pôde chegar até nossos tempos, o que não seria, se espiritos despreocupados e de vistas menos estreitas, vivendo entre essas nações primitivas, se aplicassem ao estudo de suas crenças, tradições e costumes?
Os jezuitas, que podiam melhor realizar esse estudo, eram induzidos a exajerar a ferocidade e ignorancia dos selvajens, no interesse de tornar indispensavel sua catequeze. Já imbuidos da intolerancia relijioza, a politica exajerava ainda mais sua suspeição.
Ubiratan.—Páu-ferro; literalmente ubira—madeira, e atan—duro. Atan não é senão a palavra ita com a terminação ana, que na lingua tupí servia para a formação dos adjetivos. Itana, o que tem a natureza de pedra. Assim, de pedra fizemos nós pedregozo. Rigorozamente ubiratan é páu-pedra; pois que os indijenas não conheciam o ferro. Era dessa madeira que faziam os tacapes.
O chefe tocantim.—Os autores empregam em geral os termos maioral, principal, para dezignar o cabeça de uma tribu ou nação indijena. Alguns, como Southey, serviram-se do termo cacique adotado dos Araucanos; Barlœus chamou-os classicamente de reis.
Neste livro, como em Iracema, preferi traduzir o termo indijena tuxaba, por chefe; e fui levado pela razão de ser, além de muito apropriado e vulgar, um termo nobre e sucetivel de entrar no estílo o mais elevado, sem laivos de afetação. Ao morubixaba pela mesma razão chamei chefe dos chefes.
Calcou a mão sobre o hombro esquerdo.—Ácerca desse modo simbolico de assegurar o vencedor seu imperio sobre o cativo, é curiozo o que referiu e notou Ives d'Evreux, cap. XIV.
«Então eu soube que era uma ceremonia de guerra prati[116]cada entre essas nações, que quando um prizioneiro cae na mão de algum, aquelle que o toma, bate-lhe com a mão na espadua dizendo-lhe: «Eu te faço meu escravo»; e desde então esse pobre cativo, por maior que seja entre os seus, se reconhece escravo e vencido, segue o vitoriozo, o serve fielmente, sem que seu senhor se importe com elle; tem liberdade de andar por onde lhe pareça, não faz senão o que quer e ordinariamente espóza a filha ou irmã de seu senhor, até o dia em que deve ser, morto e comido.»
Depois o missionario lembra as palavras de Isaías cap. 9—Factus est principatus super humerum ejus—e cap. XXII—Dabo clavem dominis David super humerum ejus; e mostra a conformidade desse rito dos tupís com as tradições dos hebreus e outros povos primitivos.
Ubirajara—senhor da lança, de ubira—vara e jara—senhor; aportuguezando o sentido, vem a ser lanceíro.
Com este nome existia ao tempo do descobrimento, nas cabeceiras do rio S. Francisco uma nação de que fala Gabriel Soares—Roteiro do Brazil, cap. 182.
«A peleja dos Ubirajaras, diz esse escritor, é a mais notavel do mundo, como fica dito, porque a fazem com uns páus tostados muito agudos, de comprimento de tres palmos pouco mais ou menos cada um, e tão agudos, de ambas as pontas, com os quais atiram a seus contrarios como com punhais, e são tão certos com elles que não erram tiro, com o que têm grande chegada; e desta maneira matam tambem a caça que, se lhe espera o tiro, não lhe escapa; os quais com estas armas se defendem de seus contrarios tão valorozamente como seus vizinhos com arcos e flexas, etc.»
Desta arma e da destreza com que a manejavam proveiu o nome de bilreiros que lhe deram os sertanistas, significando assim que tanjiam suas lanças com ajilidade e sutileza igual á da rendeira ao trocar os bilros.
Preciza de um prizioneiro.—Era entre os selvajens maior honra conduzir da guerra um prizioneiro, para ornar o seu triunfo e a festa de vitoria, do que matal-o em combate. [117]Veja Gabriel Soares—cit. na nota 4a.
Chamas de alegria.—Metafora tupí. Chamavam a alegria e a festa toríba, literalmente, grande quantidade de fogueiras.
Historia de guerra.—Os tupís para exprimirem historia, ou narrativa, diziam maranduba, conto de guerra, de mara—guerra—nheng—falar e tuba—muito; falar muito de guerra.
Depois aplicaram os indijenas essa palavra a toda narrativa, se é que não crearam para as outras historias o termo analogo de poranduba, composto de poro, nheng, e tuba—falar muito da gente.
Os indios eram muito apaixonados dessas narrações, em que mostravam sua natural eloquencia. Informa-me o Dr. Coutinho, incansavel explorador do vale do Amazonas, que ainda hoje nenhum indio chega de viajem, que não diga a sua maranduba, que é o recito circumstanciado de quanto viu e lhe aconteceu em caminho.
Ás vezes traduzo o termo; outras o emprego orijinal para mais incutir no livro o espirito indijena. Do mesmo modo procedi ácerca de outros termos eufonicos tais como tuxaba, moribixaba, moacara, nhengaçara, etc.
Os cantores.—Os tupís eram muito dados á muzica e á dansa.
Lery fala com entuziasmo da doçura de seus cantos; e Ferdinand Denis, paj. 21, afirma, não sei com que fundamento, que a imitação dos Chataws da America do Norte, certas nações do Brazil gozavam do privilejio de fornecer poetas e musicos aos outros povos, como sucedia com os tamoios entre os tupís.
Gabriel Soares—cap. 162—descreve os cantos, improvizos e dansas dos tupinambás, concluindo com estas palavras:
«Entre este gentio, os muzicos são muito estimados e por onde quer que vão, são bem agazalhados e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrarios, sem lhes fazerem mal.»
Como chefe pertence-lhe a virjem, etc, Barlœus—2.a edic. paj. 483.—Quotquot luta, hastarum concursu ac venatu prœcellunt, eminentiores habentur et ut hœroum numero, qui ob virtutis fortitudinisque excellentiam ab ipsis virginibus ambire mœrentur, cum meliores ex melioribus nasci opinentur, nec vanum esse nobilitatis nomen, sed cum sanguine transfundi.»—Quantos disputam em jogos de lança e caça; os eminentes são tidos no numero dos heróes; os quais pela excelencia da virtude e fortaleza merecem possuir as mesmas virjens; por quanto pensam que os melhores nacem dos melhores; nem é vão nome a nobreza, pois se comunica pela transfuzão do sangue.
Purifica o corpo.—Os selvajens distinguiam-se pelo apurado asseio. Ives d'Evreux diz a este respeito: «Ils sont fort soigneux de tenir leur corps net de toute ordure: ils se lavent fort souvent tout le corps et ne se passe jour qu'ils ne jettent sur eux force eau et se frottent avec les mains de tous côtés et en toutes les parts, pour oster la poudre et autres ordures. Les femmes ne manquent de se peigner souvent.»
Pag. 25
Urú.—Tinham os indijenas varias especies de moveis para guardar objetos. O urú era um cesto aberto. Panacum era um cesto maior com tampa. Samburá era cesto com orelha, corrupção de nambi e urú, literalmente cesto de orelha. Tinham ainda os selvajens o patiguá ou patuâ, que era uma caixa de palha ou couro; e o mocô, pequeno surrão da pele felpuda do coelho. Todos estes nomes ainda são uzados no norte para dezignar os mesmos objetos, produtos da industria indijena, aproveitada pelos colonizadores.
Coqueiros.—Ao que disse em nota de Iracema ácerca do indijenismo desta planta acrecentarei a noticia que della[119] nos deixou Guilherme Piso—Historiæ Rerum Naturalium Brasiliæ, Liv. 8o, p. 138.
«Inaiá Guacuiba cujus fructus inaiaguacu brasiliensibus; in congo vocatus Ejaquiambutu et fructus Quetiniga quiambutu: Palma nucifera, lusitanis coqueiro et fructus illius coco; qui tribus suis foraminulis lavam representat. Arbor caudice raro recto, sed plerumque incurvato, quatuor, quinque sex aut etiam septem pedes crasso, triginta, quadraginta et interdum quinquaginta pedes alto.»
É esta mesma palmeira que os Mexicanos chamavam Cogolli. Piso viu em 1640 na cidade Mauricéa (Recife) transplantarem-se pés que tinham mais de 24 anos.
Cabelos.—Pelos cabelos costumavam distinguirem-se as diversas nações indijenas. Southey—I, cap. 8o. Das mulheres diz Barlœus:—Fœminis coma promissa nisi per luctus tempora aut absens marito.—paj. 36. Traziam as mulheres a madeixa longa, salvo no tempo do luto ou auzencia do marido.
Mais um traço do carater e costumes indijenas. Durante a auzencia do marido, a mulher trazia uma especie de luto, ou mostra de tristeza e saudade, que era simbolizada pelo sacrificio das longas tranças dos cabelos.
Braços que tu querias para tua cintura.—Metafora da lingua tupí, que exprime o amor; aguaçaba, a amante, literalmente, o que se tem á cintura.
Escravo.—Acerca das leis do cativeiro entre os indios leiam-se os dois capitulos XV e XVI, que a este assunto consagrou Ives d'Evreux, citado.
Os cativos viviam em plena liberdade na taba de seus senhores, e era muito raro que fujissem, porque se consideravam ligados por um vinculo desde o momento em que o vencedor lhes calcava a mão sobre a espadua. Quebrar esse vinculo, era por elles considerado uma dezhonra.
Até os prizioneiros destinados ao suplicio, preferiam a[120] morte glorioza a se rebaixarem pela fuga no conceito de seus inimigos. «Muitas vezes as mulheres tomavam substancias que provocavam o aborto, não querendo passar pela mizeria de verem trucidada a prole; não raro favoreciam a fuga dos tristes maridos de alguns dias pondo-lhes comida nos bosques e até escapulindo-se com elles. Frequentemente sucedeu isto a prizioneiros portuguezes; os indios brazileiros, porém, julgavam dezhonroza a fuga, nem era facil persuadil-os a tomal-a.» Southey—cap. VII onde cita—Noticias do Brazil, II, 69 e Herrera 4, 3, 13.
Abbeville ainda é mais explicito:—Et bien que estant desliez et libres comme ils sont, ils puissent fuir et se sauver, si est ce que ils ne font jamais encore qu'ils soient assurez de estre tuez et mangez au bout de quelques temps. Car si quelqu'un des prisionniers s'etait eschapé pour retourner em son pays, non seulement il serai tenu pour un couaen eum, c'est a dire poltron et lasche de courage; mais aussi ceux de sa nation mesme ne manqueroient de le tuer avec mille reproches de ce qu'il n'aurait pas eu le courage d'endurer la mort parmi ses ennemis, comme si ses parents et tous ses semblables n'etaient assez puissants por venger sa mort, etc. pag. 290.
As leis da cavalaria no tempo em que ella floreceu em Europa não excediam por certo em pundonor e brios a bizarria dos selvajens brazileiros. Jámais o ponto de honra foi respeitado como entre estes barbaros, que não eram menos galhardos e nobres do que esses outros barbaros, godos e arabes, que fundaram a cavalaria.
Alí está uma pedra de toque para aferir-se o carater do selvajem brazileiro, tão deprimido por cronistas e noveleiros, avidos de inventarem monstruozidades para impinjil-as ao leitor. Nem isso lhes custava; pois a raça invazora buscava justificar suas cruezas rebaixando os aborijenes á condição de féras, que era forçozo montear.
O suplicio.—Outro ponto em que se assopra a ridicula indignação dos cronistas é ácerca da antropofagia dos selvajens americanos.
Ninguem póde seguramente abster-se de um sentimento de horror ante essa idéa do homem devorado pelo homem. Ao nosso espirito civilizado, ella repugna não só á moral, como ao decoro que deve revestir os costumes de uma sociedade cristã.
Mas antes de tudo cumpre investigar a causa que produziu entre algumas, não entre todas as nações indijenas, o costume da antropofagia.
Disso é que não curaram os cronistas. Alguns atribuem o costume á ferocidade, que transformava os selvajens em verdadeiros carniceiros, e tornava-os como a tigres sedentos de sangue. A ser assim não faziam mais do que reproduzir os costumes citas, que sugavam o sangue do inimigo ferido,—quem primum interemerunt, ipsis é vulneribus ebibere. Pomponius Mœla. Descrip. da Terra.—Liv. 2o cap. 1o.
Outros lançam a antropofajia dos americanos á conta da gula, pintando-os igual á horda bretã das Gallias, os Aticotes, dos quais diz S. Jeronimo que se nutriam de carne humana, regalando-se com o ubere das mulheres e a fevera dos pastores. (S. Hieronimo IV.—paj. 201, adv. Jovin.—Liv. 2o.)
O canibalismo americano não era produzido, nem por uma nem por outra dessas cauzas.
É ponto averiguado, pela geral conformidade dos autores mais dignos de credito, que o selvajem americano só devorava o inimigo, vencido e cativo na guerra. Era esse ato um perfeito sacrificio, celebrado com pompa, e precedido por um combate real ou simulado que punha termo á existencia do prizioneiro.
Simão de Vasconcelos, Cronica da companhia, 1 § 49, alude a uma velha que sentia entojos por não ter a mãozinha de um rapaz tapuia para chupar-lhe os ossinhos: e Hans Stade, paj. 4, cap. 43 e seg., conta a historia de dois individuos moqueados pelos tupinambás, e guardados para um banquete.
Não exajeremos, porém, esses fatos izolados, alguns dos quais podem não passar de caraminholas, impinjidas ao pio leitor. Os costumes de um povo não se aferem por acidentes, mas pela pratica uniforme que elle observa em seus atos.
Se os tupís fossem excitados pelo apetite da carne humana, elles aproveitariam os corpos dos inimigos mortos no combate, e que ficavam no campo da batalha. A guerra se tornaria em caçada; e em vez de montear as antas e os veados, os selvajens se devorariam entre si.
Não ha, porém, escritor sério que deixasse noticia de fatos daquella natureza; e não me recordo de nenhum que referisse exemplos de serem devoradas mulheres e meninos; salvo quanto aos ultimos, o filho do prizioneiro de guerra (Not. do Brazil.—II, 69), do que tenho razão para duvidar.
Parece-nos, pois, que a idéa da gula deve ser repelida sem hezitação. Se em algumas tribus ou malocas se propagou o apetite depravado, essa dejeneração foi por ventura devida ao contajio dos Aimorés, cuja invazão é posterior ao descobrimento. Em todo o cazo é uma exceção que não póde preterir o rito da relijião tupica.
Tambem pela contraprova, havemos de excluir a ferocidade, como razão do canibalismo americano.
Se o instinto carniceiro dominasse o tupí, elle se lançaria sobre o inimigo como o cita, ou o sarraceno de que fala Am. Marcellinus, para sugar-lhe o sangue da ferida, e trincar-lhe as carnes ainda vivas e palpitantes.
Mas, ao contrario, vemos que o guerreiro tupí tinha por maior bizarria cativar seu inimigo no combate, e trazel-o prizioneiro, do que matal-o. Chegado á taba, em vez de o torturar dava-lhe por espoza uma das virjens mais formozas, a qual tinha a seu cargo nutril-o e tornar-lhe agradavel o cativeiro.
Releva notar que a idéa da antropofajia já era comum na Europa, antes do descobrimento da America; não só pelas tradições dos barbaros, como pelas crendices da média idade, nas quais figuravam gigantes e bruxas, papões de meninos. Que tema inexgotavel para a imajinação popular não veiu a ser a primeira noticia, senão conjetura, sobre o canibalismo do selvajem brazileiro?
Cronista ha que nesse costume, onde se está revelando a força tradicional de um rito, não enxergou senão o zelo do glotão, que engorda a preza para saboreal-a. Mas essa ridicula supozição nem ao menos se conforma com o teor da vida selvajem, a qual desconhecia a industria da criação.
O selvajem comia a caça como a encontrava no mato, gorda logo depois do inverno, e magra na força da seca. Não se dava ao trabalho de a engordar. Porque motivo se havia de afastar desse uzo ácerca do homem, se o homem fosse para elle uma especie de caça?
E por ventura faria parte do processo da engorda do bipede, o acessorio de uma companheira formoza e na flôr da idade, qual invariavelmente a davam ao prizioneiro?
É obvio que esse uzo tinha outra razão mui diversa. Não se tratava de engordar o prizioneiro, mas de fortalecel-o, para que elle morresse com honra no dia do sacrificio, que devia ser o seu ultimo combate.
Ainda nessa ocazião, os vencedores ostentavam sua gravidade, deixando que o prizioneiro exaltasse o proprio valor e os afrontasse com seu desprezo. Só chegado o momento[123] depois de celebrada a ceremonia, o abatiam com um golpe de tacape.
A ferocidade não se coaduna com a calma e comedimento desse proceder. Póde-se explicar o sacrificio humano dos tupís por um intenso e profundo sentimento de vingança; mas não por sanha brutal.
Ferdinand Saint-Denis (Univers, Brésil, pag. 30) diz com muito criterio:—En accomplissant ces sacrifices, les tupinambás n'obéissaient pas, comme pourraient le croire quelques personnes, à un goût depravé qui leur aurait fait préférer la chair humaine à toutes les autres; ils étaient mus avant tout par un esprit de vengeance que se transmettait de génération en génération, et dont notre civilisation nous empêche de comprendre la violence.
Não era, porém, a vingança a verdadeira razão da antropofajia. O selvajem não comia o corpo do matador de seu pai ou filho, se acontecia matal-o em combate. Abandonava o cadaver no campo, e apenas cortava-lhe a cabeça para espetal-a em um poste á entrada da taba, e arrancava-lhe o dente para troféu.
A vingança, pois, esgotava-se com a morte. O sacrificio humano significava uma gloria insigne rezervada aos guerreiros ilustres ou varões egrejios quando caíam prizioneiros. Para honral-os, os matavam no meio da festa guerreira; e comiam sua carne que devia transmitir-lhes a pujança e valor do heróe inimigo.
Este pensamento resalta dos mesmos pormenores com que os cronistas exajeraram o cruento sacrificio.
Morto o inimigo, não era devorado; antes as mulheres tratavam o corpo e o curavam, moqueando as carnes. Essas eram guardadas; e distribuidas por todas as tribus, incumbindo-se os que tinham vindo assistir á ceremonia, de leval-as ás tabas remotas.
Os restos do inimigo tornavam-se, pois, como uma hostia sagrada que fortalecia os guerreiros; pois ás mulheres e aos mancebos cabia apenas uma tenue porção. Não era a vingança; mas uma especie de comunhão da carne, pela qual se operava a transfuzão do heroismo.
Por isso dizia o prizioneiro:—«Esta carne que vêdes não é minha; porém vossa; ella é feita da carne dos guerreiros que eu sacrifiquei, vossos pais, filhos e parentes. Comei-a; pois comereis vossa propria carne.» Deste modo retribuia o vencido a gloria de que os vencedores o cercavam. O heroismo que lhe reconheciam, elle o referia á sua raça de quem o recebera por igual comunhão.
Algumas nações tinham outra comunhão, inspirada no[124] mesmo pensamento. Era a dos ossos dos projenitores que reduziam a pó, e que bebiam dissolvidos no cauim em festas de comemoração. Este fato, assim como o sacrificio tremendo da mãi, que devia absorver em si o filho que lhe nacera morto, bem mostram que por modo algum naceu do espirito de vingança o chamado canibalismo.
Transportemo-nos agora, não como homens e cristãos, mas como artistas, ao seio das florestas seculares, ás tabas dos povos guerreiros que dominavam a patria selvajem; e quem haverá tão severo que negue a fera nobreza desse barbaro e tremendo sacrificio?
A idéa repugna; mas o banquete selvajem, tem uma grandeza que não se encontra no festim dos Atridas; e está bem lonje de inspirar o horror dessa atrocidade que entretanto não foi desdenhada pela muza classica.
No Brazil é que se tem dezenvolvido da parte de certa gente uma aversão para o elemento indijena de nossa literatura, a ponto de o eliminarem absolutamente. Contra essa extravagante pretenção lavra mais um protesto o presente livro.
Para concluir com este ponto, observaremos que nem todas as nações selvajens eram antropofagas; e que em minha opinião esse costume, bem lonje de ser introduzido pela raça tupí, foi por ella recebido dos Aimorés e outros povos da mesma orijem, que ao tempo do descobrimento apareceram no Brazil.
Espoza do tumulo.-Este rito selvajem é muito conhecido e dispensa-me de transcrever o que ácerca delle escreveram os cronistas.
Mais uma prova do carater generozo e bizarro do selvajem brazileiro. Lonje de torturarem seu prizioneiro, ao contrario se esforçavam em alegrar-lhes os ultimos dias pelo amor; davam-lhe uma espoza; e tão grande honra era esta que o vencedor a rezervava para sua filha ou irmã virjem; e se não a tinha, para a filha de algum dos principais da taba.
Falam alguns autores da cunhãmembira, como de uma ceremonia em que se devorava o filho que por ventura a espoza do tumulo concebia do prizioneiro morto. Duvido da generalidade desse fato, que me parece adulterado, e seria especial aos tamoios.
Cunhãmembira, dizem esses autores, significa filho da mulher; e daí diz Southey, copiando Lery, tiravam elles uma horrivel consequencia, que era devorarem a criança.
Ora, cunhãmembira significa saído do ventre da mulher. A lingua tupí não tinha outro modo de dezignar a maternidade: taíra—isto é, saído do sangue, diziam do filho ácerca do pai; e membira, diziam do filho ácerca da mãi. Na expressão cunhãmembira não ha senão a antepozição do substantivo cunham (mulher) que os indios suprimiam por superfluo; assim como suprimiam na outra palavra dizendo simplesmente taíra e não aba-taíra saído do sangue do varão.
Se o nome de cunhãmembira indicasse estar a criança destinada ao suplicio, então todos os nacidos da taba se achariam no mesmo cazo, pois todos eram em relação ás mais, membiras ou cunhã membiras.
Ainda mais, se a criança era condenada ao suplicio pela razão de ser do sangue inimigo, parece que o nome a ella dado devia exprimir esse fato importante e derivar-se antes desta fraze: miauçubtaíra—o gerado do sangue do cativo.
A estes filhos dos prizioneiros chamavam os indijenas marabá, gerado da guerra, nome honrozo, que revelava o apreço em que tinham essa prole, saída de um sangue heroico. E tanto assim era que destinavam para conceber essa prole o seio da virjem mais ilustre da taba.
Se os selvajens, que nada praticavam sem uma razão justificativa, só tinham em mira devorar os filhos do cativo, para que dar-lhe uma espoza ilustre? Mais sagazmente procederiam adjudicando-lhe diversas mulheres para terem maior criação a matar.
Está-se conhecendo que o tal banquete não passa de um invento de cronistas, que entenderam as outras palavras dos indios tão bem como a de cunhãmembira que elles diziam significar filho do inimigo.
Cunhãmembira creio eu ser a festa que se fazia pelo parto da mulher; e talvez acontecendo nacer morta a criança, se orijinasse a fabula do sacrificio que então se praticava entre algumas nações de ser a mãi obrigada a absorver em si esse fruto goro de sua fecundidade.
Guainumbí.—«Persuadem-se os brazilienses haver uma ave, que chamam colibri, a qual leva e traz noticia do outro mundo.» Santa Rita Durão—Notas ao Caramurú.
Tambem chamavam os indios esse passaro, Guaraciaba—cabelos do sol; e Arati, ou Arataguaçú segundo Marcgraff, 197. Quanto ao nome de Guainumbí, ou mais corretamente Guinambí, penso eu que significa o brinco das flôres. Os[126] selvajens tiraram naturalmente essa dezignação do modo por que o colibri tremula, como suspenso á flôr para chupar-lhe o mel, semelhante ao movimento das arrecadas suspensas ás orelhas, e que elles chamavam nambípora.
Jussara.—«Nas povoações feitas em terra têm muitas nações guerreiras a providencia de as segurarem e munirem com fortes muralhas, não de pedra, mas de estacas do páu duro como pedra. Outros as fabricam de palmeira, que chamam jussara, cujos espinhos são tão grandes e duros, que servem a muitos de agulhas de fazer meias; e as trincheiras feitas de jussara são mais seguras que as mais bem reguladas fortalezas; porque de modo nenhum se podem penetrar e romper senão com fogo por crecerem não só cheias de grandes estrepes ou agudos espinhos, mas tão enlaçadas e enleadas umas com outras que se fazem impenetraveis. (Tezouro descoberto no rio Amazonas, Part. 2a, cap. 1o, no 2o vol. da Rev. do Instituto, paj. 350.)
O nome da palmeira é em tupí jussara, de ju—espinho e ara dezinencia.
Carbeto.—Assim chamam Ives d'Evreux e Abbeville ao conselho dos velhos entre os selvajens. Este nome deriva-se naturalmente de caraiba, varão ilustre e ipê, logar onde.
Hospede.—A virtude da hospitalidade era uma das mais veneradas entre os indijenas. Todos os cronistas dão della testemunho; e alguns, como Lery e Ives d'Evreux, descrevem com particularidade o modo liberal e generozo por que os selvajens brazileiros a exerciam.
É certo que não escapou tambem á malevolencia dos cronistas, essa excelencia e nobreza do carater indijena. Gabriel Soares cit. cap. 168 depois de falar do como os tupinambás agazalhavam os hospedes, acrecenta: «e lançam suas contas se vem de bom titulo ou, não; e se é seu contrario, de maravilha escapa que o não matem, etc.» Southey cit. cap. 8o faz coro com essa versão que nos parece suspeita.
É possivel que depois da colonização, os selvajens viti[127]mas das perfidias dos aventureiros relaxassem suas tradições; mas a hospitalidade foi sempre entre elles uma coiza sagrada, como atestam em geral os escritores, que não referem aquella exceção.
Basta refletir sobre o modo por que exerciam os selvajens a hospitalidade para reconhecer que não é admissivel a suspeita de Gabriel Soares. Em verdade, aquelles cuja porta estava aberta sempre ao viajante; que franqueavam o ingresso de sua cabana por tal modo que o estranjeiro nella entrava como senhor, ainda mesmo na auzencia do dono; que sem perguntar o nome de quem chegava nem de onde vinha o agazalhavam com a maior liberalidade; esses que assim acolhiam o hospede, não podiam ocultar a intenção perfida de o matar, no cazo de ser contrario. Ha uma tal contradição entre esse desfecho e as circumstancias precedentes, que não se póde acreditar nelle pelo simples dizer de um cronista, que em muitas outras inexatidões caiu.
Se ha traço nobre do carater selvajem é essa hospitalidade, que o estranjeiro não pedia e sim exijia como um direito sagrado, com esta simples formula—Vim; ao que o dono da cabana respondia—Bem vindo.
O epizodio da deliberação do conselho sobre o nome do estranjeiro está justificado pelo trecho seguinte de Ives d'Evreux, cap. 50.
«Aprés ces paroles il vous dit—Marapé derere? comment t'appelles-tu? quel est ton nom? comme veux-tu que nous t'appellions? Quel nom veux-tu qu'on t'impose? Où faut-il noter que si vous ne vous estes donné et choisi um nom, lequel vous leur dites alors et desormais estes appellé par tout le pays de ce nom, les sauvages du village ou vous demeurez vous en choisiront um pris des choses naturelles, qui sont en leurs pays et ce le plus convenablement qu'il leur sera possible, selon la phisionomie qu'ils verront en votre visage, ou selon les humeurs et façons qu'ils reconnaitront en vous..... Eh bien quel nom donnerons nous a un tel ton compére? Je ne sais, il faut voir; lors chacun dit son opinion et le nom qui rencontre le mieux et est reçu de l'assemblée, est imposé avec son consentement si c'est quelque homme d'honneur.»
Ainda nessa circumstancia se revela a delicadeza da hospitalidade do selvajem.
Artes da paz.—É ainda de Ives d'Evreux, cap. 18, esta curioza informação. «Je raconterai ici une jolie histoire. Un[128] jour je m'allois visiter le grand Theon, principal des Pierres Vertes Tabaiares: comme je fus en sa loge et que je l'eus demandé, une des ses femmes me conduit soubs une belle arbre qui estoit au bout de sa loge, qui la couvrait du soleil; lá-dessous il avait dressé son mestier pour testre des licts de coton et travaillait après forte soigneusement; je m'étonnai beaucoup de voir ce grand capitaine, vieil colonel de sa nation, ennobli de plusieurs coups de mousquets, s'amuser à faire ce mestier et je ne peus me taire que je ne sçusse la raison espérant apprendre quelque chose de nouveau en ce spectacle si particulier. Je luy fist demander par le truchement qui estoit avec moy, à quelle fin il s'amusait à cela? il me fit response: «Les jeunes gens considérent mes actions et selon que je fais ils font; si je demeurais sur mon lit à me branler et humer le petim, ils ne voudraient faire autre chose; mais quand ils me voient aller au bois, la hache sur l'épaule et la serpe en main, ou qu'ils me voient travailler à faire des licts, ils sont honteux de rien faire, etc.»
Lançadeira.—Os indijenas tinham um tear que é descrito por Lery, cap. 18. Uzavam tambem de um fuzo comprido e grosso, que as mulheres faziam girar entre os dedos, atirando ao ar, como ainda agora fazem as velhas fiandeiras do sertão.
Jurandir.—Contração da fraze Ajur-rendipira—o que veiu trazido pela luz.
Jabotí.—Contou-me o Dr. Coutinho que o jabotí para os indios do Amazonas é o simbolo da gravidade, prudencia e sabedoria, e prometeu-me dar um apologo, em que elles celebram essas virtudes, contando a historia de um jabotí, que venceu na lijeireza ao veado, na força á onça e assim aos mais animais.
Tetivas.—Os Tetivas habitam nos olhos das palmeiras e de outras arvores: põem-lhes terra e acendem fogo. Humboldt cit., paj. 283.
Mulheres guerreiras.—Aluzão ás Amazonas cuja existencia é tão controvertida. Eu acredito na sua existencia, embora reconheça que houve exajeração de Orellana.
Não é este o momento de elucidar este ponto da historia, ou antes mitolojia do Brazil selvajem. Proponho-me a fazel-o quando publicar uma lenda que tenho esboçada ácerca do assunto. Nessa ocazião direi o que entendo ácerca da memoria do Dr. Gonçalves Dias, publicada na Revista do Instituto.
Senhoras de seu corpo.—Metafora tupí. No varão a parte nobre era o sangue; pelo que elle dizia do filho—taíra, o filho do meu sangue; e para indicar a independencia diziam taíguara, que os dicionarios traduzem livre, mas que literalmente significa, senhor do seu sangue.
A mulher que dizia do filho membira—o gerado de meu ventre, devia pela mesma razão uzar de expressão analoga para exprimir sua liberdade, e dizer membijara—senhora de seu ventre, que eu por elegancia traduzo menos literalmente, senhora de seu corpo.
Pará sem fim.—Par, diz Humboldt cit. paj. 285, é uma radical guaraní e exprime agua. Pará creio eu que significou a grande abundancia de agua, e foi primitivamente empregado para dezignar os lagos e por ventura as vastas inundações do vale do Amazonas. Mais tarde os selvajens acrecentaram-lhe o verbo nhane correr, e disseram pará-nhanhe—donde paranãn para dezignar as grandes massas de agua corrente, isto é, os rios caudalozos.
Os dois maiores rios da America do Sul, o Amazonas e o Prata, ambos se chamavam Paranãn, assim como outros muitos do Brazil. O mesmo radical se encontra já composto em Paraíba, Parnaíba, Paranapanema, etc.
Foi a substituição do p pela analoga m que produziu o nome de Maranhão, ácerca de cuja etimolojia se inventaram tantas extravagancias.
Guerreiros do mar.—Tradução da palavra tupí caramurú com que os tupinambás da Baía dezignaram Diogo Alvares Correia.
Caramurú é composto de cara, alteração de Pará—mar e moro, gente; homem do mar. Os selvajens acreditavam que as aguas eram habitadas, e daí naceu a lenda da mãi d'agua, que se transmitiu á raça invazora. Nada mais natural do que chamarem ao primeiro homem branco, que lhe apareceu surjindo do oceano, Caramurú—o guerreiro do mar.
Rezina cheiroza.—É o ambar, que os tupís chamavam Piraoçurepoti, e de que ao tempo do descobrimento abundavam as ribeiras do mar, nas provincias do norte.
Moças.—É dificil, senão impossivel, determinar atualmente, e pelas informações tão falhas quão malignas dos cronistas, a condição da mulher entre os selvajens.
Do que tenho lido coliji as idéas, a que no texto se alude mui lijeiramente, e a que em outro logar démos maior dezenvolvimento.
Para servir a Itaquê.—«E quando o principal não é o maior da aldeia dos indios das outras cazas, o que tem mais filhas é o mais rico e estimado e mais honrado de todos, porque são as filhas mui requestadas dos mancebos que as namoram; os quais servem os pais das damas dois e tres anos primeiro que lh'as deem por mulheres e não as dão senão aos que melhor os servem, a quem os namoradores fazem a roça e vão pescar e caçar para os sogros que dezejam de ter, e lhes trazem a lenha do mato, etc.» G. Soares, cit. cap. 152.
Aí está a lenda biblica de Jacob servindo a Labam 7 anos para obter por espoza a Sara. Não consta, porém, que os selvajens uzassem da esperteza do pai de Lia, para descar[131]tar-se de uma filha defeituoza; se tal acontecesse entre os tupís, de que ridiculas indignações não se encheriam os cronistas?
Manatí.—È o peixe-boi, de cujo couro mais forte que o do touro os indios fazem escudos. Anunciam a chuva, saltando acima d'agua. Gumilha—Orenoco ilustrado, paj. 276.
Biaribí.—Um dos modos porque os indios assavam a caça, e consistia em enterral-a envolta em folhas de banana, e acender em cima o fogo, cujo calor penetrando no chão cozia a carne, concentrando-lhe o sabor.
Moquem era simplesmente o assado envolto em folha e feito sobre a braza; daí vem moqueca de que tirámos os verbos moquear e amoquecar.
Bucan, supõem alguns que seja alteração de moquem; mas eu o considero termo distinto que exprimia apenas a operação de secar a carne ao fumeiro para conserval-a. Neste sentido é que Lery e Ives de Evreux empregam constantemente o termo francez boucaner, derivado da palavra tupí.
Pela mão da mulher. Refere Gumilla, cap. 45, que estranhando aos indios sobrecarregarem as mulheres com os trabalhos agricolas, elles retorquiram que as mulheres sabem dar fruto, o que não sabem os homens, e por isso na mão dellas as sementes naciam e se multiplicavam.
Pirijá.—Uma especie de palmeira chamada palmeira real; é espinhoza e tem frutos semelhantes ao pecego. Humboldt cit., paj. 257 e 262.
Nunca Jandira ofereceria sua rêde de espoza, etc.—Arací reprezenta o amor da virjem tupí, segundo o costume tradi[132]cional de sua nação, que admitia a comunidade e partilha do amor, como um privilejio do guerreiro ilustre. Ser amada excluzivamente, significava para a mulher selvajem, ser amada por um guerreiro obscuro.
Jandira reprezenta o excluzivismo do amor, que muitas vezes devia lutar com a lei tradicional; porque é um impulso da natureza, a qual não é dado ao homem aniquilar embora muitas vezes a sopite.
O combate nupcial.—Este rito, de ser a virjem requestada o premio do valor e da corajem, é atestado por grande numero de escritores.
Barlœus, paj. 420:—«Lucta et hastarum concursu decertare gloriosum, finis spectanctium voluptas est, presertim amantium fœmina de cujusque fortitudine et victoria pronuntiat, sic in proximo pignora, pugnandi irritamenta sunt fortitudinis præcones, ciborum administræ.»
A figura da noiva.—Esta prova de destreza era muito uzada pelos selvajens. Marcgraff descreve a especie de torneio que elles faziam divididos em duas turmas, a ver qual levava mais depressa o seu tóro ao logar destinado para acampamento. Naturalis Historia Brazilia, liv. 8o, cap. 12.
Conclue com estas palavras:-«qui deinceps tempus terunt hastilibus certando, luctando, currendo; quibus certaminibus duæ fæminæ ad id selectœ prœsident et judicant de singulorum virtute et victoribus.
Estes certamens guerreiros, esses jogos de luta, combate e carreira, prezididos por mulheres que julgavam do valor dos campeões e conferiam premio aos vencedores, não cedem em galanteria aos torneios da cavalaria.
Ácerca da prova a que acima nos referimos, escreveu o Dr. Gonçalves Dias—Brazil e Oceania, cap. 10, Revista do Instituto, tom. 30, parte 2a, paj. 153:—Um tóro de barrigudo em um cabo delgado e de facil preensão, semelhante aos soquetes ou massetes de que ainda entre nós se uza em muitas partes para bater a terra das sepulturas, posto que mais poderozo que este, ou um grande pedaço de tronco de palmeira, era colocado no meio do terreiro. Vinha o guerreiro correndo, tomava o tronco, continuava a carreira, saltava fossos, subia elevações, arrojava-se ás vezes ao rio com elle[133] e quem chegava primeiro e levava mais lonje a carga, esse ganhava a palma e a mulher que tinha de ser espozada. Explicou-se esse costume, de que trata Barlœus, Marcgraff e outros, e que ainda conservam algumas tribus do Piauí, pela necessidade que tinha o guerreiro de defender a mulher, e para que em ocazião de perigo a podesse salvar fujindo.»
O camucim da constancia.—Lê-se no Tezouro do Amazonas, cit. tom. 3 da Revista do Instituto, paj. 169. «O 5o predicado que tambem, como muitas outras nações conservam os Arapiuns, é a prova da valentia quando cazam; é um exame prévio ou o primeiro principio, como se diz nas Universidades, a suas bodas, e uma experiencia ou tentativa de seu valor para mostrarem que posto cazem não é por afeminados, mas por valentes. Ha diversos generos dessa prova de valentia; mas uma mui ordinaria nos indios Arapiuns é encherem uns grandes e compridos cabaços das formigas que chamam saugas (saúvas) grandes e mui bravas; ferram na carne com tanta ou mais valentia que os cães de fila, com proporção á grandeza destes e pequenez daquellas; porque os cães assim vêm a largar; mas as saugas não largam ainda que as matem e antes perderão a cabeça ficando com as troquezes cravadas na carne do que soltarem ellas preza; por isso uzam dellas alguns cirurjiões quando querem cozer alguma cicatriz com segurança, sem uzarem pontos, como adiante dizemos. Cheios, pois, os cabaços de saugas, não só famintas, mas quando estão com fome talvez de dias ... e sobre isso bem enraivadas com sacudidelas, prezentes todos os velhos e graves da missão, sae a terreiro o noivo examinando, destapam-se os cabaços nos quais intrepido mete os braços, a que logo acodem as filas, já para saciar a fome, já para dezabafar a ira, e já para provar e castigar o bacharel, o qual posto que as dôres o façam mudar de côres, torcer a boca, tremer o corpo, levantar as sobrancelhas e arrebentar as lagrimas, tenha paciencia, que se quer, ha de aturar a bucha, emquanto os examinadores já bebendo-lhe á saude e já dando voltas em bailes se vão regalando á sua custa, etc.
Igapê.—É o nenufar na lingua tupí, de Ig, ipe e potira—flôr d'agua. Os portuguezes corromperam essa palavra[134] transformando-a em aguapé, nome por que é vulgarmente conhecida. Penso eu, porém, que devemos restaurar o nome indijena, até mesmo porque aguapé tem diversa significação em portuguez.
Uma dessas nímféas, a rainha das flôres, a que os indios chamavam milho d'agua, ou a flôr jaçanan, por servir de ninho a essas aves paludais, nace branca e com a luz do sol vai rozeando até se tornar escarlate.
Em uma noticia publicada pelos jornais li que o nome dessa flôr napê jaçanan significa, forno das jaçanans, do que duvido. O genitivo exprimiam os indios com antepozição do nome rejido por esse cazo; assim napê jaçanan significaria jaçanan do forno. Demais nem napê quer dizer forno; nem forno indica a idéa que se pretende de pouzo ou ninho.
Uapê aí é o mesmo igapê com a simples diferença de figurar-se a vogal indijena por u em vez de ig adotada pelo geral dos autores.
Murinhem.—Palavra composta de morib afavel e nheng falar.—Veja-se a respeito dos cantores, nhengara, o que se disse na nota a paj. 117.
Paan.—Palavra da lingua Macaulí que significa seta—Creban significa homem alvo; e Agniná, monte.
Tomou a espoza aos hombros.—Era entre as mulheres selvajens prova de amor, suspenderem-se ás costas daquelles que preferiam, quando as requestavam com cantos e dansas. Assim o atesta Marcgraff cit. «Ubi vespera advenit, coeunt adolescentes in varias cohortes et castra perambulantes cantillant ante tuguria adolescentula autem quæ juvenibus delectantur, produnt et cantillantes atque tripudiantes sequuntur adolescentes et á tergo consistunt eorum quos amant, id enim ipsis amoris testimonium est. Paj. 280.»
Escaparam-me algumas notas que a intelijencia do leitor suprirá. Todavia rezumirei as de que me recordo neste momento.
Á paj. 44, quando diz Jurandir que conta os anos pelos[135] dedos, quer dizer que não tem mais de vinte, pois tantos são os dedos das mãos e pés.
Á paj. 45, o grande lago que recolheu as aguas do diluvio é o Manoa, em cujas marjens se fabulou o El-Dorado. Manoa em achagua é diluvio, segundo Gumilha, 2.o vol., 7; palavra homologa ao vocabulo tupí amana, que significa chuva.
Á paj. 45, o combate que Jurandir figura entre o mar e o Amazonas é a descrição da pororoca. Elle chama as aguas do mar-guerreiros azues-por causa da côr das vagas, e as aguas do rio-guerreiros vermelhos-porque a corrente do rio é então barrenta.
Á paj. 45, onde se diz que os anos de Guaribú enchiam a corda de sua existencia alude-se ao costume que tinham os selvajens de contar os anos pelos nós que davam em um cordel, outros pelos frutos do colar.
Á paj. 40 faz-se referencia á lenda de Sumê, já muito conhecida. Foi Sumê que ensinou aos tupís a agricultura e os primeiros rudimentos das artes.
Á paj. 54 fala-se de matumbos. São as leivas que se fazem no norte para a plantação da mandioca.
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11— | TRONCO DE IPÈ, por José de Alencar | 1$000 |
A mesma obra enc. | 2$000 | |
12— | A ESCRAVA IZAURA, por Bernardo Guimarães. 1 vol. br. | 1$000 |
End of the Project Gutenberg EBook of Ubirajara, by José Alencar *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UBIRAJARA *** ***** This file should be named 38496-h.htm or 38496-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/8/4/9/38496/ Produced by Júlio Reis, Fernanda Brojo, Manuela Alves, Rory OConor and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.