Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Jul. 2008)
BIBLIOTHECA
DE
CLASSICOS PORTUGUEZES
PROPRIETARIO E FUNDADOR
MELLO D'AZEVEDO
Bibliotheca de Classicos
Portuguezes
Proprietario e fundador―Mello
d'Azevedo
CHRONICA
DE
EL-REI D. AFFONSO V
POR
Ruy de Pina
VOL. I
ESCRIPTORIO
147―Rua dos Retrozeiros―147
LISBOA
1901
Duas palavras de introducção
El-rei D. Manuel
encomendou
com grande
efficacia a Ruy de Pina a chronica de D. Affonso V. E elle
escreveu baseado em informações e nos documentos
que poude alcançar, com uma sinceridade notavel em chronista
de palacio occupando cargos de confiança regia.
Parcial todavia, pouco inclinado a cousas de Hespanha e da nobreza,
conta-nos a historia d'esse periodo de fórma que parece
preparar o espirito do leitor para as grandes luctas do reinado
seguinte.
A historia da épocha de D. Affonso V importa ao estudo da
nacionalidade portugueza em qualquer ponto de vista. Affirma-se a
auctoridade real, apezar das prodigalidades do rei, a independencia da
nação em combates rijos, a expansão
ultramarina define-se com o arrojo dos navegantes e dos homens de
guerra, a cultura dos espiritos sóbe, os costumes
policiam-se, attende-se a melhoramentos materiaes nas
povoações.
[6]
A propria figura do rei desperta vivamente a
attenção; os seus primeiros annos passaram num
meio agitado, difficil, triste talvez, pelas luctas palacianas, mas
util para a formação de espirito culto pela
frequencia, provavel, de homens superiores como os infantes D. Pedro e
D. Henrique. Pelo que nos conta Ruy de Pina foi lastima que Affonso V
fosse rei, porque era bom de mais, com sua parte de phantasia mansa.
Era um sereno, de
piadosa
condição,
familiar, grande amador de musica e de livros, e
tambem de emprezas arriscadas.
Quando a Excellente Senhora professou, grassava em algumas cidades do
paiz o contagio com grande intensidade, elle desconsolado quiz deixar a
governança, queria ser leigo no seu mosteiro do Varatojo.
Como era generoso e pouco calculista, sem sentir, pouco a pouco, foi
accumulando de mercês certos fidalgos insaciaveis, o que
originou depois a grande lucta dos primeiros annos de João
II.
N'esses quadros agitados destacam-se figuras principaes como o infante
D. Pedro, o das sete partidas, e D. Henrique o navegador, sempre com a
sua idéa fixa de descobrir terras, os condes de Viana, e de
Avranches, grandes senhores, e aquelle singular bispo D. Garcia de
Menezes tão brilhante orador e guerreiro que tristemente
encerrou a sua vida.
Outros vultos de raro perfil movimentam ainda a épocha, D.
Pedro o rei intruso de Aragão, filho
do infante D. Pedro, erudito, collecionador de livros e medalhas, o
duque de Borgonha, a Excellente Senhora. No meio das luctas e intrigas
estrondea o casamento de D. Leonor. Depois das gloriosas jornadas de
Alcacer, Tanger, Anafé e Arzilla, a ida para
França.
O chronista não esquece os movimentos populares,
[7]
as luctas na cidade de Lisboa, as
uniões e
alvoroços; nem a lucta contra o Turco que em 1480 quasi se
assenhoreou do Mediterraneo.
Hoje conhecemos outros documentos, os antecedentes da Alfarrobeira
estão mais esclarecidos, papeis de aleivosia como o
testemunho do escudeiro João Rodrigues correm impressos.
Ha documentos tambem para o modo de viver da épocha que em
geral não mereceram
attenção aos chronistas, os que dizem respeito a
costumes, a questões economicas, ao direito. A
publicação das
Ordenações, começadas em tempo de
João I.º é
facto capital. Em chronicas francezas encontram-se noticias de valor,
ainda não approveitadas. Finalmente
será preciso estudar noutra parte, e hoje ha muitos
elementos publicados, o admiravel esforço do infante de
Sagres, e da sua gente, n'este periodo, nos gloriosos descobrimentos
dos novos caminhos maritimos, dos archipelagos do Atlantico revelados
successivamente,
G. Pereira.
PROLOGO
da
Chronica do Mui Alto e Mui
Poderoso
Principe
EL-REI D. AFFONSO
D'ESTE NOME O QUINTO
E dos Reis de Portugal o duodecimo,
dirigido ao muito alto e
muito excellente Principe, El-Rei D. Manuel, seu sobrinho, nosso
Senhor, por cujo mandado Ruy de Pina, Cavalleiro de sua casa e seu
Chronista Mór e Guarda Mór da Torre do Tombo,
nova e primeiramente a compoz
O mais singular e
mais proveitoso conselho, Serenissimo Rei, que
Demetrio Phalereo, philosofo mui sabedor, deu ao grande Tholomeu, Rei
do Egypto, para sobre todolos Reis de seu tempo poder ser mais
excellente, foi que procurasse de vêr, e ter por mui
familiares os livros, principalmente aquelles, em que os virtuosos
costumes e claros feitos dos illustres Reis e Principes passados fossem
verdadeiramente escriptos: amoestando-o que com vivo cuidado os lesse e
ouvisse: nem era sem causa; porque,
[9]
como mui prudente, sabia que os
livros, posto que sejam conselheiros mortos, sempre porém
ensinam e dão verdadeiros e sãos conselhos, mui
livres e isentos das paixões dos conselheiros vivos, dos
quaes muitas vezes por não saberem, e outras por
não quererem, e muitas mais por não ousarem, se
nega e esconde a clara verdade, que a seus maiores e Senhores
pospõem ás proprias
inclinações e paixões
d'affeição, odio, lisonjaria, interesse ou temor,
que são causa da mais certa queda, e principal
destruição
de reinos e senhorios. E por tanto, muito poderoso senhor, no
conhecimento dos bons exemplos e das cousas passadas, de que a Historia
é um vivo espelho, e os livros são fieis
thesoureiros, se recebe, para
não errar, conselho sem paixão, e doutrina sem
receio, de que á Humanidade e ao Estado Real principalmente
se segue um mui seguro proveito, e por isso a Deus grande e mui
assignado serviço.
E posto que das Chronicas e lembranças escriptas das
perfeitas bondades e memorandas façanhas dos claros
barões não naturaes e estrangeiros, quando
as lemos e ouvimos, logo nos movem para aborrecer os vicios, e com uma
virtuosa inveja de seus gloriosos exemplos, nos espertam e guiam para o
caminho de suas louvadas virtudes e fama; porém, outra
differença de vergonha, outra viveza de gloria, outro
acendimento d'esforço sentimos logo em nossos
corações, quando lendo topamos, e com tento
esguardamos nas excellentes virtudes e prosperas empresas de nossos
proprios naturaes, e maiormente d'aquelles de que descendemos; porque
tanto mais nos acendem e obrigam para os semelharmos e seguirmos,
quanto a certa verdade de suas virtuosas obras e grandes feitos
é de maior contententamento e mais chegada a nosso fresco
conhecimento, com que a não duvidamos.
[10]
E por esta tão urgente causa e bem tão universal,
e principalmente por honra e gloria de vossos reinos de Portugal, Vossa
Mui Real Senhoria, como virtuoso Rei mui piedoso e verdadeiro successor
d'elles que é, sabendo que a memoria das reaes virtudes e
feitos imperiaes do mui glorioso Rei D. Affonso o quinto, vosso tio e
predecessor, cujo irmão legitimo era o mui illustre Infante
D. Fernando vosso padre, por negligencia sua ou mingoa d'escriptores
não eram já do escuro esquecimento menos
gastadas, que sua carne e seu corpo que a terra comia: por mais
illustrardes vossa legitima descendencia, e vossa corôa real
não ficar sem uma guarnição de
pedraria
tão preciosa, como é sua clara e louvada memoria:
e assi por Vossa Alteza mostrar um santo ensino e maravilhoso exemplo
de Rei, encommendou com grande efficacia a mim Ruy de Pina, Cavaleiro
de vossa casa, Chronista Mór de vossos reinos e Guarda
Mór da Torre do Tombo d'elles, que, quanto á
minha deligencia e entendimento fosse possivel, trabalhasse de haver as
cousas notaveis de seu tempo, e para sua Chronica mais necessarias, e a
compozesse. E como quer, muito poderoso Rei, que a carrega e peso
d'esta Obra, por ser tão digna e tão necessaria,
e com desejo e
cuidado tão virtuoso, como é este vosso,
já
foi outras vezes posta e encommendada sobre os hombros e
forças d'outros chronistas d'estes reinos, que ante mim
foram pessoas de singular doutrina e mui sufficientes: e por suas
grandes e desesperadas difficuldades e peso incomportavel, elles nem
sómente a moveram; porém
eu que para vencer e passar com ella caminhos já
tão cerrados e de tanta aspereza e escuridão,
convertidas já em uma manifesta impossibilidade, por vir ao
fim de vosso desejo e esperança, tomei por guia e salvo
conduto de tantos temores vosso mandado e o vivo
[11]
desejo que sobre todos em mim sinto de
sempre bem e lealmente servir Vossa Real Senhoria, e inteiramente lhe
obedecer: confiando que ao menos, pelo merecimento de minha obediencia,
algum tanto serei relevado do erro da ignorancia e temeraria ousadia
com que emprendi e acabei esta real e mui verdadeira chronica, cuja
sequencia é n'esta maneira.
CHRONICA
do
SENHOR REI D. AFFONSO V
CAPITULO I
Narração
O muito alto e muito excellente Rei D. Duarte, d'este nome o primeiro,
e onzeno dos Reis de Portugal, acabou sua desejada e necessaria vida
com claros signaes de grande contrição, e
com certo testemunho de salvação de sua alma, em
a
Villa de Thomar, quinta feira IX dias de Setembro, anno do Nascimento
de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e quatrocentos e XXXVIII: no qual
dia por espaço de duas horas o sol em grande cantidade foi
cris, assi como tambem o foi na hora do fallecimento d'El-Rei D.
João seu padre, e da Rainha
D.
Filippa sua madre. E as cousas que de sua antecipada morte se
conjeituram, e aos autos de prantos e tristezas que se n'ella
não podiam escusar, e como foi levado ao mosteiro da
Batalha, onde jaz sepultado, em sua Chronica, onde propriamente
pertence, com maior declaração
estão
apontadas.
[13]
E por seu fallecimento ficaram legitimos dois filhos e quatro filhas: I
o Principe D. Affonso filho seu maior, primogenito herdeiro, que logo
foi alevantado por Rei, que de sua edade havia seis annos e entrava em
sete: e o Infante D. Fernando, padre d'El-Rei D. Manuel nosso Senhor: e
a Infante D. Filippa, que no anno que o dito Rei falleceu se finou em
Lisboa de onze annos: e a Infante D. Lyanor, que foi imperatriz
d'Allemanha: e a Infante D. Catherina que sem casar falleceu e jaz em
Santo Eloy de Lisboa: e a Infante D. Joanna, de que a Rainha D. Lyanor
ficou prenhe, e foi Rainha de Castella, casada com El-Rei D. Anrique, o
quarto d'este nome.
E ficaram outrosi vivos estes irmãos d'El-Rei D. Duarte,
filhos d'El Rei D. João I; o Infante D. Pedro, que era duque
de Coimbra: e o Infante D. Anrique, que era duque de Vizeu e tinha o
Mestrado de Christus: e o Infante D. João, que era
Condestabre do Reino e tinha o Mestrado de Santiago: e o Infante D.
Fernando, que então era captivo em Fez e tinha o Mestrado
d'Aviz: e a Infante D. Izabel, legitima duqueza de Borgonha, casada com
o duque Filippe: e D. Affonso conde de Barcelos, que depois foi duque
de Bragança, que era filho natural d'El-Rei D.
João.
Ao tempo que o dito Rei falleceu não eram em Thomar outras
pessoas principaes, depois do Principe D. Affonso e seu
irmão, salvo a Rainha D. Lyanor sua mulher, filha d'El-Rei
D. Fernando d'Aragão, e o Infante D. Pedro, irmão
primeiro legitimo d'El-Rei: o qual, por dar ordem ao alevantamento
d'El-Rei D. Affonso seu sobrinho, e ás outras cousas que
pertenciam para bem do reino, ficou na dita villa e não foi
com o corpo de seu irmão, a que não falleceu
outra muita e honrada companhia.
[14]
CAPITULO II
Alevantamento
d'El-Rei
Era quinta feira logo
seguinte, dez dias do dito mez: o Infante D.
Pedro, como Principe a que das cerimonias reaes e das outras cousas em
que cabia descrição e virtude nada s'escondeu,
fez fazer antre o convento e os paços do castello da dita
villa um assentamento assi real e ricamente guarnecido, como para o
auto cumpria. E á bespora do dito dia, o Infante com todolos
fidalgos e nobre gente da côrte foram aos paços
d'El-Rei, que eram dentro
no convento, vestidos por então os corpos dos panos mais
ricos, mas as almas e caras de clara tristeza, que em todos
não era fingida, mas verdadeira e justa, assi pela
privação d'El-Rei, que era muito
virtuoso e para todos de grande humanidade e boa
condição,
como por lhes os corações revelarem as grandes
divisões e muitos trabalhos, em que pela
soccessão de tão novo Rei se haviam de
vêr, como viram.
O Principe D. Affonso posto em vestiduras reaes, e bem acompanhado de
todos, sahiu fóra ao assentamento, onde pelo Infante D.
Pedro com grande reverença, e muito acatamento foi posto na
cadeira real. E emquanto um Mestre Guedelha, singular fysico e
astrologo, por mandado do Infante regulava, segundo as influencias e
cursos dos planetas, a melhor hora e ponto em que se poderia dar
aquella obediencia: o Infante volveu a contenença ao povo, e
com grão
segurança e palavras mansas disse:
«Como quer que, o dia d'hoje com muitos dos que
virão, teriamos justa causa dar lugar a nossos olhos,
[15]
que com muitas lagrimas
testemunhassem a dôr e perda que recebemos na morte de um
Principe tão catholico e tão virtuoso, e
tão necessario a
nós todos como foi El-Rei meu Senhor e irmão,
cuja alma Deus haja: devemos, porém, consirar como
catholicos e de razão, que, pois em escusar sua morte
não ha
remedio, que duas cousas sómente nos ficam, para que a Deus
e ao mundo certefiquemos o amor e boa vontade que lhe tinhamos. A
primeira, em nossas orações, jejuns e obras
meritorias havermos sua alma em memoria para a encommendarmos a Deus. A
segunda, este ramo em todolos signaes de virtudes tão
florecido, que de seu real Tronco naceo, que é o mui
excellente Princepe D. Affonso seu filho nosso Senhor, que temos
presente, havermo-lo de reconhecer, servir e amar por nosso
só natural e verdadeiro Rei e Senhor, como o requere nossa
mui antiga e costumada lealdade, e o Direito nos obriga. E,
porém, vo-lo apresento aqui para o assi em todo o
reconhecerdes, e vos encommendo da sua parte, que para o assi fazerdes
não hajaes respeito á sua nova
idade, mas ás velhas obrigações em que
para
isso lhe soes e sua Real Senhoria nos dá já uma
mui certa
esperança d'acharmos n'elle honra, mercê, favor e
justiça,
como cada um o merecer e lh'o requerer.»
E em dizendo Mestre Guedelha, que era boa hora para fazer sua
obediencia, o Infante com os giolhos em terra tomou as mãos
ao Principe, e em lh'as beijando disse:
«Muito alto e muito excellente Senhor, assi como vos eu hoje
ponho n'esta seda, em que vós por
graça de Deus legitimente
recebeis o real
Septro e senhorio d'estes vossos reinos, assi espero com sua ajuda e
minha grande lealdade de vo-los ajudar a manter e deffender com todas
as minhas forças e poder, e saber,
[16]
quando me vossa Mercê
mandar, ou eu sentir que cumpre a vosso estado e
serviço.»
E com estas palavras acabando se alevantou.
E logo D. Duarte de Meneses, alferes mór, filho do conde D.
Pedro de Meneses, primeiro capitão de Ceuta, com a bandeira
real levantada, e os reis d'armas e arautos com elle
começaram alli sua grita, e depois com ella foram pela
villa, repetindo-a tres vezes, segundo custume, com toda aquella
cerimonia e solemnidade que a tal auto real pertencia; porque o Infante
D. Pedro, por cuja ordenança e mandado se fazia, era
Principe n'aquellas cousas mui ensinado, e quiz n'aquelle auto que
não ficasse cousa dina por fazer: assi porque assi o
requeria sua grande bondade e a muita lealdade em que
nascêra: como por mostrar a muitos de damnadas
maginações, e á
Rainha D. Lyanor principalmente, que aquella fôra sempre, e
era sua leal e verdadeira tenção d'obedecer, e
não a outra falsa de querer por força reinar,
como lhe faziam crêr que elle desejava. Porque a Rainha, como
quer que sempre foi muito honesta, virtuosa, prudente, devota e muito
amiga da vida e honra d'El-Rei seu marido:
porém sempre em sua vida mostrou ao Infante D. Pedro que
não lhe tinha boa vontade: e as causas porque assim fosse
eram occultas para culpar o Infante, salvo se procedessem de
induzimentos alheios, que em sua feminil fraqueza de ligeiro fariam
impressão, ou por ventura procederia das imisades que foram
entre El-Rei D. Fernando d'Aragão, pae da rainha, e o conde
d'Urgel, pae da Infante D. Izabel, mulher do dito Infante D. Pedro, que
pertendeu por direito na successão d'Aragão, e
foi d'El-Rei n'ella vencido.
[17]
CAPITULO III
De
como começaram de
entender nas cousas do
reino, e se viu o testamento d'El-Rei
Tanto que a Rainha
viu seu filho alevantado por Rei, logo fez chamar
á sua casa o Infante D. Pedro, e o Arcebispo de Lisboa, D.
Pedro de Noronha, primo com irmão de seu pae d'ella, e as
outras principaes pessoas que hi eram. Perante as quaes, em
presença de notairos publicos, fez abrir e lêr o
testamento d'El-Rei seu marido, em que foi achado ella, sem ajuda
d'outra pessoa, ficar in solido testamenteira de sua alma, e titor e
curador de seus filhos, e regedor do reino, e herdeira de todo o movel.
E encommendou n'elle muito que, por dinheiro, ou captivos, ou por outra
qualquer maneira tirassem de poder dos mouros o Infante D. Fernando seu
irmão; e quando por semelhantes meios não fosse
possivel, que então Ceuta sem escusa se desse por elle; da
qual publicação a Rainha por sua guarda mandou
tomar estromentos, e começou logo a usar do regimento
inteiramente sem alguma publica contradicção:
como quer que alguns seus servidores avisados e virtuosos, e que de
verdade amavam sua vida, honra e descanso, logo sã e
secretamente lhe disseram em conselho n'esta maneira:
Conselho
que se
deu á
Rainha
«Senhora, o peso d'este cargo de reger, que assi soltamente
tomaes, é mui grande e tal, que muitos barões
abastados de fortaleza de
coração e de prudencia o receáram. E
por serdes mulher e ainda estrangeira,
[18]
como quer que para isso haja em vós
sã consciencia e conhecidas virtudes com mui santo desejo,
em caso que não houvesseis n'elle alguma
contradicção, certo duvidamos que o possaes
soffrer; porque Vossa Senhoria ha-de consirar que são n'este
reino tres Infantes, grandes Principes, e de muita autoridade, e
naturaes da terra, que hão d'estimar por quebra e abatimento
de seus estados serem regidos por mulher, especialmente não
natural nem herdeira, como vós sois, e que o por suas
bondades e assessego de todos quizessem consentir, não
falleceriam outros amigos de novidades, que lh'o fariam sentir e obrar
por outra maneira: de que se não podem escusar odios,
escandalos e outros muitos males, em especial claros impedimentos para
vós, nem elles estes reinos poderdes reger, como a
serviço de Deus e d'El-Rei, e bem d'elles cumpre: de que vos
muito deve pesar. E não vos fieis nos offerecimentos e muita
parte que vos muitos de si agora prometem, para crerdes que o
esforço d'estes enfraquentára o dos
outros; porque em fim todos, ou a mór parte hão
de seguir a vontade dos Infantes, qualquer que fôr, quanto
mais que já agora pelas praças se solta,
que El-Rei nosso Senhor, vosso marido, que santa gloria haja, vos
não podia leixar este cargo de reger:
cá este poder demleger regedor do reino era
sómente ao reino e aos tres estados d'elle reservado; e
d'onde isto agora sae de presumir é que mais jaz. Pelo qual
nosso conselho seria, que agora com prazer e assessego vosso, e do
reino, consirados todos estes inconvenientes, leixasseis assi de vossa
vontade este regimento, antes que depois o leixardes
forçada, ou impedida de vossa natural fraqueza, ou de outras
forças maiores: o que deve ser com pouca honra e
contentamento vosso. E a vós, Senhora, bem abastara terdes
cuidado
[19]
da
criação de vossos filhos, e do descargo d'alma
d'El-Rei vosso marido, que são cousas assás
grandes,
honradas e honestas.»
A Rainha, como era senhora de bom entender e de
tenção sã, e conforme em todo ao
serviço de Deus, pareceu-lhe bem este conselho, e quizera-o
seguir; mas não falleceram logo outros, que com outras
razões córadas ao revés d'estas, a
mudaram d'este
proposito, e fizeram tomar determinação de
todavia reger só: dando-lhe estes, por principal causa, a
segurança da vida e estado de seus filhos, que em poder do
Infante D. Pedro lhe faziam crêr que não seriam
muito seguros, por ser principe poderoso, amado do povo, e tinha
filhos, e podia n'elle entrar o desejo de reinar, que vence todolos
outros; e assi venceria n'elle a divida lealdade para o executar.
CAPITULO IV
Da
vinda do Infante D. Anrique à
côrte, e das cousas que se logo acordaram
O Infante D. Anrique, depois da vinda do cerco de Tangere, que veiu
fallar a El-Rei seu irmão a Portel, como anojado do
captiveiro do Infante D. Fernando, seu irmão: e por o feito
se
não seguir, como desejava, se tornou logo ao reino do
Algarve, sem mais tornar a este; e como lá foi avisado da
doença d'El-Rei, pelo grande amor e muita lealdade que lhe
tinha, partiu logo: e assi trigou suas jornadas, que em mui poucos dias
chegou a Thomar, onde já achou El-Rei fallecido. Mas a
Rainha, e o Infante D. Pedro, e toda a côrte, vendo-o com sua
triste
[20]
livré,
renovaram com sua vista outros prantos maiores, nem era sem
razão; porque n'elle pareciam signaes de tanta tristeza, e
dizia palavras de tanto sentimento, que aos dormentes na dôr
espertava para chorar, e ser tristes.
A Rainha depois d'esto enviou chamar o Infante D. Pedro, e lhe disse:
«Senhor Irmão, porque sinto que é
necessario dar-se ordem e remedio ás cousas do reino, que
estão ora
suspensas, eu vos rogo muito que tomeis cuidado de ter em vossa casa
conselho: e Vós, e o Infante vosso irmão, com os
principaes que aqui são, apontae o
que em taes tempos e casos convem que se faça: e trazei-m'o
para o vêr, e me acordar comvosco e se fazer o que
fôr serviço de Deus, e d'El-Rei meu filho,
Senhor, e bem de seus reinos».
A qual cousa se poz logo em execução, e se teve
conselho, em que foi acordado que aos embaixadores de Castella, que hi
eram por despachar, fosse por então respondido, que
esperassem a vinda dos grandes do reino, com que El-Rei ordenava de
fazer côrtes e ter conselho: e que logo haveriam resposta.
E estes embaixadores vinham a El-Rei D. Duarte, e chegaram ao tempo de
seu fallecimento; e as pessoas que eram, e o que requeriam, e com que
fundamento, ao diante se
dirá.
Acordaram outrosi, por quanto em Castella começava d'haver
movimentos, que pareciam principios de guerra, que os alcaides das
fortalezas dos estremos fossem avisados sobre bôa guarda e
defensão d'ellas: e assi que se fizesse o geral acostumado
chamamento, para o saimento que se havia de fazer na Batalha, e
côrtes em Torres Novas. E as cartas, que sobre isto haviam de
ir, acordou o Infante D. Anrique com os do conselho, que fossem
assignadas pelo
[21]
Infante D.
Pedro; mas elle com mostrança de muita honestidade se
escusou: e a Rainha assignou aquellas, e todalas outras até
ás côrtes; porque
n'ellas se acordou outra ordem de Regimento, como se dirá.
E assi tomou cuidado a Rainha de cumprir aquellas cousas do testamento
d'El-Rei, que logo cumpriam de se acabar. E de todo o movel que lhe foi
leixado tomou para si a capella e reposte, e repartiu as cousas de
guarda-roupa e estrebaria por essas pessoas a que lhe parecia
razão, e a que mais afeiçoada
era: não se esquecendo prover com vestimentas, das roupas e
pannos de seda que ficáram, a algumas egrejas e mosteiros,
em que sentiu que podia d'isso haver necessidade.
CAPITULO V
Como
o Infante D. Fernando foi jurado por Princepe, se El-Rei
não houvesse filho legitimo
Estando assi estes
Senhores em Thomar, esperando o tempo do saimento e
côrtes, foram alli juntas quasi todolas pessoas principaes do
reino, com esperança e certidão de futuras
mudanças, salvo o Infante D. João, que era doente
em Alcacere do Sal, a que por grande resguardo da Infante sua mulher, a
morte d'El Rei seu irmão não foi
descoberta se não depois que foi retornado em sua saude, a
que não fossem contrairas novas para elle tão
tristes. E sendo presentes em conselho os Infantes e o conde de
Barcellos seu irmão, e o Infante D. Pedro propoz logo
primeiro dizendo:
«Senhor irmão, e honrados senhores fidalgos que
aqui estaes, bem vêdes que a nova idade d'El Rei nosso Senhor
assi n'elle, como nos outros meninos, é sojeita a muitos
casos e desastres, de que Deus nosso
[22]
Senhor o guarde e defenda. E porque
d'aqui até que sua Mercê tenha idade e
desposição para
casar e haver filhos, se passará bom espaço de
tempo: meu voto é, por sermos fóra d'algumas
duvidas que por sua morte em tal tempo podiam sobrevir, que o Senhor
Infante D. Fernando seu irmão, seja logo aqui intitulado e
jurado por Principe e seu herdeiro, até que a Deus praza de
dar a El-Rei nosso Senhor filho que de tal nome se possa intitular, e o
sobceda: e n'isto não sómente faremos o que
é
necessario, mas ainda pagaremos o que devemos a nossa lealdade, e ao
grande amor que tinhamos a El-Rei meu Senhor e irmão, e ao
que somos certos que nos elle tinha. E este tempo é tal, em
que estas
obrigações se devem a seus filhos pagar, em todo
o que redunda em suas honras, estado e serviço».
Acabou o Infante sua proposição, em que
não foram necessarias mais razões para suas
sinas, para se louvar, e haver por justa e bôa sua
tenção. Pelo qual os Infantes e o Conde de
Barcellos, e os outros senhores que eram presentes, por si e por
todolos do reino logo fizeram d'isto um auto solemnisado por juramento,
perante notairos publicos, em cumprimento do qual o Infante D. Fernando
se chamou e intitulou por Princepe, até que El-Rei houve
filho.
CAPITULO VI
Primeiro
consentimento da Rainha para El-Rei seu filho casar
com a filha do Infante D. Pedro
A Rainha por este accordo e determinação de que
foi certificada, recebeu em sua tristeza muita
consolação, e em seus cuidados
descanço, e em seus receios grande segurança:
especialmente por
[23]
ser d'ella
inventor e principal movedor o Infante D. Pedro, em quem, pelas causas
que já toquei, lhe faziam sem causa ter suspeitas, a seus
filhos perigosas, e a ella desleaes; como quer que por elle nunca foram
cuidadas, nem por alguma obra, nem congeitura fossem sentidas. Pelo
qual, como Senhora virtuosa e agardecida a boa vontade e obras que o
Infante D. Pedro começára de mostrar, mandou logo
a elle o doutor Ruy Fernandes com esta mesagem:
«Senhor, diz a Rainha nossa Senhora, que por saber bem o
grande amor que vos El-Rei seu Senhor tinha, e o desejo que sempre teve
para vossa honra e acrecentamento: e como, em cumprimento de sua
tenção leixou dito a Frei Gil de Tavulla, seu
confessor, que sua derradeira vontade era, que o Principe seu filho
casasse com D. Isabel vossa filha; que assi por cumprir principalmente
a vontade d'El-Rei seu Senhor, como por vos mostrar com obras de vossa
honra e contentamento, o contrairo do que por ventura vos fazem d'ella
crêr: e des-hi, porque vê que
é este um dos melhores casamentos do mundo que a El-Rei seu
filho, Senhor, agora melhor pode vir, lhe apraz que este casamento logo
entre ambos se faça; e que para isso vos envia por mim seu
consentimento, que por ventura atégora haverieis por
duvidoso, e não tão certo.»
CAPITULO VII
Resposta
do Infante D. Pedro á
Rainha
O Infante, como ouviu este recado, em que viu o cabo de sua
bemaventurança, com o
coração cheio de alegria, e os olhos por isso
não vasios de lagrimas, disse:
[24]
«Doutor amigo, dizei á Rainha, minha Senhora, que
lhe beijo as mãos por tamanhas duas mercès, como
em sua embaixada me mandou offerecer: cá uma, de sua
Senhoria haver por bem que este casamento se faça,
é a maior que para mim pode ser. E a
outra não na estimo em menos; pois se lembrou de m'a fazer
sem meu requerimento. E que álem da paga principal que
n'isso recebe de suas muitas virtudes, prazerá a Deus que eu
a servirei por maneira que se não arrependa d'este seu
proposito: mas que por agora me não parece tempo conveniente
para isso, assi por a pouca idade d'El-Rei meu Senhor, em que se
não perde tempo, como pela tristeza geral, em que com tanta
razão todos seus vassallos estamos; e que sua Senhoria haja
por bem que isto se alargue mais alguns dias, nos quaes se
procurará a
dispensação que se requer, e o povo
perderá parte d'este sentimento, e se poderá
fazer então melhor e com mais
honestidade, e com aquellas cerimonias e festas que se a taes pessoas
deve.»
CAPITULO VIII
Contradicção que houve em
algumas pessoas no consentimento do casamento d'El-Rei com a filha do
Infante D. Pedro
O consentimento e prazer da Rainha ácerca d'este casamento,
não foi egualmente recebido nos
corações de todos os que alli eram: cá
uns o aprovavam com prazer e sem paixão, e outros com
tristeza, odio, inveja e cobiça, o não podiam
padecer. E entre alguns d'estes que hi havia, o principal, diziam, que
era o conde de Barcellos, a quem parecia
[25]
que da conclusão e outorga
d'este casamento pesava muito. E, como quer que em publico o
não contradissesse, procurava porém secretamente,
por meio do Arcebispo D. Pedro, de Lisboa, a quem a Rainha dava muita
fé, e não tinha boa vontade ao Infante D.
Pedro, como do que ácerca d'este casamento lhe tinha
prometido, ella se desdissesse, com fundamento de trabalhar com toda
sua possibillidade que El-Rei casasse com sua neta, D. Isabel, filha
maior do Infante D. João; porque o conde de Barcellos, como
já disse, foi filho natural d'El-Rei D. João, e
teve tres filhos legitimos da filha do Condestabre D. Nuno Alvares
Pereira, com quem primeiro casou: saber D. Affonso, conde d'Ourem; e D.
Fernando, conde d'Arrayolos: e a Infante D. Isabel, mulher do Infante
D. João; e por falecimento da filha do Condestabre casou com
D. Costança de Noronha, filha do conde de Gyam e
irmã d'este Arcebispo, que elle com
razão amava muito; porque n'ella havia assaz de virtudes e
fremosura e outras bondades, porque o bem merecia: e d'ella
não houve filho nem filha, e por seu respeito o conde de
Barcelos amava muito todas suas cousas d'ella, e em especial seus
irmãos, entre os quaes o principal era o Arcebispo, asi por
sua idade maior, como por sua denidade; e por isso o conde fiava
d'elle, e lhe encarregava a estorva d'este casamento d'El Rei com a
filha do Infante D. Pedro: e não falleciam outros que o
n'isso assaz ajudavam. Da qual cousa o Infante por seus meios foi logo
avisado: e como era prudente e discreto, não lhe esqueceu o
que geralmente se crê e afirma da inconstancia e pouca
firmeza que muitas mulheres por sua natural
condição tem, quão ligeiramente se
movem. Pelo qual, por segurar o passado, foi logo fallar á
rainha, pedindo-lhe com palavras em que havia muita razão e
honestidade,
[26]
que da
mercê e consentimento que lhe tinha prometido
ácerca do casamento d'El-Rei com sua filha, lhe desse uma
certidão e segurança assignada por ella; do que a
Rainha muito aprouve, e encommendou ao Infante que a fizesse, como fez,
em um Alvará, na fórma que cumpria: e Ella o
assignou e lh'o deu, que o tivesse.
CAPITULO IX
De
como se fez o saimento d'El-Rei no mosteiro da Batalha
El-Rei e o Principe
seu irmão, e a Rainha e Infantes, e
outros muitos prelados e condes, e senhores do reino, partiram de
Thomar para o mosteiro da Batalha no fim do mez d'Outubro, que era o
termo, a que as gentes, para o saimento d'El-Rei, se haviam n'elle de
ajuntar, e des-hi para as côrtes em Torres Novas, e por estas
ceremonias de saimentos, que aos Reis e Princepes, depois de suas
mortes, em suas reaes sepulturas se fazem, serem tão geraes
e tão costumadas em Espanha e assim n'estes reinos de
Portugal, que pela mór parte todos hão d'ellas
noticias e informação: por fugir o vicio
e avorrecimento da proloxidade, a mim pareceu escusado descreve-lo aqui
particularmente, e sómente abaste brevemente saber que na
pompa e cerimonias de suas exequias se guardou e cumpriu todo o que ao
estado de um tão alto Principe em tal auto cumpria; e nos
bureis e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas geraes de todolos
olhos, e na commum tristeza de todolos rostos, em todo o reino
claramente parecia
[27]
quanto
em sua vida era de todos amado, e a grande perda e desamparo que, por
sua morte e pelo perder, todos recebiam.
CAPITULO X
Como
ante de se fazerem as primeiras
côrtes em Torres Novas, se fez uma
conjuração contra o Infante D. Pedro
Acabado o saimento,
assi como alli eram juntos, assim se foram todos a
Torres Novas, onde por dar logar que alguns alcaides e outras pessoas
acabassem de vir, para fazer as menagens e dar a obediencia a El-Rei,
sem se começarem as
côrtes se passaram alguns poucos dias: nos quaes por meio
principalmente de Vasco Fernandes Coutinho, marechal, que depois foi
primeiro conde de Marialva, foram liados por juramento contra o Infante
D. Pedro casi todolos fidalgos do reino, em que entravam, por mais
principaes, o Arcebispo D. Pedro, e D. Sancho seu irmão, e o
priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; os quaes juntos secretamente em
uma egreja, o marechal, como quer que outros hi estivessem de
mór valor e auctoridade, elle para os mais commover a seu
proposito, porque tinha para isso audacia, lhe fez uma falla com largas
razões, cuja sustancia foi:
«Que o regimento do reino e criação
d'El-Rei e seus irmãos por disposição
do
testamento d'El-Rei ficára, como sabiam, que não
saisse do poder da
Rainha; o que elles deviam requerer e procurar que se cumprisse; assi
por ser razão, como por a Rainha ser mulher estrangeira, da
qual por se mostrarem em
[28]
favor de seu serviço e tenção sempre
receberiam honra, favor, mercê e acrecentamento; e por isso
deviam trabalhar que não viesse em maneira alguma ao Infante
D. Pedro, de cujos rigores e mostranças suas falsas, que
fazia ao povo, de justo e sã conciencia, não
podiam receber se não o contrairo; e que isto
lhes seria facil de fazer; porque por parte do Infante D. Pedro, quando
muito podesse ser, seria povo e gente meuda, que sem cabeceiras
não teriam forças
nem dariam ajuda, e que por a sua d'elles eram os que estavam presentes
com outros muitos que logo seriam com elles; e mais cria do Infante D.
Anrique, e sabia do conde de Barcellos, que seriam em sua ajuda,
pedindo-lhe em conclusão, que o houvessem todos assi por
bem, e o affirmassem, e segurassem com juramento.»
Do que a todos aprouve, e o poseram em escripto, que logo juraram.
Mas, como quer que n'isto entrassem grandes homens, e de muita
auctoridade, porém seus signaes e juramentos tiveram d'hi a
pouco pouca firmeza; todos os mais se desdisseram e acostaram
á banda do Infante D. Pedro e dos outros Infantes que foram
com elle; porque n'aquelle tempo todo o reino finalmente estava
á vontade e disposição dos
filhos e netos d'El Rei D. João.
E d'este ajuntamento assi jurado, que á rainha logo foi
notificado, porque confiou n'elle muito mais do que devera, se lhe
seguiu todo seu damno, perda, desassocego, e emfim a morte,
não como a seu estado cumpria; porque crendo, que n'estes
para seus feitos haveria a firmeza que juraram e lhe prometteram,
não se contentou no principio d'estes movimentos d'alguns
meios bons e honestos, que lhe foram apontados; do que a ella pelos
não acceitar se seguiu
[29]
muito mal, e ao reino, e a muitos
d'elles pouco bem, como se dirá.
CAPITULO XI
Como se deu a obediencia e fizeram as menagens a
El-Rei e se praticou sobre quem regeria
Assignado o dia da
proposição das
côrtes, El-Rei teve seu estrado e Real Estado em uma pequena
praça, que se faz ante a egreja de Santiago d'aquella villa,
onde todolos senhores e officiaes e procuradores dos povos postos em
sua costumada e antiga ordenança, começou e fez
arenga, que para tal auto se requere e costuma, o doutor Vasco
Fernandes de Lucena, mui elegante e cheia de mui dôces
palavras e graves sentenças para aquelle
caso da obediencia; e com necessarias e vivas razões exortou
todolos que eram presentes para a fazerem; como a arenga foi acabada os
Infantes primeiro, e des-hi os condes e os outros senhores deram logo
suas menagens e obediencias a El-Rei, segundo sua boa e devida
lealdade; e começaram logo de mover sobre quem teria o
regimento do reino, que das côrtes era o ponto mais
sustancial, no que houve entre todos grandes desvairos; porque os mais
se mostravam segundo opinião das parcialidades que tinham,
justificando cada uns suas tenções, e aos menos,
que haviam
respeito ao bem commum e assessego do reino, não eram
recebidos nem ouvidos seus meios.
[30]
Concordia
feita entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do
regimento
E porque a competencia e deferença do regimento
não era principalmente salvo entre a Rainha e o Infante D.
Pedro, a Rainha, como senhora, que de sua virtuosa
condição desejava todo o bem
e assessego, sentindo os malles e damnos que d'estas
diversões se podiam seguir, pelos atalhar com alguma justa
concordia, enviou rogar ao Infante D. Pedro por meio do Infante D.
Anrique, que lhe fosse falar: do que o Infante foi muito alegre; e,
escolhendo para isso tempo conveniente, satisfez logo a seu
requerimento: e, sendo ambos sós apartados, a Rainha lhe
disse muitas rasões sobre o desvairo do regimento, em que
bem pareceu que havia n'ella muita virtude, sã conciencia e
grande discrição e
justo juizo, concluindo que lhe rogava que ambos sem outro meio se
quizessem sobre isso concordar.
O Infante D. Pedro, como era Principe justo, bom, e temente a Deus, foi
de suas palavras assaz contente; e com outras de grande reverencia e
acatamento lh'as teve muito em mercê; e depois d'alguns
meios, sobre que entre si debateram, finalmente foram acordados d'esto:
«Que com a Rainha ficasse o cargo da
criação de seus filhos, e com a
governança e
ministração de toda a fazenda; e ao Infante
ficasse o regimento da justiça e o titulo de defensor dos
reinos por
El-Rei.»
O qual meio, por muitas rasões, que entre si praticaram,
houveram por justo e razoado; e mostraram ambos ser d'elle muito
contentes.
[31]
CAPITULO XIII
Da contradição e
mudança que houve n'este acordo
Fez-se este acordo
entre estes senhores pela manhã, no qual
dia os que eram ajuramentados, em especial o Arcebispo de Lisboa, por
meio de seus meios, que dentro trazia, souberam logo da falla que a
Rainha e o Infante houveram; e, como ficaram ambos d'acordo, do que
lhes muito pesou, e em especial se disse, que desprouvera muito ao
conde de Barcellos, que desejava e procurava entre elles haver
desacordo, por se não aceitar o casamento de El-Rei com a
filha do Infante, esperando com a vinda do Infante D. João
á côrte, que El-Rei
casasse com sua filha, como atraz se tocou.
E ao outro dia, sendo ante a Rainha juntos alguns d'estes Principaes
seus servidores, lhe perguntáram em que maneira se
concordára com o Infante. E a rainha lhes disse que era bem
concordada; e que por assi ser dava graças a Deus,
dizendo-lhe logo a concordia em que ficaram, e as causas e
razões porque ella devia ser, e era d'isso contente. A qual
cousa lhe logo todos desdisseram; e que fôra n'isso muito
enganada, e seu estado muito abatido; e que ainda errára
fazer nada em cousa semelhante sem primeiro lh'o fazer saber, ao menos
para a aconselharem, afeando tal concerto com razões e
inconvenientes assi
córados, e tão aparentes, que a Rainha, vencida
d'elles, creu que em fazer tal acordo não podera fazer cousa
em todo mais errada. Pelo qual logo alli lhe fizeram tomar outra
determinação contraira á
em que ficára com o Infante; e que todavia se afirmasse ella
só reger sem outra ajuda; e, quando não podesse
com alguma
[32]
parte do
regimento, que de sua mão a désse
e encarregasse a quem sentisse que havia de servir e fazer sua vontade.
O que não ficou logo por saber ao Infante D. Pedro.
CAPITULO XIV
Apontamentos que publicamente se fizeram contra o testamento
d'El-Rei para a Rainha não dever
reger
Com esta volta que a
Rainha fez do proposito e acordo em que
ficára com o Infante, começaram outra vez as
differenças e debates entre os grandes e povo sobre o
regimento.
A Rainha com os de sua parte requeriam para ella toda a
governança em solido, assi como no testamento d'El-Rei
ficára determinado: os povos geralmente com outros da parte
do Infante D. Pedro requeriam o regimento para elle só sem
outra ajuda nem companhia, allegando que a Rainha por muitas
razões não devia reger; e d'este voto foram Pedro
de Serpa, e Vicente Egas, cidadãos e procuradores de Lisboa,
homens honrados, bem entendidos, e de grande autoridade. Os quaes
altercando sobre estes debates perante El Rei,
como quer que era menino, quando um e quando o outro lhe disseram:
«Muito alto e poderoso Principe, Rei nosso Senhor, porque nos
parece que acerca de se regerem estes reinos por vós, sois
requerido que cumprindo o testamento d'El-Rei vosso padre, que Deus
haja, deis inteiramente o regimento á Rainha nossa Senhora
vossa madre, nós, como procuradores da vossa cidade
[33]
de Lisboa, e assi em nome
dos outros procuradores que aqui são, nossos
irmãos, dizemos que sob
reverencia de vossa real pessoa, El-Rei vosso padre não
podia fazer tal testamento; nem em tal caso leixar Regedor do reino
á sua disposição;
porque a nós vosso povo pertence por direito enleger quem
por defeito de vossa madura edade nos haja por Vós de
defender com as armas e reger por leis com justiça.
E isto não aggrava vossa legitima sobcessão; nem
mingúa em vossas lealdades; cá por serdes seu
filho maior legitimo, e barão, nós alegremente
vos
reconhecemos e recebemos por nosso verdadeiro Rei e Senhor; e com ajuda
de Deus vos guardaremos aquella lealdade, fé, e amor, que
bons, leaes vassalos devem a Senhor; mas quanto a enleger Regedor,
até que
Vós sejaes em edade para nos por vós regerdes,
nós
buscaremos e enlegeremos quem em vosso nome nos haja de reger e
governar; porque asi como a nós
sómente pertence enleger Rei, se a real e legitima
sobcessão dos Reis d'estes reinos por algum caso, o que Deus
não queira, se destinguisse, e se não guardaria
em tal caso o testamento, nem disposição do Rei
postumeiro;
assi pertence a nós enleger agora Regedor por
Vós; e
para serdes servido abasta que nós o
enlejamos
tal, que seja natural, e do vosso real sangue, e não
estrangeiro, e em que haja virtudes, saber, e conciencia, e sobre tudo
lealdade, a que se não deva poer suspeita. E vossa mui Real
Senhoria, guarde-nos nossa justiça e liberdade, como
esperamos, no que recebereis muito serviço: e nós
vossos vassalos com vossos reinos
receberemos mercê, proveito e assessego, que deveis desejar:
e assi o pedimos a vós, mui illustres Infantes e magnificos
condes; e requeremos a vós, honrados senhores, e leal povo
de Portugal, que aqui sois
[34]
juntos para celebrar estas reaes côrtes, que assi juntamente
o peçaes e requeraes que se faça.
No cabo d'esta falla, assi como os corações dos
que a ouviram eram desvairados, assi não houve rostos nem
consentimentos eguaes; e por isso não
cessáram os primeiros debates do Regimento, os quaes, como
sómente eram entre a Rainha e o Infante, como disse, alguns
por assessego apontavam que ambos fossem exclusos de reger, e
enlegessem outros; outros diziam, mas que ambos regessem juntamente
n'aquella parte que a cada um bem coubesse; outros tinham que a Rainha
sómente tivesse o Regimento; e outros o davam inteiramente
ao Infante: e a esta parte se inclinavam mais os povos; e a cada uns
para execução de seus votos não
falleciam autorizadas razões.
CAPITULO XV
Do
meio que o Infante D. Anrique tomou entre a Rainha e o
Infante D. Pedro ácerca do
Regimento
O Infante D. Anrique era a estas differenças presente, e
como virtuoso meio trabalhou de as poer em alguma
temperança: e posto que alguns tiveram que elle
fôra sempre mais inclinado
á parte da Rainha que á do Infante;
porém, passados
quinze dias d'apontamentos e conselhos, foi feita por acordo do Infante
D. Anrique, e dos outros do conselho e procuradores do povo uma
determinação por maneira de Regimento, que se
denunciou em publico ajuntamento por Nuno Martins da Silveira,
escrivão da puridade, cuja sustancia foi:
«Que a Rainha ficasse por tetor e curador d'El-Rei
[35]
seu filho com a
ministração das rendas e
officios; e o Infante D. Pedro tivesse cargo da defensão do
reino com titulo de defensor, e o conde d'Arrayollos, filho do conde de
Barcellos tivesse cargo da justiça; e que na
côrte, onde El-Rei estivesse, andassem sempre seis do
conselho repartidos a tempos, e mais um prelado e um fidalgo, e um
cidadão; e na côrte outros
alguns sem especial necessidade não podessem andar: e que
com estes seis do conselho e tres dos estados se determinassem todas as
cousas que sobreviessem com autoridade da Rainha e acordo do Infante D.
Pedro, estando sempre pelas mais vozes. E sendo caso que seus votos
fossem em desvairo por egual, que o notificassem então aos
Infantes e condes; e que segundo as mais vozes fosse o negocio da
duvida determinado».
E as repartições d'estas cousas, em que estes
senhores haviam de ter cargo, eram assi limitadas, que muito poucas, e
de pequena sustancia podia cada um em seu cargo, por só
determinar.
Foi mais ordenado «que em cada um anno se fizessem
côrtes, ás quaes não viessem mais que
dois prelados e cinco fidalgos, e oito cidadãos, e n'ellas
se determinassem as duvidas que os do conselho por si não
podessem concludir, ou algumas outras em sustancia assi especiaes, que
para aquelle tempo devessem ou podessem ser reservadas, assi como
mortes de grandes homens e privação d'officios
grandes, e
perdimentos de terras, e corregimento ou fazimento de leis e
ordenações; e que nas côrtes
vindoiras sempre se podesse correger e emmendar qualquer defeito ou
erro que houvesse nas passadas.» Com outras particularidades,
cuja mais expressão não é necessaria.
E n'este accordo cuidou o Infante D. Anrique que,
[36]
se o Infante D. Pedro o assignasse e
consentisse, que levemente acabaria com a Rainha que tambem assi o
fizesse; mas ella, a que o dito acordo foi primeiro mostrado, por
induzimentos de não verdadeiros e sãos
conselheiros o denegou fazer, querendo que o Regimento lhe fosse dado
inteiramente, e que ella de sua mão daria d'elle a parte que
quizesse a quem lhe bem parecesse.
E o Infante D. Pedro, como quer que mostrasse do dito acordo
sentimento, por lhe ser n'elle mui limitada e adelgaçada a
parte do reino que havia de reger, porém por assessego
disse: «que faria o que o Infante seu irmão
quizesse».
Mas o Infante D. Anrique, vendo tão forte o proposito da
Rainha, houve o feito por descordado de todo. De que o povo foi logo
sabedor, e posto em grande alvoroço contra a
tenção da
Rainha, e de seguirem a do Infante D. Pedro, qualquer que fosse. Ao
qual os povos por Lopo Antonio, que depois foi escrivão da
puridade, fizeram saber «que estavam para seguir o que elle
ordenasse, affirmando que
elle só sem outrem havia de reger.»
A Rainha por os de sua parcialidade, que d'este alvoroço
foram logo sabedores, foi conselhada que para o atalhar, como cumpria a
seu serviço e honra, e bem do reino, convinha que logo
assignasse o accordo, e não parecesse que por sua parte
ficava; á Rainha prouve fazel-o, e mandou logo chamar o
Infante D. Anrique, em cujo poder era o Regimento, e o assignou, e
ordenou que os Infantes e os outros prelados e condes, e procuradores,
o assignassem e jurassem juntamente, o que todos fizeram em um altar,
perante notairos publicos, salvo o arcebispo D. Pedro, que
não quiz por não ficar o Regimento
in solido á Rainha. Mas cada um que
assignou
e jurou,
[37]
fez assi seu
juramento, e só escreveu seu signal com taes cautellas e
palavras, que bem parecia querer leixar a sua
disposição fazer sempre depois o que
quizesse, sem parecer que o quebrantava.
CAPITULO XVI
Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou pedir ao
Infante D. Pedro o alvará que lhe tinha dado sobre o
casamento d'El-Rei
O conde de Barcellos, como quer que assignou este Regimento,
não foi porém d'elle satisfeito, por lhe
não ficar n'elle alguma parte; e como homem que para
acrecentar por qualquer maneira seu nome e proveito, teve sempre grande
cuidado, desejando que todavia o casamento d'El-Rei com sua neta se
fizesse, vendo que o alvará que a Rainha tinha dado ao
Infante D. Pedro lhe era para isso grande embargo, ordenou por si e por
outros de sua
tenção que a Rainha com razões
obrigatorias com que a moveram, mandasse pedir o alvará ao
Infante D. Pedro. A qual como quer que, como virtuosa o refusasse, por
não quebrar sua verdade, e mais a
determinação d'El Rei D. Duarte seu marido;
porém como importunada e induzida lh'o fizeram consentir.
E, porque algum dos outros que eram n'este acordo, não ousou
de ir em nome da Rainha ao Infante pedir-lhe o alvará, o
conde de Barcellos acceitou o cargo, e foi ao Infante, e lhe disse:
«Senhor, a Senhora Rainha vos manda dizer que sabeis, que vos
tem dado um alvará sobre o casamento
[38]
d'El-Rei nosso Senhor, seu
filho com vossa filha; e por quanto este caso é de tamanho
peso e importancia, que o não devera passar sem accordo e
conselho dos principaes do reino, a que tambem toca; e agora por estes
movimentos não é, nem
póde n'isso entender, vos roga que lhe mandeis o
alvará, e que sobre isso terá a maneira que vir
que cumpre, fallando primeiro com nós outros, de quem sabeis
que não ha de sahir, salvo cousa que seja vossa honra e
acrecentamento.»
O Infante lastimado da embaixada e avisado de sua
destruição, d'onde nacia, a que fim vinha,
disse:
«O alvará que dizeis, é em meu poder; e
eu, se quizesse, justa e honestamente podia denegar á
Senhora Rainha a entrega d'elle; porque não sei como o que
por El-Rei meu Senhor e irmão me foi outorgado, e por ella
depois a mim lembrado, requerido e outorgado, se me póde
revogar sem causa; bem creio que em suas virtudes haveria firmeza de
cumprir o que promette, e mais em cousa tão justa e
tão
honesta, se a não movessem d'ella conselheiros pouco fieis,
no que lhe fazem pouco serviço; porém, porque
não pareça que eu por força quero, nem
tomo, o que
com razão me devia ser requerido e dado, dae a sua Senhoria
seu alvará, e irá roto, e não
são a seu poder, em testemunho da quebra de sua verdade, que
me quebrou.»
E logo o tirou de um cofre, e o rompeu, e roto o entregou ao conde.
[39]
CAPITULO XVII
Como El-Rei se foi a Lisboa, onde o Infante D.
João veiu a primeira vez
Um mez e alguns dias
mais duraram as côrtes em Torres Novas,
em fim das quaes, por ser o anno de mantimentos mui esteril, e aquella
comarca mui cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem, como
foram, com El-Rei para Lisboa, onde, por via do mar com industria e
aviamento de bons regedores, se buscou razoado provimento, que deu
causa serem hi os mantimentos em menos careza, que em alguma outra
parte do reino.
O Infante D. João, depois de convalescido da
doença de que já se disse, soube do fallecimento
d'El-Rei seu irmão, de que sobre todos seus
irmãos mostrou ser
mais anojado e não era sem razão; porque por
fallecimento da Rainha D. Filippa, sua madre, o Infante D.
João e Infante D. Fernando ficaram pequenos; e El-Rei D.
João recolheu para si o Infante D. Fernando, que era mais
moço; e deu o Infante D. João a El-Rei Duarte que
o criou e amou sempre, como proprio filho: e por esta
criação, que com elle
teve, álem da geral e natural divida d'El-Rei e
irmão
lhe devia o Infante D. João, sentiu sobre todos sua morte;
porque vindo ante a presença d'El-Rei e da Rainha, depois da
obediencia e reverença devida, suas continuas lagrimas e
dorosas palavras davam claro
testemunho
do sentimento de seu coração pela
morte d'El-Rei. E ali em publico fez logo uma falla á Rainha
de grandes offerecimentos, de a servir e amar mais que nunca, com
palavras de muita discrição e
[40]
amor, e acatamento, em que
tambem com razões evidentes lhe tocou, que lhe parecia que
se não devia antremeter no regimento do reino; e que assi
como esta havia de ser sua tenção, assi seria
tambem
que em todo o mais sua honra, estado, acatamento e serviço
se guardasse por todos o mais inteiramente, do que se nunca
guardára a outra Rainha; do que ella não foi
contente, e muito menos os da sua
tenção, que eram presentes: e porque isto foi
dito de praça, logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com
que os povos e a gente d'ella principalmente começaram de se
alvoroçar e praticar entre si secretamente, como tirariam o
Regimento á Rainha.
CAPITULO XVIII
Do
despacho que se deu aos embaixadores de
Castella
Os embaixadores de Castella, que eram na côrte, como se
atrás disse, pelos desvairos que sobre o Regimento houve em
Torres Novas não foram ouvidos, nem despachados
até Lisboa, onde juntos á Rainha e Infantes com
os deputados do conselho deram sua embaixada, a qual, por ser desgosto
d'este
reino, se crê que tardou tanto em se ouvir; porque
já a sustancia d'ella seria revelada.
Requereram em nome d'El-Rei D. João o segundo, que
então reinava em Castella, que as egrejas que pela Cisma
então foram tiradas aos bispados de Tuy e Badalhouce, e eram
regidas por administradores, se tornassem a seus proprios prelados.
Outrosi que os mestrados d'Aviz, e Santiago d'estes reinos tornassem um
[41]
á Ordem e
obediencia de Calatrava, e o outro á de
Santiago de Castella, cujos membros foram, e que os titulos ficassem,
como eram, e as enlições se
fizessem cá; mas as confirmações
d'elles se
houvessem pelos superiores de Castella. Requereram outrosi que alguns
bispados d'estes reinos reconhecessem superioridade ao arcebispo de
Sevilha, como Metropolitana sua, que sempre fôra. E assim
apontaram sobre tomadias de navios, que se fizeram, requerendo
restituição,
apontando e allegando sobre cada uma d'estas cousas muitas
razões e fundamentos de direito: porque entre elles era um
grande doutor de direitos.
Ouvida esta embaixada, em que tambem os embaixadores tocaram aggravos
de sua tardança, houve sobre o despacho d'elles grandes
divisões, segundo os votos de cada um; porque a uns parecia
bem responder-lhe manso, poendo a defesa d'esto em razões de
direito; e a outros parecia que no esforço e
confiança d'armas e valentes corações;
e finalmente foi
havido então por melhor acordo envia-los, como enviaram, sem
alguma certa resposta, escurando-se com os movimentos,
torvações e pouco assessego que pela morte
d'El-Rei ainda no reino havia; e que El-Rei, depois d'haver em todo seu
conselho, enviaria logo a El-Rei de Castella a resposta com sua
embaixada.
E o que d'estes requerimentos se pôde logo saber, foi que
não nasceram da propria vontade d'El-Rei, em cujo nome
vinham; mas dos Infantes d'Aragão, seus cunhados, que
então picavam com elle, e governavam o reino, com
fundamento de meter este reino em
necessidade, e elles
por seus meios e com sua privança o remedearem, e esperando
que por isso carregariam maior obrigação a El-Rei
de P de meter este reino em
necessidade, e elles
por seus meios e com sua privança o remedearem, e esperando
que por isso carregariam maior obrigação a El-Rei
de Portugal e a seus reinos e vassalos, para as necessidades suas, em
que esperavam de se vêr, como viram: por quanto fizeram
[42]
então
lançar fóra d'El-Rei de
Castella e de sua côrte o condestabre D. Alvaro de Luna,
grande poderoso, e muito seu imigo.
CAPITULO XIX
Como a Rainha começou de reger e ser em seu
regimento prasmada
A Rainha regia o reino, e tinha El-Rei em seu poder, e por seu aio Nuno
Martins da Silveira: e como ella era de boa e virtuosa
tenção tomava o encarrego do Regimento com mais
trabalho e
continuação do que tivera em costume, nem
requeria sua fraca desposição; e des-hi os
requerimentos assi
pela boa ordem que se logo deu ao ouvir d'elles, como por haver
já dias que se não despachavam,
cresciam cada vez mais; o que cada dia, além de ser prenhe,
lhe causava dôres e enfermidades, que contrariavam seu bom e
verdadeiro proposito; e, sendo com razão aconselhada que
temperasse seu grande trabalho, e entrepozesse nos negocios alguns dias
para seu repouso e descanso, ella constrangida já de suas
proprias necessidades o começou de fazer, não sem
reprensões do povo, com que indevidamente logo
começaram a acusar sua innocente fraqueza, e queriam asolver
seus muitos e desordenados requerimentos, e incomportaveis
importunações. Pelo qual alguns se atreviam
já havendo por serviço de Deus e d'El-Rei e bem
do reino de cometer ao Infante secretamente que tomasse o Regimento de
todo; mas elle, ou por sua
dissimulação, ou por ser assi sua vontade, a
todos tirava de tal esperança; antes em taes cousas assi se
fazerem,
[43]
posto que melhor
se podessem e devessem fazer, sempre escusava as fraquezas e innocencia
da Rainha com quanto podia.
CAPITULO XX
Fallecimento da Infante D. Filippa
N'este anno de mil e
quatrocentos e trinta e nove, no mez de
Março, porque começaram de morrer em Lisboa, e se
finou de pestenença a Infante D. Filippa, de onze annos,
filha d'El-Rei D. Duarte e da Rainha sua mulher, El-Rei e o Principe se
foram a Almada; e a Rainha se foi a uma quinta junto com Santo
Antão, que se chama Monte Olivete.
CAPITULO XXI
Nascimento da Infante D. Joana
E alli pariu a Infante D. Joana, que depois foi Rainha de Castela, e
lhe vieram novas como o Infante D. Pedro, seu irmão mais
moço,
fôra morto em Italia de uma bombardada, estando com El-Rei D.
Affonso seu irmão, em cerco sobre a cidade de Napoles. E
assi veiu á Rainha n'este anno uma carta consolatoria do
Papa Eugenio, confortando-a sobre a morte d'El-Rei seu marido, e
amoestando-a que por alguma maneira se não desse a cidade de
Ceuta por a soltura do Infante D. Fernando, allegando-lhe para tudo
razões santas e catholicas quanto a Deus, e de muita honra e
louvor para este reino.
[44]
CAPITULO XXI
Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre
descontentamentos que tinha da Rainha ácerca do Regimento
No mez d'Agosto d'este anno de mil e quatrocentos e
trinta e nove,
a Rainha se foi da quinta de
Santo
Antão para Sacavem: e o Infante D. Pedro
ficou com El-Rei em Lisboa, onde fallando com D. Alvaro Vaz d'Almada,
capitão mór do mar, e com outros de que se fiava,
disse:
«Que por quanto n'esta parte do Regimento que
aceitára, segundo era pequena, e a Rainha se havia
soltamente em todo, e defamava a elle e todas suas cousas, elle recebia
grande abatimento: sua vontade era, por muitas razões que
apontou, leixar aquelle pequeno cargo que lhe fôra dado, e
ir-se para suas terras: e que porém queria saber que lhes
parecia».
No que por seus conselheiros houve votos desvairados, cá uns
tinham que emprendesse e tomasse o Regimento de todo: e outros que se
contentasse com a parte que tinha, e se são
fosse: outros que leixasse tudo e se fosse: e a cada um não
falleciam razões
assaz aparentes para justificar seu parecer. E finalmente foi acordado
que d'estas seguisse a parte que ao Infante D. João melhor
parecesse; porque era de crêr que á sua seria o
Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e assi seus filhos os condes
d'Ourem e d'Arrayollos.
[45]
CAPITULO XXII
Como
o Infante D. Pedro e o Infante D. João
ambos se viram e fallaram sobre o Regimento
Pelo qual o Infante
D. Pedro enviou pedir ao Infante D.
João, que era em Alcohete, que se vissem, como viram logo
ambos, no Oratorio de Santa Maria do Paraiso, em que se depois fundou e
mudou o mosteiro de Santos da Ordem de Santiago.
E porém ante da ida do Infante D. João, elle
primeiro foi avisado do capitão Alvaro Vaz, como de si
mesmo, da tenção porque o Infante D. Pedro se
queria com elle vêr.
Alli os Infantes se apartáram sós, onde o Infante
D. Pedro com largo recontamento propoz a tenção
em que era de leixar a parte do Regimento que tinha: como era
aconselhado pelo contrairo, apontando as causas e razões em
que uns e outros se fundavam: e que porém lhe pedia que
n'isso o aconselhasse; por que na confiança que tinha de seu
saber e
certidão de amor, que entre elles havia, sua vontade era
seguir o que a elle melhor parecesse.
O Infante D. João lhe respondeu:
«Senhor irmão, ante d'isto eu tinha já
n'este caso assás consirado; e, porque mui em breve vos
responda, sabei que se chamais erro acceitardes o Regimento, como sois
aconselhado, não sei cousa que possaes acertar,
cá se vós nascereis primeiro e vos
não fizera Deus tão bom e tão prudente
como soes, e assi ao Infante D. Anrique nosso irmão,
crêde que eu
requerêra
[46]
o
Regimento para mim; e se m'o
não quìzerem dar, eu o tomára
ou
morrêra sobre isso; porque com
quanto a Rainha é mui virtuosa e mui discreta e amiga de
Deus, nunca vi mór vergonha e abatimento nosso, que sermos
regidos por ella; pois é mulher, e mais
estrangeira».
O Infante D. Pedro lhe respondeu:
«Senhor irmão, bem vejo o que dizeis ter
fundamento de muita razão, se por todos se quizesse assi
consirar com juizos livres de paixão; mas como n'este caso
haja propositos e tenções desvairadas, tenho
receio nascer d'ellas alguma divisão, que a qualquer reino
grande faria perder, quanto mais a este de Portugal tão
pequeno, que sem sua destruição
não padece algum desacordo; e por elle ser a herdade em que
nascemos e que nos criou, e porque nosso padre tanto sangue espargeu, e
tanto trabalhou pela conservar e manter, eu sentiria em egual de morte
para mim ser eu causa de sua perdição: verdade
é
que, se com prazer de todos e sem alguma divisão se podesse
fazer, logo por serviço de Deus e d'El-Rei meu Senhor, e bem
de seus reinos e minha honra, folgaria aceitar este cargo.»
O Infante D. João lhe disse:
«A divisão e desacordo do reino que temeis,
não querendo vós usar do Regimento,
não se escusa se
a Rainha com estes que agora esforçam sua
tenção o reger; porque elles n'esta contrariedade
que seguem não hão respeito a algum amor que
tenham
á Rainha, nem menos ao reino em que vivem, mas
sómente por segurarem e escaparem os castigos de seus erros
passados, e d'outros, se os fizerem; e para com achaque de necessidades
fingidas tomarem causas de pedirem e encurtarem o patrimonio real e
acrecentarem o seu; e por esta conta, que é verdadeira, a
justiça e a fazenda
[47]
do reino, em que consiste toda sua sustancia, cairiam com elle de
necessidade na
perdição que temeis: e além de o
cuidado e trabalho de reger ser
incomportavel ás forças da Rainha, hei ainda mais
por principal
inconveniente o
Regimento d'este reino
ficar só á sua disposição
esta vinda dos Infantes de Aragão, seus irmãos, a
Castella; porque, como
são homens amigos de novidades, e tem no mesmo reino grandes
competencias, certo é que se hão de
favorecer com este, e poer muitas vezes as gentes d'elle em perigo; e
as rendas em despesa por sua ajuda e favor: assi que por estas
razões e inconvenientes, que em vós regendo todos
cessam, meu conselho é que
vós todavia rejaes: e quando o vós não
quizerdes ou
não poderdes fazer, que o faça o Infante D.
Anrique nosso irmão; e des-hi eu, se o caso a isso chegar, e
da
divisão que tocaes, não tenhaes receio; porque o
Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e seus filhos, os condes
d'Ourem e d'Arrayllos, que são as pessoas principaes do
reino, seguiriam em tudo nossa tenção, quanto
mais esta, em que ha tanta
necessidade, justiça e honestidade: e se d'alguma parte
devem de esperar honra e interesse, em vós a
terão mais
certa: e por tanto eu me affirmo que todavia deveis reger; e que logo o
declareis; e nas côrtes que se ora
hão de fazer ácerca d'isso, eu darei e susterei a
voz por vós: e não sinto alguem tão
ousado,
que m'a ouse contrariar.»
O Infante D. Pedro finalmente disse:
«Que seu parecer era, que por então não
devia ácerca d'isto fazer
altercação nem mudança alguma;
porquanto até ás côrtes havia ainda bom
espaço de tempo, no qual poderia ser que a Rainha mesma
cansaria n'este cargo, e não se sentiria desposta para elle,
e seria contente d'algum tal meio, porque cessassem
[48]
odios e escandalos entre elles, e o
reino seria regido em outro bom assessego, como desejava.»
E n'este acordo ficaram; e o Infante D. João se tornou a
Alcochete; e o Infante D. Pedro se foi a Camarate, junto com Sacavem.
CAPITULO XXIII
Como a Rainha lançou fóra de sua
casa certas donzellas, por suspeitas a ella, e affeiçoadas
ao Infante D. Pedro
A Rainha estava em Sacavem com El-Rei e seus filhos, onde seu
coração não tinha
repouso com novas de mudanças e alvoroços, que se
em Lisboa cada dia moviam, de que logo era avisada por pessoas que por
isso esperavam haver com ella mais graça, e pelas cousas que
lhe faziam crêr, ella
começou d'haver e declarar por suspeitas e contrairas a si
mesma todas cousas do Infante D. Pedro; pelo qual com palavras irosas,
e que não cabiam em sua prudencia, mansidão e
virtudes, lançou fóra de
sua casa duas donzellas, filhas de Izabel Gomes da Silva, mulher de
Pero Gonçalves, vedor da fazenda, e
filha de João Gomes da Silva, e irmã d'Aires
Gomes da
Silva; e assi não consentiu em sua casa outra donzella,
filha de João Vaz d'Almada, sobrinha do capitão,
por serem pessoas do Infante D. Pedro: o que a Rainha fez por
induzimentos alheios sem aquelle resguardo e bom conselho, que a seu
estado e serviço cumpria; porque o lançar d'estas
donzellas fez contra ella grande escandalo na cidade de Lisboa, por
serem dos naturaes e principaes d'ella, e assi por se declarar
[49]
imiga do Infante D.
Pedro, que do povo era mui amado; porque até li sua
desavença d'ambos podia jazer em suas vontades; mas sua
rotura não se dizia nem mostrava tão depressa
como se por isto mostrou.
CAPITULO XXIV
Do alvoroço que se seguiu contra a Rainha
pela execução dos varejos de Lisboa
Acrecentou mais este
escandalo contra a Rainha, e para a maior parte do
povo soltamente contrariar seu Regimento, passar uma carta em nome
d'El-Rei, porque fazia mercê a Nuno Martins da Silveira, seu
aio, dos varejos a que os mercadores de Lisboa eram
obrígados de sete
annos, cuja
publicação e esperança de
execução aos ditos
mercadores causou tanta tristeza e sentimento, que certificados de suas
perdições, se se executassem, se
soccorreram á camara da cidade, e com palavras em que moviam
todos a piedade para si mesmos, e com muitas razões que
pareciam de serviço d'El-Rei e bem do reino, lhe pediram que
com a Rainha e com o conselho, ou por outra qualquer maneira a tal
mercê impedissem.
A cidade fez sobre isso seu ajuntamento, em que por força
entraram mais dos ordenados; e a elle vieram um Bertolameu Gomes,
contador, e outro Alvaro Affonso, escrivão da sisa dos
pannos, criado de Nuno Martins, em cujo poder era a carta, por serem os
solicitadores d'ella; e, sendo lida em publico, foi tanta a
defensão e alvoroço em todo o povo, por ser
passada por só auctoridade da Rainha sem accordo do Infante
D. Pedro, que Alvaro Affonso, com fundamento
[50]
de lhe fazerem padecer morte
mais crua, o fizeram saltar por uma janella, mas, por cair primeiro em
um telhado, não morreu; e a Bertolameu Gomes alguns
cidadãos seus amigos com grande difficuldade defenderam a
vida: cá n'estes, por serem mui ensinados no que pertencia
ás rendas d'El-Rei, havia suspeita, que deram azo e
conselho, como esta mercê se pedisse.
Os que fizeram este insulto e alvoroço em desacatamento da
Rainha, eram quasi todolos do povo com alguns principaes da cidade, e
com temor que tinham de a Rainha com rigor de justiça os
mandar castigar como porventura mereciam, procuravam e ordenavam assi
em secreto, como já em publico, que o Regimento lhe fosse de
todo tirado, sobre o qual tinham suas praticas, que enviavam logo ao
Infante
D. Pedro, dando-lhe
muitas razões e
esforço para
só tomar o carrego de reger. O qual, como quer que
até li sempre mostrasse estranhar com palavras de
honestidade aos que lhe em tal caso fallavam, porém a este
tempo por ter sabido e visto como a Rainha se declarava ter-lhe desamor
e má vontade, d'hi em diante, aos que n'isso o comettiam,
já recebia e ouvia mais com rostro de lhe agradecer que o
fizessem para vir a effeito, que de lhe pesar.
E porque na cidade havia n'este caso propositos e vontades contrairas,
assi naciam d'ellas bandos e rumores que mostravam signaes de
rompimentos perigosos, aos quaes nem por provimentos e penas dos
officiaes de justiça, nem por
pregações que se de industria de bons religiosos
para ello fizeram, nunca se pôde atalhar, antes crecia cada
vez mais.
[51]
CAPITULO XXV
Ida
do conde d'Arrayollos a Lisboa sobre assessego d'ella, e
como não aproveitou
Era a este tempo na
cidade Pedro Anes Lobato, homem de grande
auctoridade e bom cavalleiro, ao qual, como quer que de grande
condição de sangue não fosse, El-Rei
D. João por conhecer d'elle ser bom e discreto, e em armas
homem esforçado, deu a governança da
justiça
da casa do civel, e a tinha; e por vêr a união e
desacordo na
cidade tamanho, a que com sua vara e forças não
podia resistir, avisou de todo a Rainha, e por muitas causas lhe enviou
pedir trigoso remedio. A qual com esses que com ella eram presentes,
teve sobr'isso conselho, onde foi acordado que o conde d'Arrayollos,
que estava em uma quinta junto com Loures, por ter cargo da
justiça do reino e ser pessoa de valor e
autoridade, fosse poer assessego nas cousas da cidade, para o qual foi
logo chamado, e fallou com a Rainha o que n'aquelle caso cumpria: e
d'ella por ser de boa tenção e sã
conciencia, e tambem de si
mesmo por ser virtuoso e justo, foi avisado segundo o feito estava, de
o tratar e assessegar mui mansa e temperadamente.
Partiu-se logo o conde para Lisboa com a trigança que se
requeria, onde chegou á tarde, e para haver melhor
informação das cousas, e ter conselho
sobre o remedio d'ellas, quizera repousar algum pequeno
espaço de tempo sem n'ellas intender; mas ao outro dia por
sua ida foi tanto o alvoroço e desacordo na cidade, e com
tanta soltura de palavras deshonestas
[52]
e mostranças de
desobediencia, que o conde não
sabia que caminho de remedio tomasse; porque os da parte da Rainha
favoreceram-se com sua ida, affirmando em seu favor que era para fazer
justiça dos alevantadores da união sobre o caso
dos varejos, e que contrariavam o Regimento da rainha: e os da parte do
Infante D. Pedro e Infante D. João com muitos da cidade, que
eram d'outro acordo, tomaram receio de ser por ventura verdade;
especialmente porque um Luiz Gonçalves, official na
relação, criado de Pedro Anes Lobato, e que
ás cousas da Rainha havia grande
affeição, affirmou de praça que
por a ida do conde á cidade cedo veriam por
justiça as gigas
da ribeira cheias de pés e mãos de muitos, como
de
pescado, o que logo se soltou publicamente: e por ser homem d'algum
credito e ter officio na casa da justiça, fizeram para isso
suas palavras alguma impressão e crença; e
pareceu que as não diria sem ter
alguma cousa d'isso sentido. Pelo qual alguns principaes
cidadãos com verdadeiro temor e
occupações fingidas de proverem suas fazendas, se
ausentaram da cidade, temendo que em tanto alvoroço
não
houvesse justo juizo, e que por ventura poderiam receber pena sem
culpa.
Mas os do povo posposto todo o medo assi continuavam, e acrecentavam a
cada vez mais sua união, e com tanto rumor d'algum fim
perigoso, que o conde desesperado de com suas forças, nem da
justiça poder assessegar o feito como desejava, havido
primeiro sobre isso conselho, tentou de o remedear com
prégações, palavras brandas, e de
conciencia, que por algum bom e entendido religioso em ajuntamentos
publicos se dissessem.
E havido este por melhor e derradeiro remedio, o conde fez chamar um
Frei Vasco da Allagoa, da Ordem
[53]
de S. Domingos, ao qual por ser
padre d'auctoridade e de letras, e ter boa audacia para dizer,
encommendou que sobre o caso das uniões e desaccordos da
cidade, o domingo seguinte prégasse no seu mosteiro,
avisando-o primeiro que todo seu fundamento fosse commover o povo a paz
e assessego.
E sendo n'aquelle dia por aviamento e rogo do conde juntos no mosteiro
quasi todolos da cidade, Frei Vasco começou seu
sermão, e por ser servidor
da Rainha e ás cousas de seu serviço mais
inclinado, esquecido do aviso que lhe fôra dado d'amansar o
povo com esperança de bem, tocou o caso e revoltas da cidade
com tanta reprensão dos cidadãos e povo
d'ella, que com altas exclamações os chamava
ingratos e desleaes, trazendo-lhes ás memorias entre outros
exemplos, a pena que os cidadãos de Bruges mereceram e
houveram pela desobediencia e traição que
cometteram contra o duque Filippe.
E estando já todo o povo mui descontente e escandalisado das
palavras de Frei Vasco, um barbeiro em meia voz, e com rostro iroso
disse contra os que junto com elle estavam:
«E como egual é o nosso caso dos framengos, que
quizeram matar seu principe e Senhor?―Nós não
somos tredores mas mui leaes, e não havemos de matar nosso
Rei e Senhor; mas porque o amamos havemos todos de morrer por elle,
quando lhe cumprir: mas certo este frade alguma cousa tem sentida:
porque nos põe esta raiva.»
E estas palavras com algum rumor começaram ir de puridade em
puridade pelas orelhas de muitos do povo, os quaes assi como as ouviam
assi volviam logo os olhos de sanha contra o frade, e com
mostranças de tanta indinação, que
elle sentindo seu
alvoroço,
[54]
por se
não vêr em perigo, desamparou sem
conclusão o pulpito, e se acolheu ao mosteiro.
O conde d'Arrayollos foi mui descontente do prégador, por
errar em todo a sustancia de seu proposito, e do que era para o tempo
necessario. E vendo que para amansar o povo já lhe
não ficava remedio
para o fazer, e que sua estada d'hi em deante lhe faria abatimento, se
partiu da cidade, e foi á Rainha dar-lhe de tudo conta.
E o povo depois de comer não esquecido do escandalo do
sermão foram ao mosteiro e disseram ao priol que logo
lançasse Frei Vasco fóra d'elle, se
não que o derribariam e queimariam. E o priol aconselhado da
necessidade do tempo assi o fez; e o prégador se salvou
secretamente.
CAPITULO XXVI
Como
o Infante D. Pedro foi a Lisboa reprender e assessegar
as uniões da cidade
O Infante D. Pedro estava em Camarate como já disse, e
sabendo que a ida do conde seu sobrinho á cidade nas
revoltas
d'ella não
aproveitara, desejando poelas em assessego se foi lá; e no
mosteiro do Carmo onde pousou fez logo ajuntar os principaes da cidade
com os officiaes da Camara, e com a cara grave e palavras de grande
autoridade sustancialmente os reprendeu de suas uniões e
alevantamentos, com que faziam doésta á Rainha e
a elle e a todolos que tinham cargo de reger por El-Rei o reino; e que
por isso tinham merecido aspero castigo, e o mereciam maior se o
não atalhassem; e que, se
[55]
sobre aggravos que tivessem recebidos
queriam requerer suas liberdades e direito, que o fizessem por outra
maneira como subditos, e que seriam bem ouvidos; e não com
presumpção de superiores, de
poer e despoer Regedor á sua vontade, como diziam,
tocando-lhe sobr'isto muitas e notaveis razões conformes a
este proposito, as quaes alguns tomaram que não sahiram
verdadeiramente de sua vontade; porque tinham concebido que lhe
não pesava de semelhantes movimentos por serem contra o
Regimento da Rainha e com fundamento de elle o ter; mas a
determinação d'este juizo fique
sómente a Deus que o soube.
Os cidadãos, depois de ouvido o Infante, lhe responderam mui
mansamente, tendo-lhe em mercê aconselha-los bem; e d'es-hi
asolvendo-se como melhor podéram dos alevantamentos
passados, especialmente no caso dos varejos, em que houveram respeito a
não serem os mercadores da cidade pela
execução
d'elles destruidos, e assi em quererem áquelle
escrivão,
que persumiram ser inventor, dar tal castigo, que outros por seu
exemplo semelhantes cousas não inventassem, pedindo ao
Infante que em seus trabalhos e aggravos os quizesse ajudar e
favorecer, obrigando-o para isso com razões assaz honestas e
boas. Onde logo por um dos procuradores dos mestres foi apontado que as
divisões e escandalos não nasciam no reino, salvo
por o Regimento d'elle ser repartido por muitos, e que para bem ser, ou
havia de ficar sómente á Rainha
ou a elle, allegando do contrairo muitos inconvenientes não
sem fundamentos de razão, como cousa em que já
muitas vezes tinham praticado.
E o Infante depois de sobretudo haver largas repricas e praticas, lhe
encommendou muito o assessego da cidade, e que para as côrtes
que se chegavam, podiam livremente requerer e apontar o que
[56]
lhes bem parecesse, e que elle no que
fosse direito e justiça os ajudaria: e com isto se despediu
d'elles, e se tornou a Camarate.
CAPITULO XXVII
Como
a Rainha mandou secretamente preceber os de sua valia
que viessem ás côrtes
armados
A Rainha sendo d'estas cousas informada, sentindo
que os alvoroços da cidade não cessavam, antes
creciam com fundamento de o Regimento lhe ser tirado, o notificou logo
pelo reino a todolos fidalgos, e pessoas d'estima, que entendeu serem
por ella, encommendando-lhes que para as côrtes logo
vindoiras viessem d'armas e gentes assi percebidos, que com sua
segurança podessem resistir a qualquer contrariedade que os
povos em seu
dessserviço quizessem ordenar e fazer: e para ser
mais em segredo, não o escreveu a todos particularmente, mas
ordenou regimentos para
cada
comarca, e
escudeiros de que fiava; e com suas cartas de crença os
andassem secretamente mostrando áquellas pessoas que ella
queria.
A qual cousa com quanto pareceu ser incoberta, foi logo ao Infante D.
Pedro revelada, e ainda mostrado por mór certeza um dos
proprios regimentos: e maravilhado d'isso o descobriu e mostrou logo ao
conde d'Arrayollos, que com grande trigança veiu sobr'isso
fallar á Rainha, espantando-se muito de tal movimento, e
reprendendo quem lh'o conselhára, pedindo-lhe afincadamente
com respeitos de serviço de Deus e d'El-Rei, e d'ella, e bem
do reino, que o atalhasse,
[57]
e escrevesse áquelles que cessassem do que lhes
tinha escripto.
E como quer que ella por sua virtuoza tenção lhe
pareceu assi bem e prometesse ao conde de o assi fazer, não
se achou porém quem depois o fizesse; antes se soube que
logo veiu a ella Pedro Annes Lobato certificar-lhe que os percebimentos
e alvoroços d'alguns creciam cada vez mais por seu respeito,
e que a fama era que ella os ordenava assi para morte d'alguns
principaes por sua vingança, o que como quer que elle sabia
o contrairo e o desdissesse, que o não criam como suspeito a
suas cousas; e assi tambem lhe pediu que com assessego o
remedeasse.
E a Rainha crendo que aproveitaria sua desculpa, escreveu logo sobre
aquelle caso mui graciosamente á cidade, certificando-lhe o
contrairo do que tinham concebido; e encommendando-lhes sua paz e
assessego com grande instancia, e com sua crença a Pedro
Annes, o qual com quanto em camara dissesse além da carta da
Rainha muitas razões e causas para desfazerem suas
maginações e cessarem de seus
alevantamentos, não aproveitou nada: e com tudo responderam
á Rainha «que a causa dos receios e
alvoroços que tinham, os seus principalmente os faziam,
affirmando e divulgando cousas para assi ser; que os mandasse castigar,
e tudo cessaria».
E como quer que a Rainha para satisfação d'elles
mandasse sobr'isso fazer exame e deligencias para ser asperamente
punido quem taes movimentos fizesse: finalmente não se achou
certo autor, nem cousa a que em especial fosse razão dar-se
fé nem autoridade,
e com tudo a furia do povo não amansava.
[58]
CAPITULO XXVIII
Como
o Infante D. Pedro e o Infante D. João
sobre estas cousas se tornáram a vêr, e o que
acordáram
O Infante D. João a este tempo era doente em Alcochete; e
enviou ao Infante D. Pedro que fosse, como foi, ve-lo, e sendo ambos
juntos, o Infante D. João lhe disse:
«Senhor irmão, por não estar em
disposição de poder ir onde estaveis, vos enviei
pedir que chegasseis aqui; assi porque folgo muito de vos
vêr, como principalmente
por saber parte de vós, e de vossos feitos com a Senhora
Rainha, os quaes não devem estar bem nem como á
vossa honra cumpre, segundo a soltura e atrevimento que todolos
fidalgos tem de fallar contra vós, tirando os de minha casa,
e para se isto remedear convem que façaes o que
não fizestes, que
é nomearde-vos logo por Regedor do reino in solido. E para
sosterdes vossa empresa tendes em vossa ajuda mui certos a mim e ao
conde d'Ourem que aqui está comigo; e assi a cidade de
Lisboa que vo-lo requere; e comvosco serão outros muitos que
nos ajudarão n'esta contenda; e então venham os
do juramento armados contra vós; e os Infantes
d'Aragão entrem a favorecer o partido de sua
irmã».
O Infante D. Pedro lhe disse:
«Leixando o mais que me dizeis, a esta derradeira
condição por mais sustancial vos responderei
primeiro; e digo que já vos disse outras vezes,
quão pouco contente sou da Rainha e de seus máos
conselheiros, e da dureza de sua condição, com
que nunca quiz perder esta seita contra mim; e Deus sabe que
cá lhe
[59]
não fui nunca nem sou em culpa para assi ser; antes lhe tive
sempre merecimento, por desejar de a servir como era razão:
e o galardão que d'ella houve foi
sempre odio e má vontade para mim e minhas cousas; e mais
agora, onde na esperança de suas honras e mercês
já os fidalgos como dizeis me
não olham senão por desprezo, crendo que o que
mais fizer contra mim maior parte haverá d'ellas. E por isto
e principalmente por minha segurança, certo prazer-me-ha
muito ter corregimento; mas porque a esta sazão e tempo,
segundo as divisões estão, eu o
não poderia fazer sem esperança de muito damno e
grande perda d'este reino, o que eu não queria, a mim parece
como vos já disse, leixarmos vir o tempo das
côrtes; e
se n'ellas se acordar que tenha o Regimento, então serei
contente de o tomar; e d'outra maneira não».
O Infante D. João disse:
«Certo bem me parece vossa conclusão; mas tenho
receio a estes de Lisboa com esta vossa dilação
perderem por ventura este fervor que tem para vossa ajuda, e serem
depois máos de tomar a nosso
preposito».
«Não cureis (respondeu o Infante D. Pedro)
cá se Deus vir que é seu serviço, Elle
por sua
bondade ordenará como se faça; e por isso sede
certo, que
por nenhuma cousa não emprenderei encargo que seja sem
côrtes; mas que sei que a Rainha escreve aos fidalgos que
são de sua parte, que venham a ellas poderosos, eu como
defensor o quero fazer saber ás cidades e villas do reino; e
que sejam prestes para qualquer movimento e novidade que se
seguir.»
E com esta tenção que seu irmão
aprovou, se despediu d'elle.
[60]
CAPITULO XXIX
Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino sobre os
alvoroços que se ordenavam
E Tanto que o Infante D. Pedro foi em Camarate, que era no
começo de Setembro do anno de mil e quatrocentos e XXXIX,
logo escreveu a todolos logares do reino notificando-lhe os movimentos
que se esperavam, de que era certificado, e as causas de quem
procediam, encommendando-lhe que logo se fizessem e estivessem prestes
para quando vissem seu recado; por quanto de semelhantes
uniões não se podia seguir, salvo
desserviço de Deus e
d'El-Rei e grande mal e damno de seus reinos e naturaes, e assi foram
avisados do
Infante os
messageiros que levaram as cartas, que todas em todo o reino a um dia
certo e logo assignado por elle, fossem dadas. E tanto que assi
escreveu, se partiu para Coimbra e suas terras.
A carta para Lisboa foi dada na Camara da Feitura a XV dias, sendo
já o Infante partido, e depois de vista foi posta nas portas
principaes da Sé, onde esteve alguns dias sem haver logar de
se poder acabar de lêr, e de noite com candeias a vinham
trelladar; e sobre as cousas d'ella as praticas e alvoroços
eram tamanhos, que em publico e em secreto não se fallava em
outra cousa.
Os da cidade depois de haverem seu conselho acordaram responder ao
Infante, em que remercearam sua notificação, e se
offereceram para todalas cousas
que fossem de sua honra e serviço, e elle dispozesse e
mandasse.
As outras cidades e villas do reino responderam
[61]
todas conforme a isto em
sustancia; sómente a cidade do Porto emadeo mais, que queria
que o Infante D. Pedro só, sem outra ajuda nem companhia
fosse Regedor: e com estas cartas houve no reino grande
alvoroço, com alguma indinação
contra a Rainha, por n'ellas se tocar entrada de gentes extrangeiras
n'este reino em seu favor e ajuda.
Mas se o Infante isto escreveu por ter d'isso a esse tempo alguma
certidão, ou o fez de industria por
alvoroçar as gentes contra a Rainha e contra os que seguiam
sua tenção, isto fique a Deus e em sua
conciencia, sómente é de crêr que o
Infante o
não faria sem causa; especialmente porque a esse tempo os
Infantes d'Aragão irmãos das Rainhas de Portugal
e de
Castela prosperavam n'aquelle reino; e era de presumir que nos aggravos
de que se ella queixava, se socorreria a elles, que a deviam e podiam
bem ajudar, e elles lh'o não denegariam por seu sangue e
grandeza.
CAPITULO XXX
Como se o Infante D. Pedro despediu da Rainha, e da falla que
como descontente lhe fez
Ante que o Infante D.
Pedro partisse de Camarate para suas
terras, foi a Sacavem fallar a El-Rei; e depois de se despedir d'elle e
lhe beijar a mão entrou onde a Rainha estava, e com a
presença carregada lhe disse em
pé e de praça algumas palavras, cuja sustancia
foi recontar-lhe serviços que lhe tinha feitos com desejo de
fazer outros maiores, de que finalmente até
então
não houvera d'ella outro galardão, salvo odio e
má vontade
com
[62]
que sempre
procurára em todo sua deshonra e abatimento; e assi lhe
tocou nas differenças em que andavam, e nos percebimentos
que mandára fazer, e em outras cousas d'esta calidade, com
razões assaz graves e honestas, e em fim declarou
«que até li a Rainha
o tivera como ella queria, e que d'hi em deante o tomaria como o
achasse». E n'esta conclusão que pareceu de
rompimento, se despediu d'ella sem lhe beijar a mão, nem
cometer de o fazer. O que a Rainha ouviu com grande
segurança e assessego, e não lhe
respondeu cousa alguma; porque o Infante com sua trigosa partida
não deu a isso lugar, e porém sentiu
muito partir-se assi d'ella o Infante com mostrança de
tamanho desacatamento; o que por assi passar de praça foi
logo divulgado, que a uma parte e a outra acrecentou mais materia
d'alvoroços e uniões.
CAPITULO XXXI
Como
a Rainha com El-Rei e seus filhos se foi a
Alanquer, e do que se seguiu em Lisboa
A Rainha se partiu com El-Rei e seus filhos e sua casa para Alanquer,
muito revosa dos movimentos e alvoroços de Lisboa, e pouco
segura em Sacavem onde estava, por ser aldêa fraca e
tão perto da cidade, como quer que d'alguns seus fosse
aconselhada que o não fizesse, antes que se fosse dentro
á cidade; porque era de crêr que sua
presença daria ao povo menos ousadia para contra ella
seguirem e acabarem o que tinham começado; e que sua
ausencia com mostrança de temor causaria o contrairo.
Os officiaes de Lisboa vendo esta mudança da Rainha
[63]
fizeram logo seu
ajuntamento, onde Vicente Egas, homem cidadão velho,
entendido e de grave
representação fez uma falla com largo
recontamento, cuja sustancia foi avisar a cidade dos males e perigos
que por as mudanças presentes se lhe aparelhavam; e como
para terem por cabeça alguma pessoa que por ella os
resistisse, lhe era necessario enlegerem e tomarem alferes, apontando
logo o capitão Alvaro Vaz d'Almada, que da cidade
fôra o derradeiro alferes, como por outros muitos e mui dinos
merecimentos e louvores que d'elle com verdade recontou; no que todos
consentiram, e por dois cidadãos o enviaram logo chamar,por
quanto era fóra da cidade; e em chegando á
ribeira, sendo já sabido a
determinação sobre que vinha, se ajuntou com elle
a mór parte da cidade, e assi acompanhado com grande honra
foi levado á Camara, onde por os vereadores com certas
cerimonias e largas palavras de grande seu louvor e muita
confiança, lhe foi entregue a bandeira da cidade com suas
condições; e elle a recebeu com palavras
cortezes e discretas, e de grande esforço; porque era
cavalleiro que n'este reino e fóra d'elle por esperiencias
mostrou que isto e muito mais de louvar havia n'elle, cá em
França por sua ardideza e bondades
foi feito conde d'Abranxes, e em Inglaterra por sua valentia foi
recebido por companheiro da Ordem da Garrotea, de que principes
christãos e pessoas de grande merecimento são
confrades; e em Portugal por todas estas, e mais por sua linguagem e
fidalguia mereceu ser como foi capitão mór do
mar.
[64]
CAPITULO XXXII
Accordo que o povo de Lisboa fez ácerca do
Regimento
Estando o Regimento
do reino n'este balanço, mais com
mostranças de guerra que de paz, e com signaes mais de
perigo que de segurança, os officiaes macanicos de Lisboa
com outra gente popular se ajuntaram em S. Domingos da Cidade, onde
fizeram escrever e assignaram um acordo, em que por algumas
razões que apontaram, e em
especial por o perigo e não bom Regimento do reino,
declaravam e se affirmavam, «que o Infante D. Pedro fosse seu
Regedor e defensor sómente; e que assi promettiam de o
requerer nas côrtes; e que o contrairo não
consentiriam ou morreriam sobr'isso, se o caso assi
requeresse.»
A qual cousa sendo logo sabida, como quer que a alguns parecesse
determinação de pouco peso e
auctoridade, o contrairo pareceu a Pedro Annes Lobato, que por ser
muito servidor da Rainha, se foi logo a Alanquer onde estava, e lhe
notificou com tristeza aquelle acordo, havendo-o por principio mui
contrairo a seu serviço, affirmando que não podia
ser sem
favor e consentimento dos principaes, e com aquelle acatamento que
devia a reprendeu muito da segurança que n'estes feitos
sempre tivera, e o pouco cuidado de os remediar nos começos
ante d'alguma execução, especialmente estando
tão
ácerca e tão avisada cada dia dos movimentos que
se faziam.
E perguntado pela Rainha e pelos do conselho que hi eram, que se faria
ou que remedio se daria
[65]
para o povo cessar de seu alvoroço, Pedro Annes respondeu
«que já não sabia, salvo
pedi-lo a Deus.»
E finalmente depois de sobre isso praticarem, acordaram que a Rainha
escrevesse, como logo escreveu á cidade, e além
das razões santas e
virtuosas na sua carta logo declaradas, por que deveram ser bem seguros
dos receios com que se alteravam, Pedro Annes que era o messegeiro,
lhes disse outras muitas mais, a ellas conformes, em que não
fallecia siso e prudencia; mas d'isto em fim se fez pouca estima, e
responderam a tudo como já endurecidos em sua
maginação e porfia.
CAPITULO XXXIII
Como
a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo D. Pedro
pelos cubelos da alcaçova que
tomou
Não
é de duvidar que a Rainha para toda paz, bem,
e assessego do reino tivesse sempre mui virtuoso desejo; mas muitas
vezes por ventura, por estar assi determinado na providencia divina, os
seus sem vontade d'ella damnavam e faziam duvidoso
seu proposito; porque estando a cidade de Lisboa em
alguma
consiração de repouso por o que a Rainha lhe
tinha escripto e enviado dizer, o Arcebispo D. Pedro
seu primo, que em todo seguiu sua
tenção, pousava nos
seus paços
d'Alcaçova pegados com Sancta Cruz, e porque entre elles e o
castello vae um lanço de muro em que está a
porta, que se chama de Martim Moniz com alguns cubellos altos, mandou
cobrir e abrir para elles uma porta porque se corriam por cima do muro,
ficando a porta da cidade
[66]
que sahia para fóra sujeita a sua
disposição, e da outra parte dos paços
contra o bairro dos escolares, tinha dias havia feita uma torre mui
alta, forte e fremosa em que se acolhia; e sendo as cousas da Rainha
havidas na opinião do povo por tão
suspeitas, o Arcebispo além da obra e refazimento que nos
cubellos mandara fazer, dizia soltamente palavras ques pareciam
ameaças com esforço alheio. E deu aos
seus armas além das custumadas, e dizia-lhes de
praça
taes razões, que os mettia em alvoroço; e elles
fallando ousadamente pela cidade, mettiam a outros muitos em outro
maior: e com isto não apagavam, mas acendiam mais a suspeita
e receios que o povo tinha: a qual cousa sentida pelos officiaes,
fizeram sobre isso
vereação e acordo; e por dois deputados para isso
mandaram requerer em sustancia ao Arcebispo que logo despachasse e
leixasse o muro e cubellos, que eram proprios da cidade, de que a tinha
forçada. O qual anojando-se de tal recado, como era de
aspera
condição, e não muito sobjecto a
deliberado conselho, respondeu aos messegeiros de maneira que foram
d'elle mui descontentes; sobre o qual se tornaram outra vez a juntar em
camara, e se alguns com difficuldade o não temperaram, o
primeiro acordo era de mór
rigor e damno; mas em fim acordaram que os cubellos fossem logo
despachados, e fechada a porta que o Arcebispo mandára
abrir; do que elle mui anojado, sendo constrangido para o cumprir, se
sahiu logo da cidade, e depois para Castella, como ao diante se
dirá.
[67]
CAPITULO XXXIV
Vinda do Infante D. João á
cidade
A cidade de Lisboa, pela confusão e receios em que estava,
acordou de enviar o
capitão Alvaro Vaz ao Infante D. João,
notificar-lhe os feitos como estavam e pedir-lhe por mercê,
que para ser sua cabeceira quizesse estar na cidade, porque sua
presença lhes era mui necessaria, até que nos
feitos se tomasse alguma boa conclusão.
Ao Infante prouve muito de o fazer; e se veiu logo a ella e pousou nas
casas da Moeda, onde entendida a sustancia do caso, conhecendo que a
maior parte da inclinação e vontade do povo e
cidadãos, era o Infante D. Pedro reger, louvou muito seu
proposito, e os esforçou n'elle.
CAPITULO XXXV
Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino sobre o
assessego d'elle
A Rainha como foi em Alanquer, logo escreveu a Lisboa, e alli
geralmente a todas as cidades, villas e povos do reino, notificando-lhe
alguns beneficios e boas obras que já lhes procurara para os
obrigar; e assim as causas dos aggravos e sem razões que
ácerca do Regimento recebia, para os mover a
piedade, descarregando-os com razõas boas, honestas e de
razão, dos temores que d'ella tinham ácerca
do
[68]
meter das gentes
estrangeiras n'estes reinos, e segurando-os da vingança que
lhes faziam crêr que ella d'alguns cruamenta queria tomar;
encommendando-lhes e requerendo finalmente, que para as
côrtes que se chegavam, cessassem de requerer novidades
acerca do Regimento, e quizessem approvar o que El-Rei D. Duarte seu
marido leixara, ou ao menos o que nas côrtes de Torres Novas
fôra acordado, com alguns protestos fundados em sua boa e
virtuosa tenção, mandando que por seu descargo se
d'ello se seguissem alguns males e inconvenientes, que suas cartas se
registassem nos livros das camaras, e puzessem nos cartorios das
religiões: o que se não fez assim;
porque na maior parte do reino era o alvoroço tamanho contra
a Rainha, que álem de não quererem
vêr suas cartas, ainda tratavam os messegeiros d'ellas
asperamente, e não como deviam. E porque Gomes Borges que
era escrivão da chancelaria d'El-Rei, poz nas portas da
Sé a carta que a Rainha enviou a Lisboa, foram os povos
sobre elle, e tão indinados, que com difficuldade escapou da
morte.
CAPITULO XXXVI
Declaração que Lisboa fez de o
Infante D. Pedro só reger o Reino
Estando assi as cousas n'esta confusão, o doutor Diogo
Affonso Mangancha em que havia letras e ardideza com pouco repouso, e
um Lopo Fernandes, tanoeiro de Lisboa, homem velho afazendado, e de que
o povo fazia grande cabeceira, estes ou por serem afeiçoados
á parte do Infante D. Pedro, ou
por
[69]
lhes parecer
razão elle só reger e não
a Rainha, ordenaram e praticaram entre si que o doutor fizesse na
camara uma publica falla sobre isso, affirmando que todavia era bom,
antes das côrtes se fosse possivel, assi se declarar e
requerer; e que ao menos no cabo da falla conheceriam nos rostos dos
mais suas vontades para seu aviso: e era opinião que d'esto
não desprazia ao Infante D. João, pelo favor que
dava e gasalhado que fazia a este tanoeiro.
E junta a mór parte da cidade na camara, sem geralmente se
saber a que fim, o doutor Diogo Affonso propoz sua falla, em que logo
com muitas e vivas rasões tocou os erros que havia em o
Regimento do reino ser repartido, como fôra em Torres Novas;
e assi com determinações do Direito Canonico e
Civil, e com auctoridades do Testamento Novo e Velho, e com exemplos
d'historias antigas reprovou Regimento publico ser dado a mulher,
porque excludio a Rainha; e com outras de não menos
rasão e auctoridade
provou que devia ser dado a homem barão, em que houvesse as
virtudes e calidades que todas achou com verdade no Infante D. Pedro,
para o qual concludio que devia ser requerido e forçado para
isso, quando por sua vontade o não quizesse acceitar.
Acabando o doutor sua falla, foi-lhe por um vereador dadas
graças por ella em nome de todos, os quaes encommendaram
logo ao capitão que desse sobre o caso sua voz, que a deu
com cautellas e fundamentos de homem prudente e mui avisado, em que
concludiu mais além, que era grande perigo e
aleijão, El-Rei ser mais criado em poder de mulheres; e
não menos erro reger a Rainha, não sem muitos
merecimentos e grandes louvores d'ella, que tambem apontou
para ser sempre servida e acatada; e que o Infante D. Pedro devia
reger.
[70]
Era alli Martim Alho, cidadão honrado, e por ser muito
servidor da Rainha quizera dilatar esta conclusão para outro
ajuntamento e mais pessoas, parecendo-lhe que se apertava muito em seu
d'esserviço; mas Ruy Gomes da Grã, outro si
cidadão, e de boa e antiga linhagem, que era presente, com
palavras de grande auctoridade e rasão contradisse muito a
dilação n'este caso, e louvou a breve
conclusão; e depois de muitas praticas e largos
apontamentos, elle com os mais approvaram e pozeram em escripto este
accordo que se segue.
CAPITULO XXXVII
Fórma do acordo sobre o
Regimento
Em nome de Deus nosso
Remidor e Salvador Jesus Christo, e de sua
Santissima Madre a Virgem Maria nossa Senhora. Acordâmos em
uma voz e acordo, todolos fidalgos, cidadãos, e homens bons
da cidade de Lisboa, consirando o trabalho e grande
destruição que em todo o reino ha por
causa de ter diversos Regedores, entre os quaes sempre era
divisão, em grande damno e perda de todo o reino, querendo a
cidade remediar a serviço de Deus e d'El-Rei nosso Senhor,
como aquella que sobre todas as cousas d'este mundo mui leal e
verdadeiramente o ama, todos em uma voz acordamos, e determinamos que
n'estas côrtes que ora prazendo a Deus serão
feitas, conhecendo nós a grande lealdade e muita prudencia
do muito alto e muito excellente Principe e Senhor o Infante D. Pedro,
e como é filho legitimo do muito poderoso e virtuoso Rei D.
João nosso Senhor,
[71]
cuja alma Deus haja, e o mais ancião sangue chegado
á mui alta e real corôa do muito
excellente e poderoso Principe El-Rei D. Affonso nosso Senhor, que elle
dito Senhor Infante D. Pedro seja Regedor livremente e in solido
n'estes reinos, e até que prazendo a Deus, El-Rei nosso
Senhor, que sobre todos mais lealmente amamos, seja em edade para os
por si poder reger e deffensar, ao qual tempo o dito Senhor Infante D.
Pedro seu leal sangue e vassalo leixará
livremente a possessão de seus reinos e senhorio; e lhe
entregará a ministração e Regimento
d'elles pacificamente, para El-Rei nosso Senhor os governar e reger,
como fizeram os mui virtuosos Reis d'onde elle descende; e vindo tal
caso, que o Senhor Infante D. Pedro não possa ter o
Regimento e governança dos ditos reinos, que por esta
fórma e maneira seja dada e a haja o mui leal Principe e
Senhor Infante D. Anrique seu irmão; e fallecendo elle, seja
por o semelhante dada ao Senhor Infante D. João; e por esta
guisa ao Senhor Infante D. Fernando, que Deus de terras de mouros traga
com bem e liberdade a estes reinos; e fallecendo todos ante que El-Rei
D. Affonso nosso
Senhor seja em
edade para
reger, que
então por esta fórma venha o dito Regimento ao
conde de Barcellos, e aos condes d'Ourem e d'Arrayollos seus filhos,
com todas as clausulas e condições suso
escriptas.
E assi acordamos e determinamos que a muito alta e muito excellente e
muito prezada a Rainha D. Lianor nossa Senhora seja sempre em sua vida
honrada e manteuda, acatada e servida em seu alto e real estado; e por
esta mui nobre e leal cidade de Lisboa e povo d'ella lhe seja sempre
feito tanto serviço, prazer, e mandado, assi como somos
teudos e obrigados por bons e leaes vassallos, e por ser madre d'El-Rei
nosso
[72]
Senhor, assi e pela
guisa que lh'o sempre fizemos em vida d'El-Rei D. Duarte, seu marido
nosso Senhor, cuja alma Deus haja; e muito mais podendo-se fazer.
Alguns houve alli e poucos, a que d'este acordo não prouve;
em especial a Martim Alho, que sobre algumas palavras que acerca d'esso
disse, não lhe conveiu mais esperar; e se foi com sua vida e
honra, a que o rumor do povo começava já de ser
contrairo.
CAPITULO XXXVIII
Notificação d'este accordo
ao Infante D. João, que o approvou
Feito e assignado
este accordo,
enviaram logo chamar Vasco Gil, confessor do Infante D.
João, ao qual deram o accordo e lhe encommendaram que o
mostrasse ao Infante, a cuja prudencia, correição
e prazer o sometiam.
E mui em breve tornou Vasco Gil com a resposta em que o Infante
approvava e louvava seu accordo, não como cousa feita por
homens, mas como inspirada n'elles por Deus. E que porém ao
outro dia quinta feira fossem ouvir missa com elle a Sancto Spiritu, e
que alli lhes responderia.
Ao qual dia juntos todos e ouvida a missa, que se disse muito solemne
com seus capellães e cantores, o Infante apartou os da
cidade sómente e alli resumiu o accordo que fizeram e lhe
enviaram mostrar. Onde com palavras de grande equidade lhes aguardeceu
a notificação d'elle. E com razões de
muita auctoridade o approvou, offerecendo-se a elles.
E pois aquella era a verdade, que pospostos os espantos,
[73]
ameaças e receios
que se logo apontaram, promettia de lh'a ajudar a manter e cumprir:
pelo qual a cidade assi favorecida em seu proposito fez no outro dia
ajuntar no refeitorio de S. Domingos todo o povo, aquelle que
pôde caber, onde em pulpito Pedro Anes Sarrabodes notificou
em alta voz o accordo passado e a maneira que se n'isso tivera,
requerendo a todos que dissessem o que d'elle lhes parecia. Onde logo
sem bem se acabar a pregunta um Diogo Pirez, alfayate, bradando
respondeu: «que accordo nem parecer ha de ser o nosso, salvo
assignarmos todos esse, e fazermos logo vir o Infante D. Pedro, e
comece de reger!»
Com aquella voz seguiram tantas vozes, que alguma se não
ouvia; e com os assignados dos que tinham assignado foram logo outros
tantos postos, que não cabiam em um grande quaderno; porque
assi trabalhava cada macanico official de poer alli seu nome como se na
postura d'elle acrecentasse sua honra e fazenda, e remedeasse de todo a
necessidade do reino.
CAPITULO XXXIX
Notificação do dito accordo
á Rainha, que o contrariou, e assi aos Infantes e ao reino
Concordado e
assignado este accordo, a cidade o notificou logo
á Rainha com fundamentos e causas justas e honestas, e com
palavras do mór acatamento seu, que no caso cabiam. A qual
lhes respondeu com uma notavel justificação,
desfazendo e anichilando particularmente todalas cousas do acordo,
denegando-lhe em todo a auctoridade para tal
[74]
poderem fazer, sem ajuntamento e
concordia dos tres Estados do Reino, encomendando-lhes a
revogação do accordo com algumas
protestações e cautellas
dos damnos, se sobr'isso viessem.
Não sómente a cidade de Lisboa notificou este
accordo á Rainha, mas logo aos Infantes D. Pedro e D.
Anrique, e condes; e assi ás cidades e villas do reino. E o
Infante D. Pedro lhes respondeu agardecendo-lhes com palavras mui
graciosas seu proposito, e
offerecendo-se
com outras de muito
peso e
discrição, aceitar o Regimento e seguir jurar e
manter as condições do acordo. No qual isso mesmo
as
cidades e villas do reino sustancialmente consentiram. E principalmente
a cidade do Porto por ter aquello mesmo dias havia determinado.
Mas o Infante D. Anrique na resposta que sobr'isso enviou,
não mostrou ser do accordo contente, não
por erro da sustancia d'elle, mas no modo que tiveram, por tomarem em
tal caso a autoridade e poder que aos tres Estados do Reino em
côrtes era sómente
reservado, conforme ao que a Rainha apontára, concludindo em
remeter seu acordo e tenção para as
côrtes que se logo esperavam, onde tudo bem visto e consirado
se faria o que fosse mais serviço de Deus e d'El-Rei, e bem
de seus reinos, amoestando-os finalmente para paz e assessego,
poendo-lhes os inconvenientes da divisão. E mais de si mesmo
justificando tudo com palavras e razões de
tanta autoridade, que bem pareciam dinas de tal Principe. E que
sobretudo iria a Coimbra fallar ao Infante D. Pedro, e ao conde de
Barcellos seus irmãos, e a conclusão que
tomassem lhes faria logo saber.
D'esta resposta do Infante D. Anrique não foram os da cidade
contentes; e muito menos o Infante D. João que n'ella era
presente, o qual tomou cargo de
[75]
responder, como respondeu por ella a
seu irmão, em que lhe afirmou o acordo se fazer e divulgar
com sua autoridade, justificando com vivas razões todolos
passos d'elle, tocando mui verdadeiramente para assi ser as
necessidades em que o reino estava e danos que recebia por a
multidão e divisão dos Regedores; e
quanto um era mais necessario e proveitoso, o qual não podia
nem devia ser, salvo o Infante D. Pedro seu irmão, por as
calidades que n'elle para isso havia, que logo apontou dinas d'outro
Regimento maior. Pedindo emfim, que com elle quizesse dizer:―
Confirmat
hoc Deus, quod operatus est in nobis.―
D'este acordo de Lisboa pesou muito ao conde de Barcellos; e comquanto
era assaz discreto e avisado, em recebendo a acta da cidade,
não pôde
dessimullar o desprazer e sentimento que por isso recebia. E
não era por singular affeição que
tivesse
á Rainha, nem por sentir que em ser o Infante D. Pedro
Regedor era perda ou damno do reino; mas sómente segundo
juizo commum e especiaes, que se depois seguiram, era com respeitos de
seu interesse particular; de que porventura lhe dava mais
esperança a brandura da Rainha governando, que o rigor e
justiça do Infante regendo.
CAPITULO XL
Partida do Arcebispo D. Pedro fóra do
reino
D. Pedro, Arcebispo de Lisboa, era na Alhandra anojado pela
privação dos cubellos da cidade, como
já disse; onde fallando com um Affonso Martins,
ourives, que da cidade sobre cousas de suas rendas fôra com
elle negociar, tocou
[76]
os
accordos e movimentos da cidade com palavras de doesto dos
cidadãos e povos d'ella; ameaçando-os
com cerco poderoso de gentes estrangeiras, e com outros muitos males e
deshonras, de que os em pessoa d'aquello logo certificava, e que
não tardariam muito, congeiturando de sua
confiança e favorecendo sua ameaça em alguns do
reino e em outros muitos de fóra d'elle, que eram os
infantes d'Aragão e sua
valía. A qual cousa o ourives respondeu bem e avisadamente,
esforçando se em lhe não parecer direito de sua
verdadeira vontade; porque d'elle não era de
crêr cousa que tanto contrariava a seu sangue e habito, e na
bemfeitoria e mercê que d'El-Rei D. João e de seus
reinos tinha recebido.
Com o sentimento e juizo que o ourives tomou da
tenção do Arcebispo, se tornou á
cidade, onde o logo fez saber na camara d'ella. E por isso, e por se
provar em uma inquirição que se contra o
Arcebispo
tirou, que brasfemara do Senhor que o fizera, a cidade com sua cleresia
appellaram d'elle e o suspenderam de suas rendas e dinidade; e se
enviaram queixar d'elle á Sé Apostolica por um
João
Lourenço Farinha, cidadão e pessoa de saber e
auctoridade, com supplicatorias em nome d'El-Rei e dos Infantes. Pelo
qual o Arcebispo se quizera colher a Obidos, e os da villa com sua
suspeita o não quizeram n'ella receber.
E elle vendo que os feitos se inclinavam já contrairos de
seu proposito e desejo, se partiu para Castella, d'onde depois foi
retornado como se dirá.
A Rainha sendo já certificada da
determinação em que o povo estava de lhe tirar o
Regimento e da-lo ao Infante, sendo assi aconselhada por aquelles que a
serviam, escreveu aos fidalgos que sostinham sua parte que
não viessem ás côrtes, e se
escusassem como melhor vissem; e enviassem a ella
procurações abastantes
[77]
com suas
protestações de não
outorgarem nem obedecerem em cousa que se n'ellas accordasse. E elles
assi o fizeram, os quaes eram o Arcebispo de Braga, o Priol do Crato, o
marechal D. Duarte, senhor de Bragança, D. Duarte de
Menezes, Fernão Coutinho, Gonçallo Pereira de
Riba-Vizella, Alvaro Pirez de Tavora, Diogo Soarez d'Albergaria,
Fernão Soarez, Ruy Vaz Pereira, Luiz Alvares de Sousa, Pero
Gomes d'Abreu, Lyonel de Lima, Gomes Freire, Lopo Vaz de Castel-Branco,
Martim Affonso de Mello, Diogo Lopes Lobo, Fernão de
Sá, João de
Gouvêa, D. Sancho de Noronha, e alguns filhos d'estes, e
outras algumas pessoas d'outra condição.
Mas como quer que estes não viessem ás
côrtes, posto que fossem tão grandes pessoas,
ellas não
se leixaram de fazer, nem elles recusaram obedecer inteiramente
ás determinações d'ellas. Que por
aquelle tempo, ainda que os fidalgos muito valessem, não era
seu valor para contrariar a vontade dos filhos e netos d'El-Rei D.
João, com que o reino e todalas cousas d'elle, por amor e
razão logo pendiam.
CAPITULO XLI
Como
o castello de Lisboa foi pela cidade tomado e dado ao
Infante D. João, e o que se n'isso seguiu
D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando seu filho sostinham a
parte da Rainha; e porque D. Affonso era alcaide mór de
Lisboa, tanto que sentiram as voltas da cidade contrairas a sua
tenção se meteram no castello, e com elles alguns
fidalgos seus amigos e outra gente de sua
criação:
[78]
e
começaram logo de poer n'elle
grandes avisos de guardas de dia, e vellas e roldas publicas de noite.
E os da cidade vendo tal novidade, e sendo certificados de muitas
ameaças e palavras deshonestas que as vellas contra elles
diziam, como sentidos d'isso acordaram de ir combater o castello. Mas o
Infante D. João por evitar escandalos e damnos que se podiam
d'isso seguir, por então os impediu; e tomou o cargo de
assessegar se podesse esta alteração, por meio
de D. Maria de Vasconcellos, mulher de D. Affonso, a qual por
consentimento, e com seguridade do povo lhe veiu fallar ás
casas da Moeda. Onde o Infante com palavras mui honestas e virtuosas
lhe apontou, que por assessego de tantos alvoroços e
uniões,
quantos na cidade via contra seu marido e filho, fizesse com elles que
lhe entregassem o castello, ou consentissem por sua
segurança, que o Infante pousasse dentro, e elles tivessem
suas forças e menagem.
D. Maria com este recado se veiu ao castello, e depois de sobre tudo
haverem suas praticas e conselhos, ella tornou ao Infante com resposta
e
determinação de seu regimento. A qual brevemente
foi elles não entregarem o castello, nem receberem outrem
n'elle, nem se sahirem d'elle.
Verdade é que o pae logo consentira em alguns dos meios
apontados; mas o filho por ser mancebo, em que o sangue e pontos de
honra ferviam, o houve por abatimento e o estorvou, especialmente
porque havia o partido da Rainha que seguiam, por mais
esforçado que o do Infante D. Pedro que contrariavam; e
juntamente com isto D. Maria disse ao Infante D. João:
«Senhor, se vossa mercê tanto desejo tem d'haver
este castello, não sei porque o não tem d'haver
tambem quantos outros ha no reino; pois está em vossa
[79]
mão, e o podeis
fazer, e para certidão d'isto a
Rainha minha Senhora vos envia por mim dizer, que ella é
tão magoada das sem razões que o Infante D. Pedro
contra ella tem feitas, e cada dia ordena, que antes se despoeria a
todolos trabalhos e perigos do mundo, que consentir ser elle Regedor
d'estes reinos. E que para verdes que o não faz por ella
desejar para si o regimento, é mui contente que o hajaes
vós. E
para isso renunciará o direito que n'elle tem; pois sabeis
que é todo o que de razão e justiça se
requere. E mais lhe praz que El-Rei nosso Senhor seu filho case com D.
Isabel vossa filha: e que d'aqui em diante vos terá em lugar
de padre, para por este respeito e assi por ser já mulher
d'El-Rei vosso irmão, que vos
tanto amou, olhardes por ella e por suas cousas».
O Infante sorrindo-se das derradeiras palavras de D. Maria lhe disse:
«D. Maria, porque vos responda segundo logo
começastes, a mim pesa de vosso marido e filho
não consentirem em alguma das cousas que lhe por
vós enviei apontar; Deus sabe que eu o fazia por seu bem; se
lhes d'isso sobrevier algum mal pesar-me-ha; mas eu sem cargo. E quanto
das outras cousas que da parte da Senhora Rainha me dissestes, dizei a
sua Senhoria que nunca Deus queira nem quererá que entre os
filhos d'El-Rei D. João, que nas mocidades em tanto amor e
concordia se criaram, seja agora semeada tal cizania, porque se desamem
e desconcertem; eu haveria temor de Deus e vergonha do mundo,
não digo acceitar, mas sómente lembrar-me
d'acceitar o Regimento do reino, em que tivesse dois irmãos
mais velhos, e taes para isso, como são o Infante D. Pedro,
e o Infante
D. Anrique. E quanto
ao casamento
d'El-Rei meu Senhor com minha filha não sendo o caso como
é, certo seria a maior honra e o mór
[80]
acrecentamento que eu poderia desejar.
De uma cousa sede bem certa, que com melhor vontade e menos sentimento
meu soffreria ve-la no mundo em uma publica
dissolução, que Deus não queira, que
casa-la por tal maneira, contra a honra e vontade do Infante meu
irmão, que me tem e eu
lhe
tenho mui verdadeiro amor. Cá não
sómente erraria a elle,
por ter já n'isso entendido e ser cousa mui razoada, mas
ainda desobedeceria á alma e mandado d'El-Rei meu Senhor e
irmão que Deus haja. Cuja vontade, assi na vida como na
morte, sabeis que foi este casamento d'El-Rei nosso Senhor seu filho,
com a filha do Infante meu irmão se fazer em toda maneira. E
por isso esta é a
razão que se faça, e não se deve
contrariar. Mas
vós dizei á Senhora Rainha, que sem isto que me
por
vós manda cometer, me tem sua mercê por fiel e
certo seu servidor, e lhe peço por mercê que
queira
viver como é razão, e não curar de
cousas
que a ella nem ao reino não cumprem. E vós por
seu bem e
assessego, e com vossa discrição assi lh'o deveis
d'aconselhar».
E com isto a despediu.
Os da cidade vendo a contumacia e ousadia de D. Affonso, receosos de
poder ser com algum fundamento que a elles podesse ao diante trazer
damno e perigo, por accordo geral que sobr'isso houveram, foram cercar
o castello e o vallaram d'arredor, e lhe pozeram estancias e guardas
para que de noite nem de dia não entrasse nem sahisse d'elle
alguma pessoa, nem os de dentro
podessem
receber soccorro, aviso, nem
mantimentos.
E porque D. Affonso e seu filho com sua gente entráram no
castello de subito, sem percebimento de mantimentos, vendo se apertados
da necessidade e perigo, e frouxos de esperança de remedio,
leixou o castello
[81]
ao
Infante D. João com algumas seguranças
que requereu, e se foi para a Rainha.
CAPITULO XLII
Mandou
a Rainha velar e afortalezar Alanquer, onde tinha
El-Rei
A Rainha estava em Alanquer, onde tinha El-Rei e seus filhos, como
já disse. E por lhe ser dito que depois do accordo de
Lisboa, o Infante D. Pedro se percebia em Coimbra de gentes e armas, e
que a fama e rumor era, ainda que falso fosse, para a vir cercar e a
levar d'alli e El-Rei ás côrtes
de Lisboa; tendo sobr'isso conselho, e não tomando o que
mais devia, mandou velar, afortalezar e repairar a villa de muros,
gentes, armas e mantimentos, e se poz em som de defeza, se tal caso
sobreviesse. Com que ácerca do povo não
aproveitou, mas damnou muito suas cousas; porque acrecentou e confirmou
a muitos a suspeita que se d'ella havia, em esperar para seu socorro e
ajuda gentes de fóra do reino.
CAPITULO XLIII
Dissensão
que a Rainha procurou d'haver
entre o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique
Sentindo a Rainha que
o Infante D. Anrique, com quanto se
mostrára sempre a seu serviço, seguia acerca do
Regimento a parte do Infante D. Pedro. Por causar entre elles suspeita
e differença em sua conformidade. Ou por ventura e mais
[82]
certo, por lh'o fazerem assi
crêr. Escreveu secretamente de sua mão ao Infante
D. Anrique que se não fiasse do Infante D. Pedro. Porque
elle para haver com menos impedimento o Regimento que procurava, e mais
soltamente usar d'elle, como era sua vontade, sabendo que
não havia no reino de quem esperasse
contradição, salvo d'elle, soubesse certo que o
queria prender, de que sua vida não estaria muito segura. E
ante que a carta d'este aviso fosse dada ao Infante D. Anrique, que
estava em Soure, o Infante D. Pedro, que era em
Montemór-o-Velho, por meios secretos que trazia, foi d'ella
primeiro sabedor. E para preservar a vontade do irmão, que
com tamanha falsidade contra elle em alguma maneira se não
damnasse, partiu a gram pressa e mui aforrado, e lhe foi fallar,
não lhe revelando cousa alguma da carta que lhe havia de
vir; mas acceitando geralmente seu coração, com a
firmeza de seu amor e amizade, para os movimentos e desaccordos que se
lhe aparelhavam. Pedindo-lhe, que se contra elle viessem a suas orelhas
algumas cousas, que a isto contrariassem, que as não
recebesse em seu juizo, e d'elle cresse que o amava como a si mesmo.
O Infante D. Anrique não se saltou muito com aquella vinda;
porque lhe parecia que os tempos e as mudanças d'elles o
causavam e requeriam. E porém com palavras que em siso e
prudencia, e confiança não desacordaram das do
Infante seu irmão, lhe
respondeu e o despediu.
A dois dias que o Infante D. Pedro se partiu, chegou Martim de Tavora
ao Infante D. Anrique com a carta da Rainha que disse. E como a viu,
maravilhado da sustancia d'ella, se foi logo a Coimbra só,
onde já era o Infante D. Pedro. Ao qual mostrando-lhe a
carta disse:
«Vêde senhor irmão o que me escreve a
Rainha;
[83]
mas porque vejaes
bem o temor que tenho de vós, venho assi percebido e seguro
a vossa casa.»
E o Infante D. Pedro rindo-se, e com mostrança de grande
amor, o abraçou e lhe disse:
«Senhor irmão, não me espanto taes
tempos e taes vontades criarem fruita tão nova. E porque
sabia
já que vos haviam de convidar com ella, sem vo-lo dizer vos
fui falar. Cá não eram a outro fim as
cautellas da segurança que vos de mim fui dar; porque ainda
que sobre tanta razão e firmeza pareciam
então escusadas. Sabei que o receio d'este damnamento as
não escusou. E porém a prisão que
vós aqui recebereis será a honra e amor que de mi
sempre recebestes, e me vós mui bem mereceis.
CAPITULO XLIV
Embaixada dos Infantes á
Rainha
Alli estiveram os
Infantes alguns dias, e com elles o conde de
Barcellos seu irmão. E para com mais repouso e menos
torvação proverem as cousas do reino, se foram ao
logar da Pereira, onde accordaram que o conde de Barcellos fosse
á Rainha requerer-lhe com razões assás
justas e
necessarias, que fosse ás côrtes de Lisboa que
haviam de ser o derradeiro dia de Novembro. E que se para sua ida e dos
seus quizesse alguma segurança, ainda que não
fosse necessaria, lh'a dariam na fórma que
apontasse.
Partiu o conde de Barcellos para Alanquer, e por seu aviso, no dia que
chegou foi ahi com elle seu filho o conde d'Arrayollos, que estando
comendo se
[84]
ajuntaram em sua
casa por modo de visitação as
pessoas principaes que hi eram. O conde lhes estranhou logo com
palavras honestas e razões mui
efficazes,
os alvoroços que na villa faziam de vellas e
roldas, e
tomamento d'armas aos vassallos, que pareciam começos de
guerra, e como cousa feita por errado conselho a fez amansar, e tornar
todo a estado pacifico. Foi logo o conde fallar á Rainha, e
lhe disse:
«Senhora, os Senhores Infantes meus irmãos e eu,
acordamos de eu vir a vós para sustancialmente saberdes que
para concordia e bom assento dos grandes movimentos e negocios, que ora
são n'estes reinos, assi do Regimento d'elles, como da cisma
dos Papas e livramento do Infante D. Fernando, é mui
necessario fazer-se côrtes geraes ante do saimento,
ás quaes é bem que El-Rei nosso Senhor e
vós vades. E elles e eu assi vo-lo pedimos que o queiraes
fazer.
«A mim prazera, respondeu a Rainha ir ás
côrtes como requereis, se ante d'ellas as cidades e villas do
reino revogarem a enleição do Regimento que tem
feita ao Infante D. Pedro, e elle a renunciar. E mais por quanto alguns
fidalgos e outras pessoas por juramento são obrigados, assi
a mim como a elle, de sosterem a parte que seguirmos, é bem
que tudo isto se revogue, para uns e outros poderem livremente dizer e
conselhar o que lhes parecer serviço de Deus e d'El-Eei meu
filho Senhor, e bem de seus reinos. E se isto primeiro assi se
não faz, eu por alguma maneira
não irei ás côrtes.»
Com esta resposta assignada pela Rainha se partiu o conde para Coimbra,
onde achou sómente o Infante D. Pedro. O qual depois de a
vêr, disse:
«A inclinação que os povos sem mim e
meu requerimento acordaram, elles pois tem o poder se o assi
[85]
houverem por bem a revoguem. E para
isso é mais razão e mór necessidade
que a Rainha
vá ás côrtes, onde por ella e por
aquelles que seguem sua vontade se poderá acerca d'isso
requerer o que lhes parecer direito e justiça, e eu o
não contradirei.
Cá em caso que quizesse, hi haverá taes pessoas
para sostimento de tamanha justiça e honestidade, que minha
resistencia aproveitaria pouco. E quanto ao juramento de que aponta que
releve os que seguem minha parte, seja certa que com verdade nunca se
achará um só,
que para tal obrigação me seja obrigado, e se
alguns o são, não é por semelhante
força, nem contra suas vontades, mas sómente por
criação ou
bemfeitoria que de mim tem recebido.»
O conde de Barcellos se foi logo a Guimarães, onde fez
ajuntar D. Sancho, e o Arcebispo de Braga, e Vasco Fernandes, e Martim
Vaz da Cunha, e Pero Gomez d'Abreu, e Lionel de Lima, e Alvaro Pirez de
Tavora, e Luiz Alvarez de Souza, que segundo geral opinião
seguiam todos a parte da Rainha, e com elles concertou que escusassem
sua ida ás côrtes, posto
que elle fosse, e que em qualquer forma que a qualquer parte ficasse o
Regimento, sempre seria com segurança de suas honras, e
esperança de mais seu acrecentamento.
CAPITULO XLV
Recado da Rainha ao Infante D. Pedro quando de Coimbra vinha
para Lisboa ás
côrtes
O Infante D. Pedro partiu de Coimbra para Lisboa, e com elle
álem dos de sua casa, João Gomez da Silva, e D.
Fernando de Menezes,
[86]
e
Alvaro Gonçalves de Tayde, e D. Fadrique de Castro, e
Fernão Coutinho, irmão do marechal, e
Gonçalo Vaz Coutinho, meirinho mór, e Pero de
Lemos, e João de Tayde, senhor de Pena Cova, e a gente do
Bispo de Coimbra, que faziam numero de mil e oitocentos homens de
cavallo, e dois mil e seiscentos de pé, da qual cousa a
Rainha foi avisada, e sendo certificada que o Infante havia de Torres
Vedras ir a Alanquer para comsigo segundo diziam levar logo El-Rei
ás côrtes, e receosa de assi ser, pelo
desviar de tal proposito enviou a elle Anrique Pereira, que o topou em
Alfazeirão, pedindo-lhe «que na maneira em que ia
escusasse sua ida onde El-Rei e ella e seus filhos estavam, assi porque
pareceria desacatamento, estando elles tão sós,
como por a villa
não ser capaz de seu aposentamento, e menos bastante para os
manter. E que se sua ida assi era necessaria, que se não
podia escusar, que quizesse ir muito aforrado.»
Como o Infante isto ouviu disse:
«Anrique Pereira, vossa vinda sobre tal caso fôra
bem escusada, e verdadeiramente assi me salteam estes accidentes, que
não sei que vos responda, sómente
dizei á Senhora Rainha, que me doem muito estas sospeitas, e
porém saiba que dos que se mais mostram a seu
serviço, se deve mais guardar, pois tão
erradamente a aconselham, e mais contra mim que desejo mais de a servir
que a nojar. E que não fallo no que cumpre ao estado e
serviço d'El-Rei meu Senhor; porque em desejar de o
lealmente servir e amar, não darei avantagem a nenhum do
mundo.
E com este recado se tornou Anrique Pereira á Rainha.
Seguiu o Infante sua viagem até o Lumiar, onde a petitorio
dos da cidade de Lisboa, que ante de sua entrada quizeram fallar
primeiro com elle, sobre-esteve
[87]
alguns dias. Aos quaes com
palavras de grande aguardecimento e mercês, tendo respondido,
despediu a gente que com elle viera, leixando sómente os
seus continos e alguns que para as côrtes vinham ordenados.
Lisboa porque seus accordos eram mui difficeis, e para os particulares
não havia perfeita auctoridade, deputou doze
cidadãos, a que por consentimento de todos o conselho e
deliberação de todalas cousas
de peso, que então
occorriam
foi
comettido. Os quaes juntos sustancialmente accordaram que o Infante
fosse logo declarado por Regedor in solido, sem outra ajuda nem
companhia, até El-Rei ser em idade de per si o poder reger.
E este accordo foi publicado a todo o povo no refeitorio de S.
Domingos, onde logo com vozes e signaes de todos foi sem
contradição
approvado e consentido.
E os cidadãos enviaram logo ao Infante Pero de Serpa, e
Martim Çapata, e Ruy Gomez da Grã, e
João Carreiro a notificar-lhe o accordo passado, e pedir-lhe
que ao outro dia quizesse entrar e ser seu hospede, com fundamento, que
primeiro havia de prometter e jurar que logo só sem outra
companhia nem ajuda começasse uzar do Regimento
inteiramente. O Infante depois de lhes aguardecer sua ida e
tenção, lhes disse:
«Amigos, sabei que n'este caso acordastes mais o que
quizestes, que o que devieis; porque eu n'elle para o que a mim cumpre
tambem não posso fazer se não o que devo, que
é d'este cargo
não me antremeter assi absolutamente, sem meus
irmãos e sobrinhos, e sem os procuradores dos tres Estados
que para isso são chamados. Porque do contrairo, a uns
será desacatamento, e a outros causaria escandalo. Pelo qual
me parece que a trigança para isso não
é agora
[88]
necessaria; mas que deveis sobre-ser até as côrtes
que serão logo. E o que n'ellas se accordar e determinar,
isso será o que se então deve fazer e
cumprir».
«Senhor, disseram elles, essas
justificações de que vossa honestidade se
acautella, bem era que cessem assi; mas ellas para este caso
já são feitas;
porque das cidades e villas, que n'elle hão de dar voz, aqui
temos por suas cartas seus consentimentos. E para o cumprimento de
vossos irmãos, aqui tendes vosso
irmão o Infante D. João que o requere assi e ha
por bem. E com os outros já fallastes, que o não
contradizem. E por tanto Senhor, vos pedimos que não
alongueis o que vos tão justa e devidamente offerecemos. Nem
deis causa que de vossa escusa se sigam alvoroços e
desconcertos de povo, que serão depois impossiveis, ou mui
trabalhosos de concertar.»
CAPITULO XLVI
Entrada do Infante D. Pedro em Lisboa, e como ante as
côrtes acceitou o Regimento
E como quer que da vontade do Infante fosse todavia leixar tudo para
determinação das
côrtes. Porém vendo-se constrangido dos
cidadãos, teve conselho com esses principaes que trazia, dos
quaes todos foi aconselhado, que ao outro dia entrasse na cidade e
fizesse o que ella lhes requeria, pois o contrairo pelas cousas que
eram já n'isso passadas, não contradizia a
honestidade nem razão. Pelo qual o Infante consentiu no
entrar ao outro dia. E defendeu a solemne procissão e outros
grandes estrondos e cerimonias com que ordenavam de o receber.
[89]
Mas que seu recebimento fosse
sómente ao costumado que lhe sohiam fazer sem outra
ennovação.
Ao outro dia entrou o Infante, sendo no caminho recebido do Infante D.
João e de todolos fidalgos e pessoas de conta da cidade com
gram prazer e alegria. E assi foi levado ás casas do Mestre
d'Aviz, que estão junto com a Sé, onde pousou.
E ao outro dia, dia de Todolos Santos, foi ouvir missa á
Sé, onde lhe foi requerido que o
juramento que a cidade tinha acordado, elle o fizesse, como logo fez,
nas mãos de D. Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora, onde
publicamente jurou e prometeu com as mãos postas sobre os
Evangelhos e Cruz, de bem e lealmente reger e defender estes reinos em
nome d'El-Rei D. Affonso seu Senhor, até ser em
disposição de os per si poder reger e defender, e
que então lh'os entregaria livremente e sem
contradição nem
cautella, e o serviria sempre com amor e lealdade, como bom e leal
vassallo.
Tardou o ajuntamento das côrtes até os dez dias de
Dezembro, onde os Infantes com todolos procuradores sendo juntos nos
Paços d'Alcaçova, o Infante D. João se
levantou em pé e disse que algumas
cousas que a todos ali queria propoer por serviço de Deus e
d'El-Rei, e bem do reino, por não estar por então
em disposição de per si as poder
dizer, encomendou ao doutor Diogo Affonso Mangancha que por elle as
dissesse, pedindo-lhes que logo o ouvissem.
O doutor que era presente, cessando todo o rumor, propoz uma arenga
grande e bem dita, cuja sustancia foi aprovar em nome do Infante D.
João, que fôra bem feito enleger o Infante D.
Pedro por só Regedor, contradizendo o accordo e
determinação das
côrtes de Torres Novas, em que o Infante não
fôra, e de si mostrou com claras razões, aprovadas
por Direito Divino
[90]
e
Humano, e autorizadas por claros exemplos, que mulher não
devia ter Regimento. Nem que dois em companhia não deviam
reger; mas um só, e para ser um só devia ser o
Infante D. Pedro, e que a Rainha servissem e acatassem todos como era
razão e o requeria ser mulher e madre de taes dois reis,
sangue e virtudes que tinha.
Foi por todos geralmente consentido na proposição
do doutor, e aprovaram sem contradição o Infante
D. Pedro haver só de reger, de que se fez um accordo que
testemunharam quatro notairos que a todo eram presentes, Lopo Affonso e
Ruy Galvão, e Martim Gil, e Gonçallo Botelho,
officiaes da camara e fazenda de El-Rei. O qual accordo foi logo por
todos alli assignado, salvo pelo conde d'Arrayollos, que se escusou de
o assignar, nem chamou depois ao Infante Regente, mas seu nome; como
quer que obedecesse a seus mandados inteiramente, e melhor que alguns
que o enlegeram e assignaram.
Foi isso mesmo acordado que o Infante fizesse como fez, juramento na
fórma do passado, de reger bem o reino e o entregar
livremente a El-Rei, como fosse em edade e
disposição de o por si reger e deffender.
E certo o Infante D. Pedro o fez assi sempre bem, e como devia, que
para ser louvado sobre todolos Principes de seu tempo, não
lhe falleceu se não ser Rei; porque em Regedor
não dava assi as cousas á
inteira execução que se requeria. E tudo por
temperança e assessego do reino, e por evitar escandalos,
odios, invejas a que não pôde fugir, cá
em fim
o encalçaram com a morte, e com quebra de seu estado, como
adiante se dirá.
[91]
CAPITULO XLVII
Notificação
do acordo passado
á Rainha, que o não consentiu
O Infante D. Pedro por si só, e des-hi os outros infantes,
condes e fidalgos e procuradores das cidades e villas que foram
presentes, por suas cartas notificaram logo á Rainha que
estava em Alanquer, todo o passado, com razões e fundamentos
de serviço de Deus e d'El-Rei, e grande descanço
d'ella. Pedindo-lhe todos com muito acatamento que o houvesse assi por
bem e quizesse trazer El-Rei á cidade para lhe ser feita a
reverença que lhe todos deviam e desejavam fazer. E para em
sua presença se tratarem algumas cousas, que a seu estado e
serviço, e bem de seus reinos convinham.
Com este recado o Infante enviou á Rainha Alvaro
Gonçalvez de Tayde, governador de sua casa, homem prudente e
bem razoado, e de que muito fiava.
A Rainha recebeu a messagem com signaes de grande tristeza, e por
conselho dos que com ella eram, sustancialmente respondeu
que
se os Senhores Infantes,
condes e povo, revogassem a enleição do
Regimento, que era feito ao Infante, e o dessem a ella como eram
obrigados, seria contente levar El-Rei á cidade. E d'outra
maneira que o não faria. E ao dar da
resposta tomou d'isto estromentos por seu resguardo.
Tornou-se Alvaro Gonçalez aos Infantes com esta resposta, e
vendo-a contraira a sua determinação,
acordaram de enviar a ella com a mesma sustancia Affonso Nogueira, que
depois foi Arcebispo de Lisboa, e o ministro de S. Francisco, confessor
d'El-Rei, como pessoas
[92]
esprituaes, e de boas conciencias, os quaes como quer que para a
commoverem a consentir no passado lhe dissessem causas e
razões para Deus e para o mundo assaz evidentes, ella
forçada por ventura de sua fraca humanidade, ou dos errados
conselheiros, que em contrairo tinha ouvido, acusou com
palavras
mui honestas a si mesma, e a dureza de sua conciencia por o
não poder fazer. E em fim nem consentiu em o Regimento lhe
ser tirado, nem de levar El-Rei, nem dar lugar que fosse por outrem
levado a Lisboa, com quanto lhe fossem feitas grandes
seguranças de logo El-Rei lhe ser tornado, como na cidade
estivesse alguns dias.
CAPITULO XLVIII
Ida do Infante D. Anrique á Rainha para
leixar vir El-Rei ás côrtes, e lh'o
tornarem
Com este recado foram
os Infantes mui descontentes, e o povo mui
alvoraçado, e leixadas muitas praticas e
tenções que se moveram, finalmente foi acordado
que o Infante D. Anrique por derradeiro e principal cumprimento fosse
sobre o mesmo caso a ella, como foi.
E apartados ambos, o Infante lhe fez uma falla, em que obrou tanto sua
virtuosa tenção e bom
proposito com que ia, que demoveu a Rainha ao que desejava. D'onde foi
de crêr, segundo era virtuosa e amiga de Deus, que se
conselheiros apassionados a não torvaram, ella e sua vida e
estado conseguiram outro fim de mais sua honra e descanso.
Ao outro dia partiu d'Alanquer o Infante D. Anrique com El-Rei e com a
Rainha e Principe, para
[93]
Santo Antonio, camara do Arcebispado de Lisboa, e o Infante D. Pedro,
sabendo que a Rainha não resistiria ao Infante D. Anrique, e
viria ao que elle quizesse e levava ordenado lhe requerer, se foi de
Lisboa a Alverca, d'onde sahiu ao caminho, e com grande acatamento
beijou as mãos a El-Rei e á Rainha, como quer que
ella se quizera d'isso muito escusar, e assi chegáram a
Santo Antonio bespora de Natal, onde foi acordado que El-Rei e a Rainha
tivessem a festa. A qual passada, os Infantes todos tres foram por
El-Rei e por o Principe seu irmão. Dando primeiro
á
Rainha segurança por seus assignados, de logo lhe tornarem
El-Rei a seu poder, criação e
governaça.
CAPITULO XLIX
Entrada
d'El-Rei em Lisboa para as
côrtes
Veiu El-Rei por agua
até Lisboa e foi recebido á
Porta d'Oura, e d'alli levado á Sé e aos
Paços d'Alcaçova. Indo El-Rei e seu
irmão e os Infantes
sómente a cavallo, e os condes e outros senhores foram todos
ante elles, e esse recebimento foi com tantas cerimonias d'acatamento,
obediencia e alegrias assi celebrado, que em qualquer parte do mundo
onde mui altamente recebimentos se costumassem fazer, este
fôra mui muito louvado, e o Infante D. Pedro foi
só o que poz El-Rei a cavallo e o deceu. O que
não
sómente fez aquelle dia, com assignado acatamento e leal
obediencia e grande reverencia, mas sempre depois o continuou e
acrecentou, em dez annos que por elle regeu seus Reinos. Cá
por si o serviu e fez aos outros servir com tamanho cumprimento de seu
[94]
estado e serviço
que se não póde dizer
que outro algum Principe fosse melhor criado no mundo, nem ensinado.
Mandou logo o Infante D. Pedro a Ruy
Gonçalves de Castel-Branco, védor que
fôra d'El-Rei D.
Duarte, que fizesse nos paços correger em grande
perfeição a salla em que El-Rei havia d'estar nas
côrtes. E concordado o dia, que foi aos dez dias de Dezembro
de quatro centos e XXXIX, e assentado El-Rei em sua cadeira, e
acompanhado de senhores e officiaes, como para auto tão real
convinha e se acostumava, o doutor Diogo Affonso Mangancha propoz a
arenga em nome d'El-Rei ao povo, cuja principal sustancia foi:
«aprovar e confirmar a enleição por
elles feita de o
Infante D. Pedro para por elle reger, e agardecer-lhes e prometer-lhes
mercês, honras e liberdades pela assi fazerem, e assi
encommendar ao Infante que o fizesse assi bem e direitamente, como
d'elle confiava, e mandar a todos que lh'obedecessem, como á
sua propria
pessôa».
E em acabando o doutor, o Infante D. Pedro com os giolhos em terra
beijou a mão a El-Rei, e sua Senhoria lhe entregou logo um
páo em que estava atado o sello secreto, em signal e nome de
poderio. E como se deu fim a estas cousas, foi logo El-Rei tornado
á Rainha sua madre, segando pelos
Infantes lhe fôra prometido.
O Infante D. Pedro na casa das côrtes fez logo ajuntar os do
povo e alguns do conselho, e sendo entre elles em pé, lhes
disse com muita gravidade:―«que
pelo grande cargo do Regimento que lhe fôra encommendado, era
necessario elle fazer de si outro homem».―Pelo qual lhe fez
alguns avisados amoestamentos, em signal de sua grande bondade e muita
prudencia, para os que bem e direitamente vivessem
[95]
esperassem d'elle em nome d'El-Rei seu
Senhor, bem e mercê, e assi pena e castigo aos que o
contrairo fizessem, encommendando-lhes outrosi que o amassem e lhe
obedecessem, e quizessem ajuda-lo e deffende-lo com seus corpos e
fazendas, assi como elle faria a elles mesmos quando lhes cumprisse. E
principalmente que confiassem d'elle que todo o que fizesse seria afim
de bem e justiça, em caso que lhes parecesse o contrairo.
Ás quaes cousas lhe foi por um deputado respondido, conforme
a sua tenção e petitorio, e o Infante descobrindo
sua cabeça lh'o agardeceu.
O conde de Barcellos mostrava d'este feito não ser contente,
e desejoso de haver para si alguma parte do Regimento, e por
enfraquecer ao Infante seu poder fez e ordenou certos capitulos em
fórma de Regimento, que o Infante havia de ter em sua
governança. Pelos quaes todolos feitos principaes tirava de
seu juizo e os remetia ás côrtes, que cada anno
apontava que se fizessem. O qual Regimento mostrado aos procuradores
dos povos, houveram por escusado ennovar-se mais do que tinham
acordado, e El-Rei aprovado. De que o conde mostrou ser
assáz descontente, e começou logo de requerer a
restituição da posse do Arcebispado ao Arcebispo
D. Pedro seu cunhado; e porque não podia ser sem prazer e
consentimento dos cidadãos, que d'elle tinham apellado para
Roma, o Infante D. Pedro por contentar e assessegar vontades
contrairas, e tirar inconvenientes e torvaçõas a
seu regimento, e assi tambem o Infante D. João, entenderam e
trabalharam n'isto muito com diligencias, que pareciam verdadeiras e
não fingidas. E em fim a cidade por Pero de Serpa seu
cidadão, se escusou de o consentir com muitas
razões, em que pareceu que não fallecia
serviço de Deus, honestidade e muita justiça.
Afirmando,
[96]
que todavia
haviam de seguir sua appellação,
durando a qual seria o Arcebispo suspenso, e trabalhariam porque fosse
privado, e por esta dureza que os infantes acharam nos
cidadãos, pela mais não agravar,
houveram por bem leixar por então este requerimento,
esperando que depois se faria melhor, como fez. De que o conde de
Barcellos não sómente contra os
cidadãos, mas contra o Infante principalmente, mostrou
grande sentimento, parecendo-lhe que por sua conjuntura e prazer a
cidade tinha aquelle esforço de resistir.
A estas côrtes entre as outras graças e liberdades
que o Infante D. Pedro em nome d'El Rei outorgou ao povo, foi que
não houvesse aposentadoria em Lisboa, fazendo estados e
casas, em que se El-Rei e sua côrte podessem alojar; e depois
se deu assi a Evora e Santarem.
CAPITULO L
De como se apontou e aprovou não ser bem
El-Rei se criar em poder da Rainha
Estando já
as côrtes e despachos d'ellas em
conclusão para os procuradores se poderem ir, um
João Gonçalvez, procurador da cidade do Porto,
com outro seu parceiro se foram á camara de Lisboa, sendo os
officiaes d'ella em vereação. E cuidando
os da cidade que iam despedir-se d'elles, como era de cortesia e
custume, João
Gonçalves disse:
«Senhores, a mim e a meu parceiro parece, que vós
e todolos outros nossos irmãos e parceiros, que em nome do
reino a estas cortes viemos, as daes já por acabadas. E
certo muitas cousas, mercês a Deus, se
[97]
concludiram n'ellas; porque El-Rei
nosso Senhor é mui servido, e nós contentes.
Porém a principal
ficou por requerer e fazer. Sem a qual, todo o que se fez a nosso
parecer é nada ou aproveita muito
pouco».
Os cidadãos enleados de sua
proposição, sabendo que era homem d'autoridade,
cessaram de suas praticas em que estavam, e seguraram os rostos e as
vontades para o ouvir. O qual proseguindo disse:
«Porque concludindo brevemente meu proposito, digo-vos que
por se escusarem muitos danos e grandes inconvenientes que se
não escusam, El-Rei não deve ficar em poder da
Rainha como está, e alguns apontarei e os outros mais
vós por vossa
discrição e saber os entendei. Primeiramente a
criação
d'El-Rei por ser em poder de mulher, é a elle mui danosa, e
sempre por isso ficará fraco e feminado. Que para qualquer
homem privado é aleijão sobre todos, quanto mais
para Rei. E se as comparações não
fossem odiosas, e isto não fosse tão claro, por
exemplos bem vo-lo
poderia provar. Outrosi de sua creação, por tal
maneira está mui evidente o perigo do Infante D. Pedro
Regente, e tambem nosso; porque
segundo a Senhora Rainha,
isto que acordamos sente por sua deshonra e grande quebra de seu
estado, como em suas cartas e protestações parece
claro, não
é duvidar que criaria El-Rei em odio contra o Regente e
contra nós, de que ao diante poderia por isso commeter uma
grande crueldade, em que não haveria remedio. Porque como
naturalmente aquellas cousas que os moços recebem na tenra
edade se lhe emprantam no coração e em sua
memoria para sempre, esta principalmente se lhe emprantaria muito mais,
por lhe ser dita tão a meude, e com tantas lagrimas. Outro
dano é a que se deve atalhar o crecimento de despezas
desordenadas, a que as rendas do reino não
bastáram. Cá
umas são necessarias
[98]
ao Regente para manter seu estado e do reino, e outras cumprem
de necessidade a El-Rei e a seu irmão, e outras á
Rainha e suas filhas. Com
outros inconvenientes que agora são escusados
apontarem-se».
Aos cidadãos pareceu bem o motivo de João
Gonçalves, e fizeram logo avisar os outros procuradores, que
logo á tarde foram hi juntos, onde depois de havidas algumas
praticas e altercações sobre o caso,
accordaram que El-Rei e seu irmão deviam todavia ficar em
poder do Infante D. Pedro. Ao qual d'este accordo logo avisaram,
pedindo-lhe que o quizesse assi consultar com os Infantes seus
irmãos, com os quaes ordenasse que se cumprisse.
O Regente depois de ouvir dois cidadãos que a elle sobr'isso
foram, lhes respondeu:
«Dizei aos cidadãos e procuradores, que lhes rogo
muito que cessem d'este movimento, e não me daria
persumir-se que eu n'elle cabia por principal, se fôsse
devido e necessario; mas eu o digo assi, porque na verdade ei por muito
melhor ficar El-Rei meu Senhor e seu irmão em poder de sua
madre, que no meu. Assi por satisfazer a sua
consolação e
contentamento como é razão e está
concordado, como
tambem por mais minha segurança e descargo, e sua Senhoria
moço é, e sujeito como todos a enfermidades e
casos mortaes, de que fallecendo, o que nosso Senhor não
queira e o defenda, é certo que seria com grande minha
tristeza e muita pena, e a mim poderiam dar a culpa de sua morte, e
d'hi ávante eu com este cargo tenho tantas cousas em que
entender, que a essa não poderia satisfazer como a ella
requere e é razão;
e que podesse, sabei que queria fugir aos odios dos aios, que eu com
tal cargo «Dizei aos cidadãos e procuradores, que
lhes rogo
muito que cessem d'este movimento, e não me daria
persumir-se que eu n'elle cabia por principal, se fôsse
devido e necessario; mas eu o digo assi, porque na verdade ei por muito
melhor ficar El-Rei meu Senhor e seu irmão em poder de sua
madre, que no meu. Assi por satisfazer a sua
consolação e
contentamento como é razão e está
concordado, como
tambem por mais minha segurança e descargo, e sua Senhoria
moço é, e sujeito como todos a enfermidades e
casos mortaes, de que fallecendo, o que nosso Senhor não
queira e o defenda, é certo que seria com grande minha
tristeza e muita pena, e a mim poderiam dar a culpa de sua morte, e
d'hi ávante eu com este cargo tenho tantas cousas em que
entender, que a essa não poderia satisfazer como a ella
requere e é razão;
e que podesse, sabei que queria fugir aos odios dos aios, que eu com
tal cargo não posso escusar, especialmente refreando El-Rei
e seu irmão em cousas a
[99]
que sua mocidade os
inclinará, em que por ventura mereceram mais emmenda e
reprensão que louvor.»
Os cidadãos lhe replicaram:
«Senhor, quem vos bem conhece e vosso justo juizo e grande
saber, sem errar vos póde dizer que d'outra maneira o
entendeis, do que o fallaes. E por tanto isto que vos propozemos
é assi em nós todos
tão determinado para se cumprir, como o mais que fizemos.
Cá se o passado foi proveitoso, n'isto ha proveito e
necessidade; porque não é razão, nem
queira Deus que um tão alto Principe como é
El-Rei nosso
Senhor, e que em tão pequenos dias nos dá de si
tantas esperanças de bem entendido e virtuoso, seja assi
creado em tanto aleijão, como é a
criação em poder de mulheres. Antes pois em
vós para isso ha tantas razões, é
razão que o crieis e
façaes ensinar em letras e reaes costumes, e o leveis ao
monte e á caça, e
lhe mostreis por vós o exercicio das armas, e por exemplos e
doutrina, e merecimentos da cavallaria. E assi as outras cerimonias,
manhas, e cousas que ao estado de um tal Principe convém,
assi para os tempos publicos, como secretos, e com isto elle
é de tão
são e perfeito entender, que conhecerá que o
servis bem e lealmente. E por isso vos amará e
fará aquelle
acrecentamento e mercê, que lhe prazendo a Deus
merecereis.»
O Regente acalçado n'este caso da necessidade e
razão de que se não sabia escusar, disse:
«que se fallasse aos Infantes seus irmãos, e o que
elles accordassem por melhor, elle o seguiria.» Aos quaes por
os procuradores foi logo fallado, e assi aos condes e ás
outras pessoas d'estima que eram na côrte. E
por todos finalmente foi accordado: «que pospostas todalas
cousas e assento passado, El-Rei ficasse em poder
[100]
do Regente». O que em pessoa
lhe foi logo assi notificado. O qual disse:
«Certo não por resistir a vosso conselho e
determinação, a que folgarei sempre de obedecer.
Mas a mim parece que n'este caso o melhor será que a Senhora
Rainha e eu andemos pelo reino juntamente, de que se seguirá
que sua Senhoria criará El-Rei meu
Senhor seu filho, e eu vê-lo-hei e servirei nas cousas que
apontaes, quando fôr necessario. E prazendo a Deus, eu o
farei por maneira, e com tanto prazer e contentamento d'ella, que sua
Senhoria terá razão de conhecer de mim a verdade
de que sempre duvidou, e perderá com isso alguns queixumes e
escandalos que sem causa lhe fizeram ter contra mim.»
E louvando todos aquelle parecer, se foram com elle á
Rainha, que ainda era em Santo Antonio, á qual pelo Infante
D. Pedro e por os outros Infantes foram mui verdadeiramente ditas
todalas cousas e razões que no caso havia para o haver de
seguir. Mas ella finalmente não quiz, salvo que lhe ficasse
a
governança da fazenda juntamente com a
criação de seus filhos, referindo-se ao accordo
das primeiras côrtes. E que se das rendas para
serviço d'El-Rei se houvesse alguma cousa despender, que
fosse por sua autoridade e mandado. E como quer que pelos Infantes lhe
fossem apontados muitos pejos e inconvenientes para assi não
poder ser, e lhe pedissem que quizesse haver por bem o que
accordáram, a ella não
prouve. E os Infantes vendo sua determinação, se
despediram d'ella para ainda consultarem se se acharia algum bom meio
com que ella ficasse contente.
[101]
CAPITULO LI
Como a Rainha teve pratica com os seus principaes sobre a ida
dos Infantes a ella e como se foi a Cintra e leixou El-Rei e seu
irmão
Partidos os Infantes,
a Rainha a esses principaes que com ella eram
notificou logo os apontamentos de sua vinda. E assi a
conclusão com que ficara, e quiz d'elles saber o que lhes
parecia, dizendo:
«Não pode ser mór angustia da que meu
coração tem n'este caso. Cá de uma
parte o sentimento e nojo que tenho do Infante D. Pedro me faz desejar
não haver cousa no mundo para o poder vêr, e
d'outra segundo o que sinto, isto é já quasi
privarem-me
de meus filhos. Cuja natural piedade e grande amor que lhes tenho, me
constrange não os leixar. Especialmente me obriga muito
parecer-me que segurarei com a graça de Deus suas pessoas,
de que teria mór
esperança, e com menos receios, que de andarem sem mim em
poder do Infante D. Pedro. O qual segundo já descobre sua
grande cubica para reinar, quem duvidaria que para o fazer mais
livremente, não lhes encurtara mais cedo as vidas. E n'elle
ha muitas
dessimulações e hipocresias com que tudo
saberá mui bem encobrir. Assi que n'estes dois tamanhos
extremos não sei qual meio tome, ou ter meus filhos e andar
com elles por sua segurança, e ir com o Infante á
melhor parte sem outro encarrego, ou leixa-los de todo á
disposição de Deus que os
guarde, e da fortuna boa ou má que lhes pode vir. O primeiro
d'estes bem sinto que é um bom desejo da alma, a que por
[102]
ventura consirando tudo sem
paixão eu devia ser mais conforme. O segundo é
apetito do corpo e da honra, em que sinto tamanhas forças,
que me inclinam a elle de todo, e n'esta tamanha diferença e
torvação a que meu juizo não abasta,
quero saber de vós o que vos parece.».
Os quaes responderam, dizendo:
«Senhora, esta derradeira é a melhor
determinação que podeis ter, e o vosso
coração para
quão real é, não deve soffrer andar
sobjeita em poder de
um homem vosso imigo, e que segundo o desamor que vos tem, vos
fará cada dia mil nojos e abatimentos, e a nós
outros que vos servimos, como desesperados d'elle em todo bem e
mercê, será razão que
nós vamos ás judarias ou fóra do
reino, pois havemos ser d'elle pior tratados que judeus. O que
não deveis haver por pequena dôr e vituperio
vosso, e com isto bem sabeis que ha n'elle praticas e cautellas, para
com todo mostrar ao povo que o faz muito pelo contrairo; porque elle
não ha mais mester que favor de villãos que
o tem por idolo. Pelo qual nosso conselho é, o com que
despedistes os Infantes, não aceitardes a
criação de vossos filhos sem governardes toda a
fazenda, e que pois haveis de ser agravada, que o sejaes de todo,
principalmente pois sabeis que a emmenda d'isto se apressa, e
não pode já tardar muito. E pelo que
ora vossos irmãos vos escrevem de Castella, e assi de
Portugal o Priol do Crato e o Marechal, e os outros fidalgos que
defendem vossa querella, o podeis mais claramente vêr e
afirmar, e para segurança de
vossos filhos, sob reverença de vosso juizo, é
muito
pelo contrairo. Cá para o Infante D. Pedro cumprir seu
máo proposito, se o tem de acabar vossos filhos, sabei que
vossa presença é mais azo, e a melhor
encuberta que para isso pode ter. E por ventura o fará
[103]
mais levemente, e com menos
temor em vosso poder que no seu. E nas enculcas e espias que
já agora traz comvosco, de que sabe aqui
não sómente
o que fallaes, mas o que cuidaes, podereis conjecturar se para tal caso
achará ministros. Assi que leixai-lhe todo o Regimento, e os
filhos juntamente até que Deus queira».
N'este conselho contrariou com razões mui vivas Pero
Lourenço d'Almeida, Almotacé Mór
do reino, que era presente, desfazendo á Rainha e aos outros
conselheiros com fundamentos mui claros as esperanças que
tinham de seus irmãos em Castella, e assim dos fidalgos de
Portugal. Pedindo-lhe que quizesse acceitar o meio que os Infantes lhe
tinham apontado, que segundo a disposição do
tempo houve por bom. Mas como a vontade da Rainha, e assi a dos outros
estavam para o contrairo determinadas, não aprovaram o
conselho de Pero Lourenço, reputando-lhe não a
siso mas a fraqueza por se não sahir de sua casa e boa
fazenda que tinha em Lisboa. Pelo qual a Rainha determinou partir-se e
leixar seus filhos, e levar sómente as filhas comsigo.
Isto se passou em Santo Antonio a um sabbado, e logo ao domingo a
Rainha mandou chamar secretamente alguns seus de Lisboa, que vieram hi
dormir. E passada a meia noite ouviu missa, e fez alevantar os filhos
da cama, e tomou El-Rei nos braços, e com muitas lagrimas
lhe disse:
«Filho e Senhor, praza a Deus por sua piedade que vos guarde
e vos dê vida, e a mim não leixe viva e
desamparada de vós, como o sou d'El-Rei meu Senhor vosso
padre.»
E com isto se despediu com tamanho pranto seu e de todos, como se os
leixaram soterrados para os nunca mais vêr.
[104]
El-Rei salteou-se com tamanha novidade, e posto que para isso
não teve edade de que se esperasse tamanho accordo,
não lhe falleceu natural prudencia e
discrição com que n'aquella hora, com grande
repouso e segurança, e por palavras doces e avisadas, soube
confortar a Rainha sua madre, que se partiu para Cintra, de que o aviso
foi logo a Lisboa, e o Infante D. Anrique como o soube se partiu a gram
pressa pela alcançar no caminho, e já
não pôde senão no logar d'onde a
não pôde mover de seu proposito,
e o Infante D. Pedro e o Infante D. João foram logo a Santo
Antonio e trouxeram El-Rei e o Principe seu irmão a Lisboa,
onde a cada um deram casa com seus officiaes apartados, porque
até alli se serviam ambos juntamente, e n'estes movimentos
foi tanta a prudencia e resguardo d'El-Rei, que sendo de tão
pequena edade, e tendo tanto amor e affeição
á
Rainha sua madre, como era razão, nunca por se vêr
d'ella
apartado foi ninguem que n'elle contra o Infante podesse conhecer algum
signal de má vontade. Nem que reprendesse ou louvasse os
feitos de um nem do outro, nem com seu escandalo.
CAPITULO LII
Como Lisboa commetteu de querer fazer uma estatua ao Infante
D. Pedro pelo beneficio do relevamento das aposentadorias, e do que lhe
respondeu
Os procuradores do reino com isto acabado se foram, e os
cidadãos de Lisboa por memoria da mercê
e liberdade que lhes o Infante em nome d'El-Rei fizera, quando lhes
tirou as aposentadorias,
[105]
como já disse, lhe quizeram com seu consentimento ordenar
uma estatua de pedra sobre a porta dos Estáos, que o Infante
novamente mandou fazer, e perguntando-lhe em que fórma a
haveria por melhor que estivesse, o Infante com o rostro carregado de
tristeza e pensamento, o desviou e defendeu, dizendo-lhes, como por
verdadeira prophecia de sua fim:
«Se a minha imagem alli estivesse esculpida, ainda
virão dias que em galardão d'essa mercê
que vos fiz e d'outras muitas que com a graça de Deus espero
de vos fazer, vossos filhos a derribariam, e com as pedras lhe
quebrariam os olhos. E por tanto Deus por isso me dê bom
galardão, cá de
vós em fim não espero outro se não
este que digo, e por ventura outro pior.»
Das quaes palavras foram então os cidadãos
tão maravilhados, como foram depois certificados que dizia
verdade, quando assi o viram cumprir. E seguiu-se mais depois, para se
presumir que o Infante alguma revelação tinha de
sua morte, que em Coimbra indo
elle quando regia, e o Infante D. Anrique para a porta de S. Bento, que
sae á ponte onde estão as
armas da cidade, que são uma mulher posta sobre um calez,
com uma corôa na cabeça, e a uma teta um
leão, e a outra uma serpe, o Infante D. Anrique olhando-as,
disse pelo contentar:
«Bem se póde Senhor Irmão comparar a
vós esta figura, pois tambem de uma parte daes mantimento ao
leão, que é Castella, e da outra a Portugal,
que é a serpe do nosso timbre.»
«Verdade é, disse o Infante D. Pedro; mas
vêde-a melhor, e consirae que está sobre calez,
que significa sangue, em que mais claro parece, que de meus trabalhos,
serviços e beneficios, esse ha de ser meu
galardão.»
[106]
E certo, com quanto este Principe era mui catholico, devoto e justo, e
em que havia muitas outras virtudes, assi se seguiu como ao diante se
dirá.
CAPITULO LIII
Como
a Rainha sobre suas cousas se querellou aos
Infantes d'Aragão seus irmãos, e da embaixada que
enviaram
A Rainha como dos effeitos da esperança que tinha, e lhe
davam para reger, começou de se vêr no reino
enganada, dobrou-se n'ella o desejo de seu proposito. E por um modo
já de victoria e vingança, assi no reino como
fóra d'elle, para
cobrar o Regimento dobrou suas forças e deligencias, para o
qual enviou notificar e se queixar aos Infantes d'Aragão e
á Rainha de Castella seus
irmãos, como por força lhe tiravam o Regimento, e
a titoria de seus filhos. E assi o aggravo e abatimento que n'isso
recebia, fazendo-os participantes na injuria do caso pelos mais obrigar
e acender para o que desejava, crendo ella que por serem já
retornados em Castella, logo teriam o poder onde tivessem a vontade, e
que com seu receio em Portugal se não faria a cousa em que
elles recebessem descontentamento.
Mas os Infantes seus irmãos sabendo a pouca firmeza e
segurança que tinham em Castella, e que lhe não
cumpria fazer por então novas
alterações contra si, tomaram a parte mais
branda, e enviaram aos Infantes d'estes reinos com sua embaixada um D.
Affonso Anrique, bisneto d'El-Rei D. Anrique, que da sua parte com
palavras honestas lhes rogou em sustancia «que
[107]
sobre a
determinação das primeiras
côrtes não fizessem com a Rainha sua
irmã alguma outra
enovação.» Ao qual os Infantes
responderam «que á Rainha
não era feita injuria nem desserviço, nem lhe
tiravam
senão cuidados e trabalhos, a que suas forças por
ser mulher não abastavam, e cargos de conciencia, o que ella
devia querer; porque o Regimento do reino a ella de razão e
direito não pertencia. E a quem
direitamente convinha e o saberia e poderia fazer o tinham
dado.»
Com esta resposta se houve D. Affonso por despachado, e se foi a Cintra
por vêr a Rainha. E posto que fosse homem de grande linhagem,
não havia
porém n'elle aquelle tento, discrição
e prudencia, que a pessoa de tal cargo pertencia. Porque em lugar de
poer a vontade da Rainha em bom assessego e temperar
suas
paixões, acendeu-lh'as muito mais
com esperanças vãs, que lhe deu de ser por
força, e com ajuda de seus irmãos restetuida e
vingada. Offerecendo-se para o caso com gentes de cavallo e de
pé, como principal capitão do reino, e para logo
a vir servir não tomou largo prazo. E com estes enganos em
que a Rainha levava gloria, tirou d'ella prata dinheiro, e tornou-se
para Castella onde deu resposta aos Infantes. Os quaes, porque suas
cousas não estavam em desejada segurança para
fazer movimentos, ao menos por não parecer que desamparavam
de todo os feitos da Rainha sua irmã, tornaram a enviar ao
Infante D. Pedro e aos Infantes seus irmãos um
Daião de Segovia, pedindo-lhe com palavras mansas e honestas
que guardasem á Rainha o acatamento e reverencia que ella
merecia, e lhe tivessem aquelle amor que deviam. De que os Infantes
foram mui contentes depois em todo ao cumprir, para o qual
encommendaram ao Daião que fosse fallar com ella para que
quizesse
[108]
repousar a
vontade, e não dar causa a
boliços, de que tanto mal se podia seguir; porque com isso
ella seria servida e acatada, como se El-Rei seu marido fosse vivo.
O Daião lhe foi fallar e a aconselhou, dizendo-lhe
«que por quanto os feitos de seus irmãos
não estavam em Castella n'aquelle assessego que convinha
para n'elles de certo remedio ter firme esperança, que em
tanto temperasse e dessimulasse cá a seus negocios o melhor
que podesse; porque concertados os dos Infantes em Castella, em
Portugal se faria dos seus o que ella desejava.»
CAPITULO LIV
De como se entendeu na
redempção do Infante D. Fernando, e do
que se seguiu
E porque não pareça que a
redempção e soltura do Infante D. Fernando,
depois da morte d'El-Rei seu irmão se esqueceu, é
de saber, que com todalas mudanças e divisões
passadas entre a
Rainha e o Infante D. Pedro, sempre d'elles foi muito lembrada e
negociada, cuja deliberação foi muitas vezes aos
mouros cometida por grande somma de dinheiro ou de captivos, e por
outras maneiras. Nas quaes elles não quizeram nunca
entender, e se mostravam que entendiam, logo se mudavam em outras
sentenças, afirmando-se finalmente que lhes dessem Ceuta
segundo fórma do contrato que o Infante D. Anrique e os
outros capitães do palanque de Tangere com elles fizeram.
Pelo qual a Rainha e o Infante D. Pedro ante de seus desvairos, por se
satisfazer ao Infante D.
[109]
Fernando e cumprir a vontade d'ElRei D. Duarte, que em seu
testamento o leixara muito encommendado, determinaram com os do
conselho, e houveram por bem, que pospostas
amoestações do Papa e
conselhos de muitos Principes christãos que o contrariavam,
que Ceuta todavia se desse por elle, e sobre isso passaram em nome
d'El-Rei as cartas e procurações
necessarias, assignadas por ambos, com as quaes foram por embaixadores
Martim de Tavora, reposteiro mór d'El-Rei, e o licenceado
Gomes
Eanes, desembargador na casa do civel.
E em chegando a Arzilla acertou-se que morreu
Çalabençala, que fôra senhor de Ceuta
ao tempo que se tomou, e a este tempo era alcaide de Tangere e Arzilla,
com o qual os ditos embaixadores haviam de tratar. Depois de sua morte
ficou seu irmão Muley Buquer portector do filho maior do
dito
Çalabençala, o qual seu filho tambem por
dependencia do mesmo caso do cerco de Tangere era captivo, e
fôra dado por arrefens em Portugal.
E querendo os embaixadores entender com elle no negocio, certificando-o
da abastança do poder d'El-Rei que para o caso levavam, elle
se escusou dizendo:
«Christãos, sabei que Ceuta é tamanha
cousa, que em quanto D. Fernando conde de Villa Real,
capitão d'ella fôr terceiro para a entregar, nunca
crerei que vós trazeis desejo d'alguma certo
conclusão,
cá por elle não perder tal senhorio com tanta
honra como agora em Ceuta tem, bem sei que mostrando que não
desobedece a vosso Rei e seus governadores, sempre buscará
corados achaques e cautellas para a nunca entregar».
E depois de os embaixadores lhe desfazerem com razões sua
opinião e haverem entre si sobre o
caso
[110]
muitas
altercações, finalmente se concordaram
«que Muley Buquer notificasse a vinda dos embaixadores a
Muley Buzaceri, Rei de Fez, em cujo poder o Infante estava, e que se
n'este feito desejava boa conclusão, que tornasse o Infante
a Arzilla, e como alli fosse, se o conde D. Fernando logo por elle
não entregasse Ceuta como era concordado, que
então se teriam outros meios com que sem escusa se
fizesse». D'esta conclusão foi o mouro contente;
sómente
disse «que emquanto elle n'isto entendia, elles se viessem a
este reino e com El-Rei procurassem que da sua tornada em Africa viesse
logo com elles outra pessoa, e com taes provisões a que
Ceuta logo se entregasse e tirasse do poder o conde».
Com este apontamento se tornaram os embaixadores, e por acharem a
Rainha e o Infante D. Pedro no meio dos móres desvairos
sobre o Regimento, sobre-esteve o negocio até sem contenda
se dar inteiramente ao Infante como já disse, o qual ouviu
logo os ditos embaixadores em conselho, onde foi determinado por
algumas causas em que se fundaram, mais de piedade do dito Infante que
de honra do reino, que Ceuta sem mais debate se desse por elle.
E por quanto a duvida de Muley Buquer, quando lhe pareceu que o conde
D. Fernando, por não perder tal governança
retardaria a entrega de Ceuta se houve por razoada, acordaram que a D.
Fernando de Castro, Governador da casa do Infante D. Anrique, e a D.
Alvaro seu filho, a ambos e a cada um fosse entregue a cidade, e n'ella
estivessem para a darem, e receberem por ella o dito Infante, e que a
este reino se viesse o conde D. Fernando, a quem se daria por a
capitania e governança d'ella sua dina
satisfação, e que Martim de Tavora e o licenceado
estivessem por negoceadores em Arzilla.
[111]
D. Fernando de Castro era homem de nobre sangue, prudente, e de grande
conselho, e tinha boa fazenda; e porque houve este encargo por de muita
honra para si e sua linhagem, ordenou sua ida para o mar e para a
terra, o mais perfeita e honradamente que pôde. Especialmente
o moveu a isso com maior cuidado e diligencia levar
esperança que o Infante D. Fernando havia de casar com uma
de suas filhas, de que estando em Fez lhe enviara sua
certidão, consirando que seu conselho e auctoridade lhe
podia por isso em sua deliberação muito
aproveitar, e D. Fernando para
o mais obrigar havendo sua soltura por certa, lhe levava feitos
á sua custa todolos corregimentos que para a
pessôa, cama e mesa de um tal Princepe eram pertencentes. E
assi levava navios sobresalentes para o Infante e o conde, e os
moradores de Ceuta n'elles se virem, além d'outros em que
para sua segurança
levava mil e duzentos homens, entre os quaes iam muitos fidalgos e
gentis homens da casa d'El-Rei e dos Infantes, e com tudo prestes,
partiu D. Fernando de Lisboa no mez d'Abril de mil e quatrocentos e
quarenta e um, com vento de boa viagem. E indo os navios de sua
companhia espalhados pelo mar: além do Cabo de
São Vicente, acertou-se que uma carraca de Genoa, que andava
d'armada, veiu demandar e afferrar o navio em que o dito D. Fernando
ia, o qual como quer que logo por razões d'amizade e depois
com armas e grande esforço quanto foi possivel se
defendesse, finalmente o navio com a mais força da carraca
foi entrado e roubado, e D. Fernando acabou n'elle sua vida de uma
bombarda, e os genoeses achando-se com tal rica presa, receiosos da
emmenda, porque a outra frota já vinha sobr'elles, meteram
suas vellas e tomaram o mar por sua salvação. E
quando os outros navios da conserva acudiram sobre o navio do
[112]
capitão e o
acharam morto, vendo que a vingança
de sua morte já não estava em seu poder,
tornaram-se
a Tavila, onde em São Francisco enterraram seu corpo, com
assaz honra e lagrimas.
D. Alvaro seu filho a que a capitania e negocio do Infante ficava
encommendada, sem alguma mais detença se foi d'hi a Ceuta,
d'onde escreveu ao Regente o triste caso passado, pedindo-lhe
ordenança e
provisão para o futuro. E posto que então fosse
mancebo, por haver n'elle muita discrição,
foi-lhe
respondido com abastante commissão para o acabar como D.
Fernando seu pae: mas Lazaraque-Martin governador d'El-Rei de Fez,
não sómente não deu
logar que o Infante fosse tirado de Fez para Arzilla, ou para algum
outro poder, como por Muley Buquer lhe fôra já
requerido, mas ainda quando depois soube que a vontade d'El-Rei e do
Regente era que todavia Ceuta se desse, e que o conde D. Fernando se
fosse, para que D. Alvaro de Castro com poderes abastantes era vindo,
disse «que era contente se lh'a entregassem primeiro, e que
para segurança dos christãos, elle por Mafamede e
por sua Lei faria juramento, em que como d'ella fosse apoderado, logo
entregaria o Infante D. Fernando, e que esta era segurança
assi abastante e segura para os christãos, que com ella
não
deviam ter d'elle receio nem sospeita alguma»!
Mas porque sua fiança por suas maldades, pouca verdade e
tirania, se houve por duvidosa, não foi
razão acceitar-se seu meio. E como quer que outros muitos
seguros meios e mui razoados lhe fossem apontados, nunca em algum
d'elles quiz condescender. E o que de sua contrariedade e contumacia se
pôde n'este caso verdadeiramente entender, foi que claramente
lhe pesava entregar-se Ceuta aos mouros, e nos modos que sempre teve
para se não acabar pareceu mui claro
[113]
que a causa d'isto era, porque com a
necessidade da guerra de Ceuta ocupava assi os sentidos do povo infiel,
que lhe não dava lugar acabarem de poder entender e remediar
os grandes males de sua tirania. Da qual cousa sendo o Regente
certificado, havendo a negociação por escusada,
mandou a D. Alvaro e aos embaixadores que se viessem ao reino, como
vieram, com fundamento de se consultar algum outro remedio para a
deliberação do Infante. A qual
como quer que o Infante D. Pedro, segundo suas mostranças e
continuas diligencias, pareceu que sobre todalas cousas desejava, nunca
porém sobre ella se apontou e requereu meio por evidente que
fosse, que podesse vir a effeito.
CAPITULO LV
Como
a Rainha D. Lianor se partiu de Cintra para Almeirim
contra vontade d'El-Rei e dos Infantes, e como se El-Rei foi a
Santarem, e do
que se
seguiu
A Rainha D. Lianor era em Cintra, e por
lhe parecer que o Infante D. Pedro tinha alli taes guardas e avisos em
sua casa, que para seus negocios era quasi privada de sua liberdade,
sendo para isto induzida dos que seguiam sua vontade, e principalmente
do Priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; determinou para com mais
licença e mór
segurança enviar e receber recados, assi de Portugal como de
Castella, de se ir como foi para
Almeirim,
junto com Santarem. Do que aos Infantes muito
desaprouve; porque sentiam que taes mudanças não
eram por serviço d'El-Rei nem bem e assessego do reino, e
para haver alguma mais causa e razão de as temperar,
[114]
accordaram que El-Rei
se fosse como foi logo a Santarem; porque estando tão acerca
da côrte
haveria menos disposição e mais receio de
tratarem com ella e a moverem a mais alvoroços.
E d'alli enviou logo o Infante D. Pedro á Rainha o doutor
Vasco Fernandes, pedindo-lhe por mercê que assessegasse o
corpo e o coração no reino, em
que seria servida e acatada como era razão, e não
ouvisse máos conselheiros que a moviam para cousas que eram
muito dano de sua alma, e grande quebra de seu estado, e assi o Infante
em nome d'El-Rei mandou publicamente deffender a alguns fidalgos e
outras pessoas que se logo juntaram com a Rainha, que sob graves penas
a não conselhassem nem induzissem para o contrairo do que
cumpria ao bem, paz e assessego de seus reinos, de que os mais por
serem confiados em suas esperanças vãs, faziam
pouca
estima.
O Infante D. Pedro com quanto sabia que no reino havia pessoas
principaes a elle contrairas, e que sostinham e favoreciam a parte da
Rainha; porém todo seu receio causavam os Infantes
irmãos da Rainha, que a este tempo eram retornados em
Castella, e a governavam juntamente com a pessoa d'El-Rei,
especialmente porque depois de a Rainha ser em Almeirim, foram suas
cartas tomadas em Punhete e trazidas ao Infante, em que pareceu que
apertava muito com seus irmãos que fizessem a estes reinos
mostrança de guerra, e não geralmente a todos;
mas sómente ao Infante, e a aquelles que contradiziam seu
Regimento; porque com o temor d'isso, o povo por ventura revogaria o
Regimento ao Infante, e o dariam a ella; mas o Infante crendo que assi
fosse, e para lhes em alguma maneira melhor resistir e impedir seu
poder, trabalhou de se liar com o Condestabre D. Alvaro de Luna, e com
o Mestre d'Alcantara D. Goterre,
[115]
que eram ambos liados contrairos
aos Infantes, e tinham o favor d'El-Rei e muito poder em Castella.
CAPITULO LVI
Liança do Infante D. Pedro com o
Condestabre e Mestre d'Alcantara de Castella, contra os Infantes
d'Aragão, e das ajudas que lhe deu
E para melhor entendimento d'este passo é de saber, que no
tempo que El-Rei D. João o segundo reinava em Castella, era
Condestabre este D. Alvaro de Luna, homem abastado de saber e malicia,
com pouco temor de Deus. O qual se soube assi haver, que em todalas
cousas ora redundassem em seu acrecentamento, ora em
destruição e dano d'outros, El-Rei
satisfazia sempre a sua
vontade. E porque os Infantes filhos d'El-Rei D. Fernando
d'Aragão, que então prosperavam em Castella por
sua autoridade e valor, contrariavam as execuções
de seu desordenado e máo desejo, por elle ter mais soltura
para obrar o que queria, assi trabalhou com El-Rei que os desamou
grandemente e lançou fóra do
reino. E porque o Condestabre depois fez fazer individamente algumas
cruezas e desterros contra muitos grandes do reino, e parecia que
El-Rei vivia em sua sobjeição, era de todos mui
desamado, pelo qual alguns grandes ordenaram e trataram que os Infantes
retornassem outra vez como tornaram em Castella, e que o estado e
pessoa d'El-Rei se governasse por elles, e o Condestabre fosse como foi
fóra da
côrte. Outrosi porque o Mestre d'Alcantara D. Goterre por
engano tomara a villa d'Alcantara, e por força o Mestrado a
D. João Souto Maior seu tio, que era
[116]
Mestre e feitura dos Infantes, e prendeu
n'ella o Infante D. Pedro, irmão dos Infantes. Era
pôr isto
em grande odio a elles, que com suas forças procuravam em
todo sua destruição, os quaes Condestabre e
Mestre d'Alcantara, por ambos serem tocados de uma necessidade e temor,
ambos entre si e suas terras e gentes tomaram uma liança e
remedio para o resistir como o fazíam, e sentindo assi isto
o Infante D. Pedro, por enfraquentar o poder dos Infantes, enviou por
seus messegeiros secretos offerecer contra elles o favor e ajudas
d'estes reinos ao Condestabre e Mestre. O que elles mui alegremente
receberam; porque conheceram que o Infante não tanto por
aproveitar a elles, como por a mesma sua necessidade se movia a isso.
Pelo qual muitas vezes lhe requereram depois ajudas e
soccorros contra os Infantes, e elle por accordo e conselho dos
principaes d'estes reinos lh'o deu algumas vezes assaz poderosamente,
havendo primeiro consentimento e autoridade d'El-Rei de Castella, para
sem quebrantamento das pazes que tinham o poder direitamente fazer.
Porque com quanto El-Rei era em poder e governança dos
Infantes
d'Aragão, o Condestabre por suas astucias e maneiras, sempre
trazia em sua côrte e camara taes pessoas, que secretamente
requeriam a El-Rei todo o que compria por seu favor e amparo. Ao que
El-Rei pela grande affeição que lhe tinha,
folgava muito de
satisfazer, e enviou para isso ao Infante D. Pedro mui autenticas
aquellas provisões que sentiu ser necessarias, por cuja
virtude o Infante em favor do Mestre d'Alcantara, e contra a
tenção do
Infante D. Anrique Mestre de Santiago,
enviou a Castella por vezes e tempos, muita gente abastecer Magazella e
Bemquerença, fortalezas do Mestrado d'Alcantara, e assi
tomar a villa de Salanqua, que estava pelo Infante D. Anrique, e por
[117]
outra vez enviou outrosi
muita gente d'estes reinos a Andaluzia, em ajuda e soccorro do
Condestabre, e em desfavor e dano do mesmo Infante D. Anrique, e lhe
tomaram Carmona com seu grande destroço.
E outra vez a requerimento d'El-Rei D. João, quando cercou
os Infantes em Olmedo, lhe enviou o Infante D. Pedro em sua ajuda muita
e mui nobre gente d'estes reinos, e por capitão principal
seu filho primogenito o Senhor D. Pedro, que depois foi e morreu
intitulado Rei d'Aragão.
E segundo a universal opinião dos que n'este caso
sãmente entenderam, se creu que segundo os Infantes eram
amados em Castella, se não tomaram assi claramente o Infante
D. Pedro por contrairo, e não se pozeram em
mostranças de o guerrear e destruir, como mostraram, e o
Infante não impedira seu poder, que seu valor e prosperidade
d'elles não descahira em Castella como descahiu, nem a
Rainha D. Lianor sua irmã, enganada de suas promessas e
esperanças
impossiveis, não acabara sua vida em desterro com tanta
necessidade e tristeza, e tão individa a suas bondades e
estado, como ao diante se dirá.
CAPITULO LVII
Conselhos que o Infante D. Pedro teve sobre o
assessego e segurança d'esta cousas, e como a Rainha
fingidamente se concordou com elle
Mas o Infante D.
Pedro sentindo com estas mudanças o reino
diviso, teve sobr'isso conselho, no qual se accordou para atalhar
ás praticas que a Rainha e os outros fidalgos poderiam ter
com o conde de Barcellos, que da divisão era
cabeça
[118]
principal,
e para qualquer outra segurança, que o Infante D. Anrique se
fosse, como foi á cidade de Vizeu; porque com seu receio os
recados não passassem, e que para o dano que a estes reinos
poderia vir de Castella por meio dos Infantes, enviassem como enviaram
uma pessoa secreta a El-Rei, que o não consentisse, o que
muito aproveitou.
E o cargo da guarda e assessego da Rainha ficou ao Infante D. Pedro,
que pelas estreitezas que n'isso poz, os que eram com ella em Almeirim,
que com novo alvoroço a vieram servir, se acharam para suas
honras e fazendas de todo atalhados, e mui enganados nas
esperanças de supetos acrecentamentos, que cada um logo para
si maginava. Pelo qual com necessidade e razões assaz
evidentes pediam á Rainha que emquanto as cousas
não se despunham como para seu recurso cumpria, tratasse com
o Infante D. Pedro alguma amizade e fosse fingida, com que em tanto
ella e elles se remedeassem e provessem a suas vidas e fazendas, e a
podessem melhor ao diante servir.
A Rainha aprovou este conselho, e para o cumprir mandou por o ministro
da Ordem de S. Francisco, e por Ruy Galvão, secretario,
tratar amizade com o Infante, mostrando fingidamente que seu desejo era
já poer em assessego sua alma, e esquecer-se de todo o
passado.
O Infante d'este recado crendo ser verdadeiro, foi mui alegre, e o
acceitou com palavras de grande cortesia e contentamento, e deu por
isso muitas graças a Deus. E da concordia que entre si por
então tomaram passáram seus assignados, que o
Infante logo mandou divulgar pelo reino, que pelo haverem por bem e
geral assessego, faziam por isso geralmente a Deus muitos signaes de
devoção, e ao mundo de grande alegria,
[119]
e assi o notificou a Castella. E
confiando n'esta concordia, que havia por certa e não
fingida, mandou tirar as guardas dos portos para que livremente
podessem á Rainha ir e vir messegeiros e servidores d'onde
quizessem sem pena nem receio.
CAPITULO LVIII
Como o conde de Barcellos desdisse muito á
Rainha esta concordia com o Infante, em caso que não fosse
verdadeira
Foi o conde de
Barcellos d'esta concordia por via geral certificado,
mas não se alvoroçou nada; porque da secreta
dessimulação com que se fizera,
foi logo pela Rainha avisado: porém elle temendo-se da
prudencia e saber do Infante D. Pedro, e não segurando
n'isso da constancia da Rainha, accordou com os fidalgos da sua parte
de lhe notificarem o erro e desfavor que para seus feitos em tal
concordia fizera, em caso que fosse fingida, de que se seguira os que
desejavam seu serviço, vendo-a em poder do Regente,
não
ousarem de a servir, e que para isso, porque mais em breve se
executasse o que desejava, ella mui secretamente se devia vir ao Crato,
onde tinha mui certo o Priol com suas fortalezas a seu
serviço. E que d'alli poderia seguramente passar o Tejo e
entrar na Beira, onde o Marechal por ser comarcão, com
outros fidalgos e gentes se iriam para ella, e que o conde com todolos
outros fidalgos outrosi lhe acudiriam e a recolheriam em suas terras,
que logo começaria de reger, e que da
execução e obra d'esta empresa os
Infantes seus irmãos, e assi todolos outros seus servidores
tomariam mais esforço e desejo de a proseguir.
[120]
Este recado foi assi secretamente trazido á Rainha, que o
Regente não houve d'elle algum sentimento, e ella com os de
seu conselho a quem o mostrou e louvou, e houve por bom, o fez logo
saber ao Priol do Crato. O qual como era homem de muitos dias e grande
experiencia e siso, houve o feito por sem fundamento e muito duvidoso.
E assi lhe respondeu em muitas e boas palavras, e em fim que se de todo
em todo sua vontade quizesse forçar as armadas de
tão vivas razões, como lhe mandou para o ella
não
cometer, que elle estava prestes de a receber onde ella quizesse, e
para isso lhe offerecia a perdição de
sua vida, honra, e fazenda, que elle não podia escusar.
CAPITULO LIX
Como o Priol do Crato consentiu em receber a Rainha em suas
fortalezas
Esta resposta do
Priol a que a Rainha com razão dava grande
credito, suspendeu e amansou muito seu alvoroço; e
porém de todo avisou logo ao conde de Barcellos, o qual por
meio d'Aires Gonçalves seu secretario, acabou com o Priol
que pospostos seus pejos todavia recebesse a Rainha. Desfazendo-lhe os
inconvenientes que apontara, com promessas e esperanças, e
seguranças falsas com que lhe cegaram o verdadeiro juizo,
para o que ajudaram muito dois filhos do Priol, homens mancebos, que
sostinham a parte e tenção do conde, que lhes
mostrava abrirem-se caminhos de suas honras, e grandes acrecentamentos.
O Priol do Crato assi como determinou de receber a Rainha em suas
terras, assi ordenou
[121]
logo d'abastecer, o mais encobertamente que pôde suas
fortalezas, e a Rainha mandou a todoslos seus, e assi a outros d'El-Rei
em que tinha confiança, que se percebessem de cavallos e
d'outras cousas necessarias para caminho, e a verdade d'este fundamento
era para esta sua partida; como quer que ella fingidamente dava a
entender que os percebia para a acompanharem até o mosteiro
da Batalha, onde queria fazer o saimento a El-Rei seu marido, para que
dessimuladamente mandou lá fazer algum percebimento.
D'estas mudanças foi o Regente algum tanto sabedor; mas
confiando na concordia que entre elles era feita, e por não
mostrar que com achaques a rompia, não quiz sobre uma cousa
nem outra fazer novas
alterações; e porém elle
não era em certo sabedor que a Rainha se queria partir para
o Crato.
CAPITULO LX
Como o conde de Barcellos fez liança com os
Infantes d'Aragão, e como foi por isso muito
prasmado
E o conde de Barcellos sentindo como as cousas se chegavam a
rompimento, sendo duvidoso da fim que haveria, acordou de se liar como
liou com El-Rei de Navarra e Infante D. Anrique, irmãos da
Rainha, concordando entre si suas capitulações
de serem amigos d'amigos, e imigos de imigos, e com ajuda certa de
gentes d'armas, que cada uns dariam aos outros, quando a suas
necessidades e afrontas cumprisse.
D'estas lianças foi logo o reino todo sabedor e mui
[122]
espantado, especialmente
mostraram d'isso grande sentimento o Infante D. João seu
genro, e o Infante D. Anrique ambos seus irmãos. E o Infante
D. João
lh'o enviou muito estranhar por Vasco Gil seu confessor, que depois foi
Bispo d'Evora, e o Infante D. Anrique por Fernão Lopez
d'Azevedo, Commendador Mór de Christo. Aos quaes o conde
respondeu, que não desistiria do que tinha feito, e que
sabia bem o que lhe cumpria. E assi o disse ao conde d'Arrayollos seu
filho, que a elle sobr'isso foi em pessoa. Mas o conde d'Ourem tambem
seu filho, que a este tempo era mui á banda do Infante D.
Pedro, não quiz
n'este caso entender, não leixando de o haver por feio, e
mostrando que se os feitos viessem a rompimento, que elle seria por
serviço do Regente contra seu padre; mas o que das maneiras
d'ambos, pae e filho poderam os prudentes conjeiturar e entender,
sempre pareceu que no
começo
dos movimentos, entre elles se concordara o pae
ficar á parte da Rainha, e o filho á do Infante
D. Pedro; porque a qualquer d'estas
parcealidades a que a fortuna boa se inclinasse, cada um ter n'ella um
principal que remedeasse o outro, e que em tanto cada um tirasse da
banda que servisse todo o que para sua honra e proveito podesse; porque
em fim, toda havia de ficar em uma só herança.
Nem
se creu que o conde de Barcellos inventara estas lianças e
pendores, salvo por meter o reino em necessidade de sua pessoa e casa,
e lh'a haverem de compoer com villas e terras como fizeram; porque da
Rainha não havia tão urgentes razões
que o a isso
obrigassem, e dos Infantes d'Aragão muito menos. A Rainha
ante que de sua pessoa fizesse alguma mudança, mandou a
Castella secretamente, por Mossem Gabriel de Lourenço, seu
capellão mór, todalas joias d'ouro, prata e
pedraria que tinha, que eram assaz muitas e boas;
[123]
porque álem das que trouxe
d'Aragão, houve com o movel d'El-Rei seu marido todas as que
ficaram por seu fallecimento, e foram postas no
Castello
d'Albuquerque, que era Villa do Infante D. Anrique de Castella. D'onde
lhe vieram muitas a Almeirim, que ella secretamente mandou pedir para
sua partida.
CAPITULO LXI
Como o Infante D. Anrique se viu com o conde de Barcellos seu
irmão para o concordar com o Infante D. Pedro
O Infante D. Anrique de Portugal para atalhar os azos de mais
desaccordos e uniões, se foi a Vizeu como disse; e porque
sentiu que no assessego do conde de Barcellos, segurava o assessego do
reino e da Rainha, viu-se com elle e com os de sua valia no mosteiro de
S. João de Tarouca, junto com Lamego, onde sobre muitas
praticas e altercações
que todos entre si houveram, nunca o Infante pôde acabar que
o conde se decesse de sua opinião, nem pôde nunca
por elle saber algum evidente fundamento d'agravo, ou contentamento
descuberto que para isso tivesse; porque todalas que dava eram
razões tão fracas, que por si mesmas se
desfaziam, e em fim o Infante se despediu d'elle com algum
temporizamento, até se vêr com os Infantes seus
irmãos.
Mas por mais enfraquentar seu partido, tirou logo de sua
liança o marechal, e Martin Vaz da Cunha, e João
de Gouvêa,
que eram fidalgos da Beira, e os levou comsigo.
[124]
CAPITULO LXII
De
como veiu a El-Rei embaixada de Castella, e como foi
recebida
Ao mez d'Outubro d'este anno de mil e quatro centos e quarenta, estando
ainda El-Rei em Santarem e a Rainha em Almeirim, lhe veiu d'El-Rei de
Castella uma grande embaixada, em que vieram por pessoas principaes D.
Affonso, filho bastardo d'El-Rei de Navarra, que depois morreu duque de
Villa Formosa, e um Bispo de Coria, pessoa de muita autoridade, e
outros letrados, e por esta embaixada ser a primeira que veiu a El-Rei,
foi da côrte muito bem recebida, e d'El-Rei e dos Infantes
com muitas grandezas cerimoniada, e a sustancia do que a El-Rei e ao
Regente, e assi aos Infantes e conselho propozeram, se fundou em duas
cousas. Uma em se queixarem de danos e tomadias que os portuguezes
fizeram por mar e por terra aos naturaes de Castella, e a outra mais
principal acerca das cousas da Rainha e
restituição do Regimento em que sobre todo mais
insistiram, e tambem pediam a El-Rei em nome da Rainha D. Lianor, com
que já tinha fallado, que a leixasse ir para Castella,
mostrando que não queria estar no reino para que tantos
males se aparelhavam; porque ao tempo que esta embaixada sahiu da
côrte de Castella, os Infantes d'Aragão ainda
regiam e governavam a pessoa d'El-Rei; e por isso se fez lá,
e propoz cá com as gravezas,
protestações e cautellas, que elles em nome
d'El-Rei ordenaram. Affigurando que por ventura o povo de Portugal, com
receio de futuras guerras que elles tocavam, desistiria da parte
[125]
do Infante
ácêrca do Regimento, e seguiria a da
Rainha.
E para os embaixadores fazerem mais geral esta impressão,
pediram ao Regente logar e licença
para esta mesma embaixada irem dar pelas cidades e villas, e assi aos
principaes do reino; mas o Regente por ser cousa nova e
então desacostumada o não
outorgou nem
consentiu, e se
escusou com a
semrazão d'elles, e com outras razões assaz
justas e honestas; e emfim o Regente para lhe responder, tomou alguns
dias d'espaço, dentro dos quaes a todalas pessoas principaes
do reino que não eram presentes, enviou pedir conselho por
escripto, com o trellado da embaixada. E esta ordenança
guardou sempre o Infante emquanto regeu, de nunca em cousas sustanciaes
tomar conclusão sem conselho escripto dos presentes e
ausentes, e depois que houve a resposta de todos, e se conformou com o
que melhor pareceu, respondeu aos embaixadores:
«Quanto ás tomadias, que para
justificação d'ellas se pozessem juizes de uma
parte e da outra nos estremos danificados. E quanto ás
cousas que tocavam á Rainha, que El-Rei enviaria seus
embaixadores a El-Rei de Castella com tal resposta com que devesse ser
satisfeito.»
E sobr'isso foi enviado Lopo Affonso Secretario, com fundamento de
dilatar e temporisar o negocio; porque o Regente soube secretamente por
o Bispo de Coria, embaixador, que esta embaixada em que elle vinha era
de cumprimento para a Rainha e para os Infantes d'Aragão,
mas não da vontade d'El-Rei de
Castella, a quem parecia bem a maneira que no Regimento do reino se
tivera, e assi não leixarem á
disposição da Rainha a
criação d'El-Rei, pois era mulher; porque elle
mesmo Rei sentia em si quanto mal
[126]
recebera por em semelhante caso ser
criado em poder da Rainha D. Caterina sua madre, e que o contrairo
não se esperava de taes Principes como eram os filhos
d'El-Rei D. João.
E á Rainha enviou o Regente em nome d'El-Rei pedir com
palavras de muito acatamento, e com razões que faziam assaz
por sua honra, honestidade e proveito, que houvesse por bem
não consentir que de seus reinos se fosse para os estranhos.
Mas isto não lhe assessegou a vontade que tinha para se ir;
porque assi pela determinação passada da partida,
como pelo novo alvoroço que d'alguns dos embaixadores para
isso recebeu, determinou muito mais em si de o fazer.
Os embaixadores não se houveram d'esta resposta do Regente
por satisfeitos nem despedidos, antes disseram que traziam em mandado
de seu Rei que sem determinada resposta de todalas cousas, sem outro
seu especial mandado não se partissem, e a carta em que isto
se continha d'hi a dois dias a mandaram mostrar ao Regente, o qual como
prudente consirou que taes cartas e instrucções,
tão sem
razão e vindas tão brevemente se compilavam em
Almeirim, cá poderiam trazer de Castella signaes d'El-Rei em
branco e sêllos de fóra, sobre que poeriam o que
quizessem, como fizeram. E para d'isto ser certificado, avisou d'isso a
gram pressa o Condestabre D. Alvaro de Luna, o qual era fóra
da côrte; e porém por
seus meios secretos, que com El-Rei trazia, soube logo d'elle que nunca
tal mandára, de que logo certificou o Regente por carta da
propria mão d'El-Rei: pelo qual o Regente n'esta
confiança determinou com alguma mais graveza despedir como
despediu os embaixadores, e lhes mandou «que pois eram
respondidos, que se fossem embora dos reinos e côrte d'El-Rei
seu Senhor.» Mas
[127]
elles não se
despacharam assi brevemente, que ainda não estivessem em
Santarem, ao tempo que a Rainha se partiu para o Crato, como ao diante
se dirá.
CAPITULO LXIII
Como o Infante D. Anrique procurou de trazer o Priol do Crato
a serviço e prazer do Infante D. Pedro, e do que n'isso
passou
O Infante D. Anrique de Portugal, sentindo que um dos principaes
esforços que a Rainha tomava para seu movimento, era o Priol
do Crato, por atalhar a isso virtuosamente como em todo era seu
costume, por seu messegeiro o enviou muito reprender d'isso, e da
opinião que tomara contra o Infante D. Pedro, e lhe mandou
que logo em pessoa se viesse desculpar ao Regente, e d'hi em diante o
servisse lealmente como a elle mesmo.
O Priol foi d'este recado mui triste por duas causas a elle mui
contrairas, uma por viver com o Infante D. Anrique, a quem havia por
grande caso e perigo não obedecer inteiramente. E a outra
fallecer á
Rainha e ao conde de Barcellos, a quem se offerecera já com
suas fortalezas; e finalmente deliberou de não ir ao Infante
D. Pedro por si, escusando-se por velhice e doença, e de se
mandar desculpar fingidamente por seu filho Fernão de Goes,
e todavia de cumprir com a Rainha o que lhe tinha promettido.
Veiu Fernão de Goes a Santarem, e offereceu a embaixada
falsa de seu pae por sua crença ao Regente, mostrando
quere-lo desculpar do passado, offerecendo-se em todo o que estava por
vir ao que elle mandasse,
[128]
e pediu logo ao Regente licença para ir fallar
á Rainha; porque lhe queria dizer o em que ficava com elle,
e assi lhe pedir que d'hi em diante nas cousas que fossem contra
vontade e serviço do Infante, ella não se
quizesse servir do Priol seu pae, nem d'elles seus filhos, salvo nas
cousas em que os Infantes a servissem. Mas isto em seu
coração e
proposito era muito em contrairo; porque como foi ante a Rainha,
concertou com ella sem differença o dia e hora de sua
partida, que havia de ser logo em bespora de todolos Santos
á noite. E que elle e seu irmão
Pedro de Goes viriam por ella, com maior resguardo e com a mais gente
que podessem.
E com isto se partiu, e o notificou ao Priol, que com muita diligencia
e maior dissimulação fez
logo prestes a mais gente que pôde. Dando publicamente a
entender por não fazer na terra suspeita nem
alvoroço, que já eram concertados com o Regente,
e que para o mais obrigarem o queriam ir honradamente servir, de que
toda a terra mostrou ser mui alegre.
CAPITULO LXIV
De como se a Rainha aconselhou sobre a ida para o Crato, e
como emfim posposto o conselho se partiu
E com quanto a Rainha no cuidado d'estes cuidados temporaes,
tinha para este mundo assás que entender; porém
porque era Senhora muito devota e de mui religiosa vida, não
se partiam de sua alma para o outro outros espirituaes, que a
fizeram mandar ao mosteiro de Bemfica da Ordem de S. Domingos, por um
Frei João de Moura, seu confessor,
[129]
padre de
grandes dias e doutrina, e assi de mui santa vida, para com elle em
confissão consultar esta secreta mudança. E
depois d'ella lhe dizer com largas palavras sua
determinação, elle lh'a
contrariou com outras mais de tanta verdade e prudencia, que pareceu
dizer-lh'as como por espirito divino.
E certo assi foi, porque ella em seu desterro, desamparo e
desaventuras, que pelo não crêr depois padeceu,
sentiu bem que o padre a aconselhava mais que homem, e como de mandado
de Deus, e d'isso ella ao diante se acusava muitas vezes.
E como quer que Frei João não pôde em
sua presença afrouxar a tenção da
Rainha, porém
porque ella era de bom siso e mui são proposito, fizeram
depois suas palavras no coração d'ella tamanha
casa, que
assentava já em sua vontade não se partir,
pesando-lhe muito da palavra que dera aos filhos do Priol. Os quaes a
noite de bespora de todolos Santos que tinham posto, foram com suas
gentes acerca de Almeirim, e por não serem sentidos leixaram
toda a gente ao Paul da Atella, e elles ambos, cada um com seu
escudeiro e seu page, chegaram aos paços já de
noite, com cuja chegada e vista a Rainha recebeu muita e descuberta
tristeza, e lh'a confessou logo. Do que elles ficaram mui torvados,
porque a conheceram já mudada de todo, e sobre isso houveram
entre si muitos debates, em que a Rainha finalmente foi dos agravos
d'elles vencida, e quiz contra sua vontade satisfazer ao que tinha
prometido.
E d'este segredo era em sua casa sómente sabedor Diogo
Gonçalves Lobo, seu vedor, que com muita trigança
deu aviamento a todo o que cumpria para sua partida.
A Rainha depois de concertar com elles o feito como seria,
ás nove horas da noite se tornou com grande
[130]
assessego e
dessimulação a seu estrado, e hi
deu boas noites sem algum alvoroço, e ás dez
horas se
sahiu por uma porta secreta contra a coutada, e com ella a Infante D.
Joanna, de mama, e sua ama que a criava, e Diogo Gonçalves,
e João Vaz
Marreca, seu escrivão da puridade, e Maria Dias sua
covilheira, e Briatyz Corelho, donzela Aragoesa. E estas pessoas a
acompanharam até o Paul, onde ficara a gente, com que logo
seguiram seu caminho, e não muito depressa por lhes
não aturarem as bestas em que iam, e ao outro dia
ás dez horas chegaram sem decer á Ponte do Sor. E
hi comeram e repousaram um pouco. E em anoitecendo foram no Crato, onde
o Priol já a estava esperando, e a recebeu com grande
alegria, dando-lhe as chaves de todas as fortalezas, com
razões de grande humildade e muita obediencia. E ella o
agasalhou com palavras e mostranças de grande
aguardecimento, e bem conformes a sua necessidade.
CAPITULO LXV
Do que fizeram os da Rainha, depois que souberam de sua
partida
A gente da Rainha que ficou em Almeirim, como passou meia noite
sentiram grande rumor pelo lugar, e ainda com claras vozes dobradas sem
certo autor, que diziam.
«Fugir, fugir do Infante D. Pedro, que vos vem
prender».
De que cada um não guardando a certa ordem em suas
vestiduras, com grande pressa se soccorriam á Rainha como a
casa da vida. E como o pranto de suas
[131]
criadas e creados lhes davam certidão de sua partida e
ausencia, assi cada um desamparado de siso e d'accordo, se iam chorando
e mal dizendo a suas vidas por essas charnecas.
E como foi de dia, os que foram certos do caminho que a Rainha levava e
poderam, a seguiram. E entre os mais principaes foram D. Affonso,
senhor de Cascaes, já velho, e sua mulher D. Maria de
Vasconcellos, e D. Fernando seu filho. Como quer que D. Affonso
forçado da mulher e do filho se partiu; porque
abraçando-se com a terra, e com muitas lagrimas dizia:
«Leixai-me comer a esta terra que me criou, e a que
não fui nem sou tredor. Não me desterreis
este corpo sem culpa, nem lhe deis sepultura em terras
alheias».
Mas em fim o levaram.
CAPITULO LXVI
De
como o Regente foi avisado da secreta partida da Rainha, e
do que logo sobr'isso se fez
E o Regente pouco mais de meia noite foi avisado da partida da Rainha
sumariamente, por Gil Pirez de Resende, contador de Santarem, sem lhe
saber dizer o caminho que fizera, nem se levara consigo as Infantes, e
a poucas horas tornou o Infante a ser certificado do caminho da Rainha,
e como levava consigo a Infante D. Joana, e leixava doente a Infante D.
Lianor, que depois foi Imperatriz, e d'esta mudança mostrou
o Regente grande tristeza e sentimento, ainda que alguns diziam que era
fingida; e
[132]
porém
mandou logo a Martim Affonso de Miranda com notairos, a escrever e
segurar todo o que se achasse em Almeirim. E o que se conhecesse por da
Rainha, que era já sómente roupa de camas e
pannos, mandou entregar aos officiaes d'El-Rei, e as outras cousas dos
seus se entregaram por recadação a um Martim
d'Almeida, cavalleiro de Santarem. E foi logo a Almeirim pela Infante
D. Lianor, que entregou a D. Guiomar de Castro, que foi sua aia
até o tempo que d'estes reinos partiu para Allemanha.
E assi mandou logo o Regente em nome d'El-Rei caminho do Crato Diogo
Fernandes d'Almeida, que era védor da fazenda, pedindo
á Rainha, sua madre
com mui brandas razões e mui fortes seguranças
que se tornasse, e que elle e os Infantes iriam por ella, e se o
não quizesse fazer que ao menos entregasse a Infante D.
Joana. E que se isto tudo denegasse, que presentes notairos que consigo
levava lhe fizesse em nome d'El-Rei protestações
a não ser
obrigado elle, nem o reino dar-lhe dote nem arras, nem outra cousa
alguma.
Diogo Fernandes aceitou a embaixada; mas segundo o que d'elle se
suspeitou, elle a não cumpriu como devera; porque chegou
sómente a Alter do Chão, uma légua do
Crato, e d'alli se tornou para
Santarem, sem obrar nada do que lhe mandáram; dando por
razão que alli fôra por maneira
informado da tenção da Rainha para não
fazer
nada do que lhe ia requerer, que houvera por escusado ir mais adiante;
mas a geral opinião foi que por ser casado com uma filha do
Priol do Crato, elle era sabedor de todolos movimento passados, e que
folgou de não fazer por si cousa em que a Rainha recebesse
nojo nem desserviço contra seu sogro.
O Regente avisou logo d'este caso os Infantes seus
[133]
irmãos, e assi os grandes,
e cidades e villas
principaes do reino,
requerendo-os e
percebendo-os com seus corpos e armas, para serviço d'El-Rei
e
defensão do reino, crendo que a Rainha não faria
de si tal movimento sem muito esforço e atrevimento de
Portugal e de Castella.
E no provimento d'estas cartas e avisos, poz o Regente tanta
diligencia, que em dia de todolos Santos ante das missas foram todas
feitas e enviadas, e assi uma sua e de sua mão á
Rainha, que não
aproveitou, em que lhe pediu muito por mercê que se tornasse,
prometendo-lhe que com sua tornada elle faria quanto ella mandasse.
Os embaixadores de Castella eram ainda a este tempo em Santarem como
disse; de que o Regente por seu descargo e limpeza houve prazer; porque
sabia que a elles era mui claro quanto elle procurava por seu assessego
d'ella, e os mandou logo chamar, e em saindo para a missa lhes fez com
muita autoridade uma falla de sua desculpa acerca da partida da Rainha,
rogando-lhes que pois se fôra tão sem
conselho e tanto contra o que cumpria a seu estado, e sem
licença d'El-Rei seu filho, fizessem com ella que ante de
sair do reino se tornasse á côrte, com grandes
prometimentos de elle em seus feitos fazer tudo o em que ella recebesse
contentamento, prazer e serviço: e d'isto para seu resguardo
pediu estromentos.
N'este dia e nos outros logo seguintes, trouxeram ao Regente presos
muitos dos que d'Almeirim se iam para a Rainha, e os que achava serem
seus moradores, logo os mandava todos soltar com liberdade e
licença segura de a irem servir se quizessem, salvo um
João Paez Cantor, e Diogo de Pedrosa, que eram casados com
criadas da Rainha, aos quaes por haver n'elles alguma sospeita, que
estando o Regente nos
[134]
paços de Santarem tratavam de o matarem á
bésta, foi dado tormento d'açoutes nos
pés, e por
não confessarem culpa que os obrigasse a outra maior pena,
os mandou soltar.
O Regente por segurar as comarcas do reino em que tinha alguma
suspeita, encomendou a da Beira ao Infante D. Anrique, e a d'entre Tejo
e Odiana ao Infante D. João. E mandou á cidade do
Porto Ayres Gomez da Silva, para com a cidade fazer defensa e
resistencia a quaesquer rebates que n'aquella comarca sobreviessem. E
assim mandou que aos do Crato não fosse em todo o reino dado
mantimento, mais do que cumprisse á Rainha, e a vinte
pessoas que a servissem, de que se ella muito aggravou.
Do que a Rainha fez depois de ser no
Crato
A Rainha como foi no Crato, logo d'hi enviou por todo o reino cartas,
que já d'Almeirim levava feitas, em que sustancialmente se
escusava de sua mudança, e acusava por ella o Regente e suas
asperezas, encomendando e requerendo a todos com sombras
d'ameaças de guerras e males do reino, que lhe tornassem o
Regimento e o tirassem ao Infante, contra quem apontava cousas em que
parecia não reger como devia. E porque o reino todo,
especialmente o povo, eram inclinados á parte do Infante,
foram os que receberam suas cartas tão indinados contra a
Rainha, e tratavam tão mal os primeiros messegeiros d'ellas,
que os segundos temendo taes escarmentos, haviam por melhor es
A Rainha como foi no Crato, logo d'hi enviou por todo o reino cartas,
que já d'Almeirim levava feitas, em que sustancialmente se
escusava de sua mudança, e acusava por ella o Regente e suas
asperezas, encomendando e requerendo a todos com sombras
d'ameaças de guerras e males do reino, que lhe tornassem o
Regimento e o tirassem ao Infante, contra quem apontava cousas em que
parecia não reger como devia. E porque o reino todo,
especialmente o povo, eram inclinados á parte do Infante,
foram os que receberam suas cartas tão indinados contra a
Rainha, e tratavam tão mal os primeiros messegeiros d'ellas,
que os segundos temendo taes escarmentos, haviam por melhor escondel-as
e não apresental-as.
[135]
E o Infante D. Pedro d'estas cartas da Rainha que viu, houve muito
nojo, e mostrou grande sentimento; porque infamavam em alguns passos
sua conciencia e autoridade, e por modo de desculpa e limpeza sua,
escreveu a Lisboa como a cabeça do reino, as
forças de suas culpas que se n'ellas continham. Escusando-se
de cada uma particularmente, com a verdade de sua innocencia.
CAPITULO LXVIII
Como falleciam os mantimentos á Rainha e ao
Priol do Crato
E o Priol do Crato não se proveu de tantos mantimentos como
lhe eram para tal caso necessarios, enganado nas esperanças
do conde de Barcellos, e dos outros fidalgos da Beira, que prometeram
tanto que a Rainha fosse em suas terras, que elles em pessoa com gentes
e provimentos em abastança, seriam logo com ella, ao que
nenhum d'elles quiz nem pôde satisfazer, como quer que para
isso fossem da Rainha e do Priol mui afincadamente requeridos, e por
este caso os mantimentos recolhidos lhes começaram de
fallecer, especialmente carnes e pescados, e para os haver, pela
estreita guarda e defesa que para isso havia não tinha
já esperança nem remedio.
Pelo qual conveiu á Rainha com palavras assaz piedozas pedir
ao Infante D. João, que estava em Extremoz, que alevantasse
a defesa e lhe leixasse ir mantimentos dos logares de redor. Mas o
Infante escusando-se de o fazer lhe respondeu acusando com muita
graveza e temperança seu movimento. Em especial de poer sua
honra, seu estado, e sua honestidade em poder do Priol e de
[136]
seus filhos, que não tinham
no reino fama de muito honestos, pedindo-lhe em fim que para escusar
semelhantes necessidades e outras maiores, se quizesse tornar, do que
ella não curou.
CAPITULO LXIX
De uma embaixada d'El-Rei d'Aragão e de
Napoles que veiu ao Infante D. Pedro sobre os feitos da Rainha
Estando a Rainha no
Crato, chegou a Santarem ao Infante D. Pedro com
embaixada d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Aragão e de Napoles,
sobre cousas da Rainha sua irmã, um Bispo de Segorve, pessoa
em que havia muita doutrina e grande auctoridade. E apontou alguns
meios de concordia entre ambos, o que o Regente por conselho que sobre
isso teve, respondeu:
«Que para se tomar n'elles conclusão boa e
honesta, como esperava em Deus que tomaria, era necessario a Rainha ser
presente, ou ao menos em algum logar de suas terras, com tal repouso e
assessego que não parecesse fugida. E para isso que elle
antes de tudo se fosse á Rainha, e como com ella em cada uma
d'estas maneiras acabasse sua tornada, se tornasse a elle. E que sobre
isso se ajuntariam com elle os Infantes seus irmãos, e os do
conselho d'El-Rei nosso Senhor. E praticariam
ácêrca dos meios apontados,
e se concordariam por seu meio no que mais honesto e de
razão parecesse. E que se a Rainha não
quizesse tornar, que elle d'hi seguisse embora sua viagem e escusasse
sua vinda mais a elle.»
[137]
Ao Bispo pareceu bem o motivo do Regente, e com isso se foi
á Rainha; a qual porque não approvou
nenhuma das cousas que lhe aconselhava, se despediu d'ella e se partiu
para seu Rei sem conclusão certa do porque viera.
CAPITULO LXX
De
como o Regente determinou pôr
cêrco ao Crato e ás outras fortalezas do Priol, e
a que pessoas os cêrcos foram encommendados
O Infante D. Pedro
por recados e cartas da Rainha e do Priol que foram
tomados e trazidos a elle dos portos que se guardavam, foi certificado
como procuravam metter gentes d'armas de Castella em Portugal, e
bastecer as fortalezas que sustinham sua voz com armas e mantimentos de
fóra, e assi se fazerem alguns alevantamentos no reino
contrairos a seu Regimento, para que soube certo que em uma parte e na
outra se faziam trigosos percebimentos, e consirando camanho dano se
seguiria a dar-se logar a isso, e não se atalhar, determinou
com accôrdo dos Infantes, com quanto era entrada de inverno,
de logo se poer cêrco ao Crato e ás outras
fortalezas do Priol, e cobra-las por força ou partido, como
mais fôsse possivel. Para que logo mandou perceber o reino,
que a isso não foi negligente.
E encommendou-se o cerco e tomada do castelo de Beluer a Lopo
d'Almeida, que depois foi por
El-Rei feito primeiro conde d'Abrantes, e assi que tomasse e segurasse
os celleiros das terras chãs do Priol. E assi se encommendou
o cerco da Amieira ao capitão
[138]
Alvaro Vaz d'Almada,
conde d'Abranches, ordenando a cada um as gentes e apparelhos que
cumpriam. E foi accordado que o Regente e o Infante D. João,
e condes d'Ourem e d'Arrayollos fossem sobre o Crato. Mandou o Regente
outrosi em nome d'El-Rei fazer e pôr editos publicos, com
pena de morte e perdimento de bens, a todos aquelles que estivessem no
Crato e nas fortalezas do Priol, se dentro de dez dias não
se sahissem, salvo as vinte pessoas á Rainha
ordenadas, e assi com promessa de perdão de todos os casos
aos que a El-Rei logo se viessem. Exceptuando alguns poucos a que
expressamente o tal perdão
não se estendia, em que entrava o Priol e seus filhos.
Tomou Lopo d'Almeida com tal cuidado o cerco e tomada de Beluer, que
por seus engenhos, forças e combates poz o castello e gente
d'elle em tanta necessidade e affronta, que conveiu ao alcaide, que se
chamava João Lopez de Nobrega, bom homem e
esforçado cavalleiro, depois de fazer muita resistencia, com
grande dano dos cercadores, concertar-se e entregar o castello com
segurança sua e dos cercados, tomando primeiro certos dias
de tregoa, em que como bom servidor pediu socorro ao Priol, e por lh'o
não poder dar, entregou por seu mandado o castello a XVII
dias de Dezembro de mil quatro centos e quarenta.
O capitão Alvaro Vaz a que o cerco da Amieira, como disse,
era encarregado, partiu de Lisboa por terra com sua gente d'armas e de
pé, que era muita e mui bem concertada, e assim com as
artilherias e provisões que para o cerco convinham, e todo
posto em mui segura e singular ordenança, fazendo-o assi
como homem que o vira e passara em outros reinos já muitas
vezes. E tambem folgou de o ordenar, assi por dar a entender n'este
pequeno cerco o que faria em outros maiores se lh'os encomendassem.
[139]
CAPITULO LXXI
Como El-Rei quiz vêr e viu o
capitão na ordenança de guerra em que vinha
Viera-se El-Rei a
Alemquer, porque Santarem onde estava,
começou de poerse mal de pestenensa; e posto que fosse de
tão pequena edade, porém bem inclinado de sua
propria natureza, que o provera de mui nobre e mui grande
coração,
desejou muito de vêr o capitão e sua gente na
ordenança de guerra em que vinham, e sentindo-lhe Alvaro
Gonçalvez d'Arayde, seu aio, este vivo argulho e desejo,
louvou-lh'o muito. E disse que era bem que cumprisse; mas por
não errar em seu serviço e estado, indo de
proposito vêr uma sua cousa tão pequena, seria bem
que como d'acerto fosse á caça, ao
campo d'entre a Castanheira e Villa-Nova, e que alli como de recontro
veria o capitão e a gente que então
havia de passar.
E a outro dia andando alli El-Rei com seus galgos e gaviães,
assomou o capitão, e sabendo
já que El-Rei o queria vêr, apurou ainda muito
mais sua
ordenança, e de sua pessoa com seus pages armados se
concertou em grande perfeição. Porque n'aquelle
auto
d'armas, por seu braço e por esperimentadas ardidezas
passadas, a elle n'este reino se dava muito louvor; e tanto que foi
atravez d'onde o El-Rei olhava, se apartou só da gente,
armado sobre uma facanea, e com grande alegria e desenvoltura se
lançou fóra
d'ella, e a pé foi beijar as mãos a El-Rei, e lhe
disse:
«Senhor, assi como eu sou o primeiro que vossa Senhoria
vê n'estes habitos, assi prazendo a Deus
não
[140]
serei eu
n'elles o segundo, em todo o que cumprir por vosso serviço e
por defensão de vossos
reinos.»
El-Rei folgou muito de o vêr, e com palavras e
contenenças lhe fez mais honra e mór acolhimento
do que de sua pouca edade se esperava, e assi se despediu o
capitão e seguiu sua viagem até á
Amieira, que logo cercou e combateu até que a tomou.
E n'este cerco não aconteceram cousas assignadas para
escrever; porém houve algumas cousas d'agoiro, que por sua
novidade tocarei brevemente. Porque na hora que ali aconteceram, porque
pareciam mui duvidosas, se tomaram d'ellas testemunhos publicos e mui
autorizados. Uma foi que em se acabando d'assentar o cerco, desceu
á vista de todos tres vezes uma aguia do céo
sobre um ninho de cegonha, que sobre as casas do Priol estava, e das
duas vezes levou dois cegonhos novos, e da terceira não
ficou o pae, que para a perdição do Priol e dos
filhos foi triste
prognostico. A outra foi que a pedra do primeiro tiro de polvora que
com um quartão se fez, deu por um escudo das armas do Priol
que estava sobre a porta da villa, e só sem outra quebradura
o desapegou das mãos de dois anjos que o tinham e o levou ao
chão em pedaços.
A outra foi que o segundo tiro que se fez matou um homem, sobre cujo
corpo estando já na egreja para se soterrar, deu outra vez o
terceiro tiro, e em um escano em que jazia o tornou a
espedaçar.
[141]
CAPITULO LXXII
Como a Rainha meteu de Castella gente d'armas n'estes reinos
para se bastecer, e do que fizeram
Sendo a Rainha e o
Priol atalhados para dos logares vizinhos
nem do reino já não haverem mantimentos, e assi
sentindo já o engano que de seus alliados em seu movimento
receberam, não ficou aberta outra porta
d'esperança, de soccorro e provisão
senão a de Castella. Pelo qual a peso de
suas joias e baixellas, mandaram para soldo vir ao Crato um D. Affonso
Anriquez, que estava em Castella na villa d'Alconchel, com
até sessenta de cavallo e cento homens de pé, com
os quaes, e com os do Crato antes de receberem mais impedimentos e
affrontas, trabalharam de por força se bastecer de trigo,
cevada, e gados pelos logares d'arredor, entre os quaes foi
Cabeça da Vide, que D. Affonso foi barrejar e roubar com
cento e LXXX de cavallo e duzentos de pé, e recolheu o
despojo ao Crato, sem haver no logar nem no caminho outra resistencia,
salvo a que os d'Alter do Chão lhe quizeram fazer, que por
não
serem cautelosos no auto da guerra foram tambem de D. Affonso
desbaratados, e alguns de uma parte e da outra mortos e muitos feridos,
com que todo o reino e principalmente os d'aquella comarca foram para
os do Crato mui indinados, e da Rainha mui descontentes.
O Infante D. Pedro constrangido e nojado d'estas entradas e correduras
que pelo reino assi soltamente se faziam, apressou por isso mais sua
partida. E acompanhado de muita gente que o veiu servir, partiu de
[142]
Santarem caminho d'Aviz,
onde com o Infante D. João e condes d'Ourem e d'Arrayollos
tinha concertado seu ajuntamento, para hi terem conselho sobre o que
fariam; porque o Infante D. Anrique era na Beira para a defender, como
se disse.
CAPITULO LXXIII
Da resposta que o Regente houve d'algumas cousas que com sua
embaixada enviou a Roma requerer
Em se o Regente
alongando em uns casaes, que se dizem o Couto, entre
Santarem e Aviz, chegaram a elle Ruy da Cunha, Priol de Santa Maria de
Guimarães, e o Provincial do Carmo D. João, Bispo
que depois foi de Ceuta e da Guarda, que vinham de Roma, onde foram
enviados por embaixadores ao Papa Eugenio; os quaes entre as outras
cousas que requereram e trouxeram concedidas, foi
vivae vocis oraculo a
despensação
para El-Rei poder casar com D. Isabel, filha maior do Infante D. Pedro.
E não veiu em escripto; porque a Rainha D. Lianor sentindo
que não podia fazer maior nojo, que em lhe estorvar este
casamento, trabalhou com El-Rei e Rainha de Castella, e com El-Rei
d'Aragão e de Napoles, e com El-Rei de Navarra, todos seus
irmãos, que por algumas razões que sem muito
fundamento allegaram, fizessem com o Papa que por alguma maneira
não outorgasse a despensação para o
dito casamento necessaria. O que elles todos fizeram por seus
embaixadores com muita instancia, e por tanto o Papa por não
desprezar a tantos e taes Reis, houve
então por bom expediente não outorgar a
despensação em
[143]
escripto por não ser
publica, e a concedeu aos embaixadores em secreto,
vivæ
vocis
oraculo, como disse, para o casamento se poder logo fazer, e
depois lh'a mandar por Bula patente, como mandou por Fernão
Lopez d'Azevedo, Commendador Mór de Christo, que
lá tornou por embaixador.
E assi trouxeram mais por Bulla expedida, em como o Papa isentou para
sempre as administrações de Tuy e
d'Olivença dos Bispados de Tuy e de Badalhouce, a que eram
em Castella d'antigamente sobgeitas, e assi houve o Mestrado d'Aviz
d'estes reinos por isento do Mestrado de Calatrava, e o Mestrado de
Santiago por isento da Ordem d'Ucrés, que são em
Castella, a cuja obediencia de primeiro fundamento eram obrigados. E
poz aos Reis de Castella silencio perpetuo, com estreitas censuras e
graves excommunhões, se mais o contrairo requeressem, como
até então sempre requereram. E certo esta
graça
estimou muito o Regente; porque sabia que em vida d'El-Rei D.
João seu padre, e d'El-Rei D. Duarte seu
irmão, com quanto isto sempre desejaram e requereram com
rasões e causas mui evidentes e sustanciaes, nunca os Papas
que n'aquelles tempos foram, em caso que lhes parecesse
razão, com receios d'agravos e
importunações dos Reis de Castella o ousaram
outorgar, e depois até agora sempre isso esteve e
está em pacifico effeito.
[144]
CAPITULO LXXIV
Como em se accordando o cêrco do Crato soube
o Regente que a Rainha D. Lianor era partida do Crato para Castella, e
como todavia seguiu, e do que se fez
Chegou o Regente a
Aviz, onde de muitas partes lhe accudiu muita gente,
para a qual com quanto no reino havia grande careza de mantimentos,
houve porém d'elles alli muita abastança. E sendo
certificado que o Infante D. João seria com elle bespora de
Natal, lhe leixou a villa para seu aposentamento. E na ribeira de Seda
se foi alojar no campo, onde os Infantes e conde d'Ourem e conde
d'Arrayollos, com outros senhores e fidalgos do conselho se viram. E
logo todos consultaram ácêrca do que fariam, em
que depois de muitos debates, finalmente se accordaram com o Infante D.
João, que disse:
«Que ante de tudo á Rainha por uma pessoa honrada
fosse primeiro pedido e requerido que se tornasse para suas terras, ou
para outro qualquer logar que ella quizesse não sendo
sospeito, com todalas
seguranças que ella pedisse, e que elles todos iriam por
ella e a serviriam e acatariam como ella merecia, por ser mulher e
madre de dois seus naturaes Reis e Senhores, e que se ella o quizesse
fazer, todo seu trabalho o houvessem n'isso por bem empregado; porque
com isso o menos ficaria por acabar, e que quando ella esto
não houvesse por bem, que então fossem cercar e
combater o Crato até o tomarem por força, ou como
melhor podessem, guardando
sempre qualquer casa ou torre em que a Rainha e a Infante
estivessem, por
[145]
acatamento e
reverença de sua real pessoa e estado, cá era
razão apagar-se logo aquella pequena
brasa; porque d'ella se não seguisse ao reino outro incendio
e dano maior.»
A Rainha como foi certificada que os Infantes determinavam ir cerca-la,
vendo que o conde de Barcellos e os outros fidalgos se escusavam de ir
por ella e a servir como ficaram, quizera-se logo partir do Crato para
Castella; mas foi aconselhada que por agravar mais seu caso
não o fizesse até os
Infantes serem já em caminho contra ella; porque
então
pareceria razão faze-lo; pois poderiam dizer que com temor
de a não prenderem ou deshonrarem o fazia, pelo qual tanto
que soube que elles moviam seu arraial da Ribeira de Seda contra o
Crato, ella na noite em que amanheceu dia de S. Thomás, que
vem a XXIX de Dezembro, de mil e quatrocentos e quarenta e um, se
partiu para Albuquerque, e foram principaes em sua companhia o Priol do
Crato e D. Affonso Anriquez, e D. Affonso, senhor de Cascaes, e D.
Fernando, seu filho, e alguns outros; porque a mais gente ficou no
castello do Crato com Gonçalo da Silveira e Vasco da
Silveira, filhos de Nuno Martins da Silveira, a que a guarda de todo
ficou encomendada. E estes acabaram depois em serviço da
Rainha suas vidas em Castella, e assi os ditos D. Affonso e D.
Fernando, e o Priol do Crato, que no Agosto seguinte falleceram em
Çamora.
Alguns moradores do Crato e principaes, comquanto alli estavam
sobjeitos ao Priol, eram porém servidores secretos do
Regente. E como sentiram a partida da Rainha, fizeram logo
dois avisos, um ao Regente do caso como passara, e outro a
Garcia Rodriguez de Siqueira,
Comendador Mór d'Aviz, que era
capitão em Alter, para que fosse logo como foi por
[146]
meio e engenho d'elles
cobrar a villa, e depois de se bem apoderar d'ella e a segurar com
fortes palanques do dano que os do castello lhe poderiam fazer, o
notificou logo aos Infantes, que acordaram enviar logo a
Gonçalo da Silveira, e a Vasco da Silveira, Vasco Martins de
Mello, por ser casado com uma sua irmã, filha tambem de Nuno
Martinz da Silveira, para que os aconselhasse como o tempo e
razão requeria e que sem mais resistencia entregassem o
castello. Mas Gonçallo da Silveira, sobre quem a
defensão principalmente pendia, se escusou da entrega, como
fidalgo em que pareceu que havia bondade, lealdade e
discrição, e o coração lhe
não fallecia.
Com este recado tornou Vasco Martinz aos Infantes, que não
leixaram de seguir seu caminho até serem sobre o logar;
porque receiaram que a Rainha com gente e mantimentos de Castella
bastecesse os logares, pois n'elles com essa esperança
leixava sua gente.
O conde d'Ourem com a gente de Lisboa se aposentou dentro na villa, e
os Infantes fóra em torno do castello, onde em chegando
fizeram publico alardo com toda a gente, em que se acharam doze mil
homens de peleja com muita artilharia, que logo foi assentada em
ordenança de combate, de que os mais do castello
tomáram grande desmaio; e porém ante d'algum
cometimento, o Regente mandou outra vez por o dito Vasco Martinz
requerer Gonçallo da Silveira que entregasse o
castello e se tornasse para El-Rei que lhe faria muita mercê,
e serviria seu officio d'escrivão da Puridade como o
fôra seu pae, e que seu irmão seria acrecentado
com outras abastanças
e razões, de que Gonçalo da Silveira algum tanto
vencido com prazer dos Infantes, tomou assento que o não
combatessem por X dias, dentro dos quaes se a
[147]
Rainha depois de ser requerida por
elle, lhe não desse soccorro e ajuda com que bem se podessem
defender que elle entregaria a fortaleza, e que se lh'o desse, que elle
aquelle trabalho e outro maior soffreria até,
morrer por seu serviço.
Foi logo a Rainha de todo esto avisada por Gonçalo Annes,
criado do Priol e alcaide do Crato, que como prudente messegeiro, lhe
disse mui largamente as difficuldades que havia na defensão
do castello, por ser tamanho e contra tal e tanta gente, e enfraquentou
muito com vivas razões a esperança que a Rainha
lhe dava, e tinha em uns oitocentos homens d'armas que a Rainha de
Castella sua irmã lhe mandara para isso offerecer,
dizendo-lhe «que estes não eram pagos nem juntos,
e estavam ainda em Castella por suas casas. E que por tantos favores de
pães, de que os Infantes seus irmãos
enganosamente a basteciam, não abastavam para tal tempo e
tamanha necessidade, e que em caso que esta gente e outra mais os
quizesse soccorrer, que pois não podia ser pelo
céo, menos seria pela terra em que por todalas partes havia
tanta e tão forte resistencia, que era impossivel ou
assignada sandice fazer-se.»
E emfim a Rainha com o Priol visto todo, accordaram que o castello se
entregasse, para que logo mandou Pero de Goes seu filho, que com
segurança dos castellos o leixou livre, e o Regente o
entregou logo ao Infante D. João, e deu em nome d'El-Rei o
Priorado do Crato a D. Anrique de Castro, filho de D. Fernando de
Castro, e depois a D. João d'Atayde, por cuja morte o houve
tambem D. Vasco d'Atayde seu irmão. E depois de
despedir com mercês e mui graciosas palavras aquellas pessoas
que n'esta jornada o vieram servir, e que por então
não houve
mester, se partiu caminho d'Abrantes, e com elle o conde
[148]
d'Ourem. E o Infante D.
João se tornou para a cidade d'Evora.
CAPITULO LXXV
Como
o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique se foram a
Lamego para passarem entre Doiro e Minho. E como o conde de Barcellos
se poz em defesa, e do que se n'isso passou
E ante de seu apartamento tiveram conselho sobre o que ao diante deviam
fazer, e accordaram que por quanto já se começara
d'entender contra os que eram reveis e desobedientes a seu Regimento,
que o Regente se fosse á Beira juntar-se com o Infante D.
Anrique, para que ambos pela melhor maneira que o tempo lh'o
offerecesse, assessegassem os desmandos e alvoroços em que
os fidalgos d'aquella comarca andavam. E assi soubessem logo se o conde
de Barcellos queria estar á sua obediencia e
ordenança como os outros, e se o contradissesse, que
procedessem contra elle de feito e direito, como sua contumacia
requeria, pois com ella dava causa a se fazer em muita parte do reino
muito mal, e pouca justiça.
Foi-se o Regente a Coimbra, e alli se refez da mais gente que
pôde, e posta em ordenança e com
esperança de guerra se foi a Vizeu, e alli no Couto se viu
com o Infante D. Anrique, que tambem para o caso estava de gente, armas
e mantimentos mui bem percebido, os quaes por assi sentirem que cumpria
se partiram logo para Lamego, onde chegaram com proposito de assi
poderosos passarem o Douro, e o Re
Foi-se o Regente a Coimbra, e alli se refez da mais gente que
pôde, e posta em ordenança e com
esperança de guerra se foi a Vizeu, e alli no Couto se viu
com o Infante D. Anrique, que tambem para o caso estava de gente, armas
e mantimentos mui bem percebido, os quaes por assi sentirem que cumpria
se partiram logo para Lamego, onde chegaram com proposito de assi
poderosos passarem o Douro, e o Regente usar inteiramente de seu
officio nas comarcas d'Entre Doiro e Minho, e Tras os Montes.
[149]
A Rainha por conselho do conde de Barcellos se partiu d'Albuquerque,
com fundamento de ir ao longo do estremo até
através da comarca de Tras os
Montes, para ir entrar em Portugal pelas terras d'Alvaro Pirez de
Tavora, onde o conde de Barcellos e os de sua opinião se
offereceram de a irem receber e servir. E de Ledesma a que chegou,
enviou seus messegeiros ao conde para saber sua
determinação e vontade, e
para lh'a fazer maior e mais forte, lhe enviou novos
esforços com esperança de grande honra e
acrecentamento seu; os quaes messegeiros foram a elle, que estava em
Guimarães ao tempo que os Infantes chegaram a Lamego, e
sendo de sua chegada d'elles certificado, e da maneira e
tenção com que iam, não
pôde dessimular a muita tristeza e grande cuidado que por
isso recebeu, e respondeu á Rainha escusando-se com coisas
necessarias, a não poder cumprir por
então seu requerimento, reprendendo com largas
razões o pouco cuidado que os Infantes d'Aragão
para sua restituição mostravam. E por se mostrar
forte aos
que de sua parte já sentia mui fracos, enviou dizer ao conde
d'Ourem seu filho, que dissesse como disse da sua parte ao Regente, que
escusasse passar o Douro, porque elle lh'o não havia de
consentir, de que o Infante mostrou grande sentimento, e com palavras e
contenença não livres de sanha, respondeu ao
conde por maneira, que sentindo elle como a honra e estado de seu pae
se despunha a grande perigo, pediu ao Regente por mercê que
sobre o caso não houvesse
por mal que elle mandasse um cavalleiro por messegeiro a seu pae, de
que ao Infante aprouve, e ainda com desejo de mais assessego o obrigava
que para isso elle não devia mandar alguem, mas ir em
pessoa. E porque Luiz Alvarez de Sousa, que ao conde foi sobr'isso
enviado, não lhe abrandou em nada sua
tenção,
[150]
tornou a
elle em pessoa o conde d'Ourem seu
filho, o qual como quer que com palavras de muito amor e
razões de grande efficacia lhe pedisse que se decesse de sua
opinião, pois o tempo e a razão
assi o queriam, nunca o pôde acabar, e assi assaz triste e
anojado tornou para o Regente sem alguma conclusão.
O conde de Barcellos moveu de Guimarães com
mostrança de ao Infante defender por força a
passagem. E assentou-se com sua gente em auto de guerra em Meisanfrio,
que é logar sobre o Douro duas leguas de Lamego. E mandou
alagar e metter de sob a agua todalas barcas e bateis do rio, pelo qual
o Infante aceso já em desejo de vingança para que
os
desprezos e porfia do conde o moviam, determinou logo de passar contra
elle, e para isso ordenou que no Douro sobre toneis se fizesse uma
ponte porque a gente e cavallos podessem em breve e mui seguramente
passar, e assi se fez prestes do mais que para rompimento e peleja
cumpria. As quaes cousas vendo o conde d'Ourem aparelhadas com tal
trigança para destruição de seu pae,
ajuntou comsigo para sua
ajuda alguns principaes, perante quem fallou ao Regente. E com palavras
de grande prudencia e muita piedade, e com outras de não
menos obrigação,
lhe pediu que sobrestivesse em sua passagem e lhe desse logar que
volvesse a seu pae; porque esperava de o tornar á sua
obediencia e serviço prouve d'isso
ao Infante, e lhe louvou muito a dôr e cuidado que para
remedio de seu pae a todos mostrava. Porque entre as outras virtudes
muitas que no Infante havia, esta era n'elle de grande
perfeição, ser para as
execuções de sua sanha mui temperado, e mui
ligeiro de mover por rogos e intercessões dos bons.
O conde d'Ourem foi logo a seu pae, e tão evidentes lhe
mostrou os erros de sua dureza e os principios
[151]
que se ordenavam para sua
quéda, que vencido do evidente perigo que via, mais que de
sua propria vontade, lhe prouve vir como veiu a Lamego falar aos
Infantes. Os quaes como souberam de sua vinda sahiram a recebe-lo
fóra da cidade acompanhados de muita e mui nobre gente.
E posto que entre o conde e o Regente havia odios mui verdadeiros,
porém n'aquella hora que se viram houve entre elles palavras
fingidas de tanto amor e cortezia, e se abraçavam a cada
passo com tanta alegria, que pareceu que um não estimava nem
desejava mais bem que a vista do outro, sem alguma lembrança
de roturas passadas, e nas contenenças do povo que os assi
viam, bem parecia que todos haviam d'isso grande prazer.
Era hi presente o Arcebispo de Braga D. Fernando, que com vozes altas
começou de cantar o principio do salmo
Ecce quam
bonum & quam jucundum
habitare fratres in unum; como a quem parecia que na
concordia d'estes Senhores se segurava de todo a paz e
descanço do Reino. Os quaes como foram na cidade fallaram
entre si suas cousas, e assi nos desvairos passados, e o Regente
recebeu com bem na cara as desculpas do conde, que ficou de todo
á sua obediencia, approvando em todo o seu Regimento, e
prometteu de mais não servir nem seguir a Rainha, salvo
n'aquellas cousas em que os mesmos Infantes a servissem, e assi
concludiram que o casamento d'El-Rei de necessidade se fizesse logo com
a filha do Infante, ao menos com recebimento simples; porque ao tomar
de sua casa, se fariam depois suas festas solenes e reaes, como a sua
honra e estado cumpria. E assi prouve ao Regente a requerimento do
conde que seu cunhado D. Pedro, o Arcebispo de Lisboa, que andava em
Castella desterrado, fosse como foi á sua dinidade
restituido,
[152]
e lhe outorgou para
si e para os seus outras muitas graças e mercês, a
que depois seu
agardecimento não respondeu com egual balança.
E concordado assi todo se despediram uns dos outros: o Regente e o
conde d'Ourem para Lisboa, e o Infante D. Anrique para suas terras, e o
conde de Barcellos tornou-se d'onde viera; e isto foi no fim de
Fevereiro do anno de mil e quatrocentos e quarenta e um.
CAPITULO LXXVI
Das côrtes que se fizeram sobre o casamento
d'El-Rei com a Rainha D. Isabel, filha do Infante D. Pedro
Como o Regente foi em
Lisboa logo ordenou côrtes, que com
solene ordenança de cidades e villas, e pessoas principaes
do reino se fizeram em Torres Vedras, onde além d'outras
muitas cousas, em que por bem da Republica se entendeu, o Infante D.
Pedro com fundamentos passados da vontade d'El-Rei D. Duarte, e com a
necessidade presente que disse, com muita autoridade e eficacia
requereu aos do reino outorga e consentimento para El-Rei seu Senhor
casar com sua filha, e o povo por conhecer ser verdade o que apontava,
e que em christãos não havia por então
mulher com que El-Rei
tão bem podesse casar como a seu estado e honra cumpria, e
assi movidos da humanidade e resguardo com que o pediu, não
sómente foram d'isso todos
contentes, mas ainda para quando embora tomasse sua casa lh'offereceram
um rico presente. Pelo qual o Infante se foi a Obidos, onde era El-Rei,
e alli em dia da Ascensão, á tarde, no anno de
mil e quatrocentos
e
[153]
quarenta e um,
á vista de todos se celebraram os esposoiros entre El-Rei e
a Rainha, nas mãos de um Daião d'Evora que servia
El-Rei de seu fisico, entrando El-Rei em edade de dez annos. E como os
procuradores do povo acabaram de ser respondidos a seus capitulos e
requerimentos, se despediram.
CAPITULO LXXVII
Como
o Regente por meio do conde de Barcellos procurou
de se concordar com a Rainha D. Lianor, e das cousas por que ella
não quiz
O Infante D. Pedro de se assi concordar com o conde de Barcellos
mostrou que recebia prazer e descanso, crendo que para tranquillidade
do reino que procurava, tinha a mais aspera difficuldade passada. E
para temperar e vencer a outra da Rainha que sobre tudo desejava, ante
de partir de Lamego fallou com o conde seu irmão, e lhe
pediu que para ambos se concordarem, como sempre desejara, quizesse
entre a Rainha e elle ser medeaneiro; porque elle tinha
razão de n'isso a servir, e ella de o querer.
Mostrou o conde que d'isso lhe prazia muito, e enviou logo a ella que
era já em Madagal, Alvaro Pirez de Tavora, de que muito
fiava, encommendando-lhe muito com razões e causas mui
evidentes o concerto da Rainha com o Infante, e assi sua desculpa pela
não servir na fórma que com ella tinha assentado.
A Rainha não ouviu esta embaixada com boa vontade, nem a
acceitou como se confiava. Assi por haver já por suspeito o
conde, pela concordia feita entre
[154]
elle e o Regente, em que Alvaro
Pirez tambem entrara; como porque lhe parecia, segundo os Infantes seus
irmãos estavam então apoderados de Castella e
Aragão e Navarra, que com as gentes e poder d'estes reinos
apremariam e guerreariam o Regente por maneira que de necessidade lhe
conviesse leixar a ella livremente o Regimento, como requeria e
desejava. E este esforço e presunção
tomava ella
porque n'este tempo os Infantes seus irmãos e o Principe D.
Anrique, com odio que tinham ao conde e Condestabre se concordaram e
cercaram El-Rei em Medina del Campo, e o entraram por força,
e recolheram sua pessoa d'El-Rei a seu poder, e lançaram
fóra fugidos e
destroçados o Condestabre e o Mestre d'Alcantara, e outros
que eram dentro em ajuda e defensão d'El-Rei. E n'esta
sombra de prosperidade em que a Rainha via seus irmãos em
Castella, tomou tanta confiança
para seu recurso, que não quiz haver por bom nenhum meio que
de Portugal sem o Regimento e criação d'El-Rei
lhe fosse cometido. Antes para mais apressar sua
destruição e proveza, foi como não
devia aconselhada, que para em seu caso obrigar mais seus
irmãos, quando os fosse vêr devia levar e dar-lhe
para sua ajuda alguma gente d'armas, de que em suas revoltas tinham a
necessidade que sabiam, o que á Rainha pareceu bem, e para
prover aos seus e a outros que para isso tomou, de cavallo armas e
soldo, vendeu e apenhou a mór parte de quanta prata e joias
tinha. E camanho erro n'isso fez, ella em suas minguas sem longa
tardança o sentiu, porque finalmente o amparo e soccorro que
em suas fadigas houve de seus irmãos, com quanto eram
tamanhos Senhores, se tornou sómente em fortunas dobradas, e
claros enganos em que a trouxeram, e com que acabaram de lhe levar todo
o que para repairo seu e dos seus lhe ficava.
[155]
CAPITULO LXXVIII
Como a Rainha D. Lianor se foi á
côrte d'El-Rei de Castella, e das embaixadas que vieram a
Portugal
A Rainha n'esta enganosa confiança de sua certa
restituição se foi á côrte
d'El-Rei de Castella, a que os Infantes d'Aragão
então governavam de todo; dos quaes logo em sua chegada foi
com muita honra e acatamento recebida e agasalhada. Onde depois de em
pessoa recontar suas querellas e aggravos, com mais graveza por ventura
do que foram em effeito, El-Rei por satisfazer a ella e cumprir a
vontade dos Infantes, enviou ao Infante D. Pedro uma e muitas vezes mui
continuas embaixadas, umas brandas e outras com aspereza, umas
mostrando desejar paz, e outras mais desafiando guerra, apontando
sempre taes meios em favor e contentamento da Rainha, que a sem
razão e o desserviço d'El-Rei de
Portugal e o dano do seu reino, que claramente comsigo traziam,
conselhavam que se não acceitassem;
especialmente porque em todos se requeria que a
criação d'El-Rei e do Principe seu
irmão e irmãs fosse
á desposição da Rainha, ou ao menos em
poder de dois cavalleiros, quaes a ella prouvesse, que fossem de todo
isentos da juridição e mandado do Infante, o
que o reino todo por causas mui evidentes e necessarias sempre
contrariou, e muito mais o Regente, que mostrava haver por singular
bem-aventurança e grande repouso para si e para seus filhos
o amor d'El-Rei, de que tinha certa esperança, pois com
tanto amor e perfeição o criava, e de que seria
desesperado se
fóra
[156]
de seu
poder, e com seu odio e de muitos outros o criassem.
E porém sempre lhe prouve, e assi o respondia, que
á Rainha tornando-se a estes reinos fossem inteiramente
dadas todalas terras e renda que n'elles tinha, com a
criação de seus filhos livremente. Ainda que em
umas côrtes que n'este anno de mil e quatrocentos e quarenta
e dois em Evora se fizeram, foi por todolos tres estados requerido e
concordado que a Rainha devia por direito ser de todo privada, e que
principalmente não devia vir a estes Reinos, assi pela gente
estrangeira que como imiga n'elles metera e os guerreara, como pelos
grandes trabalhos e muitas despezas que com receio de guerra tinham por
sua causa padecido, em especial se houve por mui perigoso inconveniente
o odio e má vontade que aos principaes do reino
já tinha, de que se esperava ella com El-Rei seu filho
procurar sempre destruições e cruas
vinganças, que a muita lealdade de seus vassallos lhe
não mereciam.
Os Infantes d'Aragão confiados no mando da
governança de Castella que possuiam, havendo por seu
abatimento não se
fazerem os feitos da Rainha sua irmã á
sua vontade, enviaram ao Regente que era
em Santarem outra embaixada, que elles fingiam ser
já
derradeira, em que vieram por embaixadores um Gomez de Benavides, e
outro Affonso Fernandes de Ledesma, doutor em leis, e pessoas de grande
estima e auctoridade em Castella; estes em seus apontamentos seguiram
os passados dos outros. Trazendo logo comsigo arautos e trombetas, como
officiaes de desafio real, para que se ás cousas tocantes
á Rainha
não respondessem conformes a seu requerimento, que
solemnemente desafiassem logo a guerra de reino a reino. A qual
publicavam mui soltamente, crendo que
[157]
com medo d'ella este reino
ácerca do Regimento se mudara de seu primeiro proposito.
E estando estes embaixadores ainda por responder, veiu com uma carta da
mão d'El-Rei para o Regente, um Custodio, da Ordem de S.
Francisco de Castella, e com o trellado d'ella aos embaixadores, em que
sustancialmente affirmava o que elles mesmos já requereram.
Apontando as cousas porque devia com rasão favorecer e
ajudar a Rainha. E que por ellas sem quebrantamento das pazes podia a
estes reinos justamente fazer guerra.
CAPITULO LXXIX
De como o Regente sobre a resposta que a estas
embaixadas se daria, fez côrtes geraes
Estes accidentes
tão apressados pozeram o Infante D. Pedro
em muito cuidado; porque eram taes, que de necessidade ou teria guerra,
ou por fraco perderia toda sua honra e estima; porque por isto foi
certificado que ao povo de Castella em ajuntamento de côrtes
prouve por industria dos Infantes que para
restituição da Rainha se fizesse
guerra a estes reinos, e para isso se fizessem
apurações e
lançassem pedidos, que se logo lançaram.
E porém o Infante disse aos embaixadores que os casos de seu
requerimento eram de calidade, a que se não podia dar
direita resposta sem accordo de todo o reino, e portanto lhes rogava
que tivessem assi até se fazerem côrtes, onde
elles tornariam a ser ouvidos e respondidos, como a todos bem
parecesse.
Os embaixadores foram d'isto mui contentes; porque
[158]
viram levemente o
effeito do
principal
fundamento e desejo que traziam, que era por semearem temor divulgar-se
sua embaixada por todo o reino.
Assignou o Regente as côrtes na cidade d'Evora, onde por suas
cartas mandou que os procuradores do povo se juntassem no Janeiro do
anno que começava, de mil e quatro centos e quarenta e dois.
Notificando-lhe logo a sustancia e causa de sua vinda; e porque lhe
parecia que a guerra se não poderia escusar, e
não fossem com algum improviso dano salteados por
negligencia, determinou que os Infantes a que tambem escreveu, fossem
logo ás frontarias de suas comarcas, e provessem todalas
fortalezas da raia e as fizessem velar, armar, bastecer e repairar,
como para tal necessidade cumpria se sobreviesse, e assim mandassem
arredar os gados e provisões dos estremos. E defender os
mercadores que não entrassem em Castella; e assi se cumpriu
e se poz em todo o reino tanto resguardo, como se a guerra
fôra claramente rota, e aos Infantes e grandes e pessoas
principaes do conselho que não podiam vir a ser presentes,
enviou a sustancia de toda a embaixada, e a cada um ácerca
do que responderia pediu seu conselho e parecer em escripto, como
sempre costumou.
Partiu-se o Regente para Evora, e assi os embaixadores, e ao dia que
tinha posto foram juntos os procuradores, onde o Infante por si lhes
propoz com largo recontamento a necessidade que o movera aos chamar, e
assi lhes apresentou a embaixada presente, resumindo as outras passadas
da mesma sustancia, cuja conclusão era que El-Rei de
Castella requeria que por bem e paz d'este reino, El-Rei e seus
irmãos fossem entregues á Rainha, com inteira
governança
do reino, se não com força e por guerra de
Castella
se faria, rogando-lhe que sobre todo consirassem, e
[159]
como bons portuguezes e leaes vassallos
d'El-Rei lhe dissessem o que devia dizer e fazer; havendo sempre
respeito ao que mais fosse serviço de Deus e honra d'El-Rei
e bem de seus reinos. Apontando a necessidade que havia de dinheiro,
para que sua ajuda cumpria.
E leixando alguns rumores e alvoroços que em continente logo
houve, e muitos dos que sem aquella consiração e
resguardo que deviam bradavam por guerra e a requeriam, finalmente os
procuradores recolhidos em seu consistorio e praticando com muita
madureza o caso, tornaram ao Regente seu parecer, que sustancialmente
foi todo remetido a seu juizo, por todo confiarem de sua lealdade,
siso, e esforço, e para as necessidades que occorriam
outorgaram tres pedidos.
E conformando-se o Regente com o parecer dos procuradores e assi com as
respostas que em escripto houve dos ausentes, deu em nome de El-Rei
resposta aos embaixadores, escusando-se por muitas causas a
não dever cumprir, nem haver por bem o que requeriam, e que
assi era dos do reino aconselhado, e que se por isso El-Rei de Castella
quizesse mover guerra contra estes reinos, que lhe pesaria muito por
ser entre christãos tão conjunctos em sangue e
amigos. Porém quando tão sem razão a
movesse,
e como imigo quizesse n'elles entrar, fosse certo que a contenda
não duraria muito; porque no campo o havia de receber e
não o esperar de trás das paredes. E que
esperava em Deus pois era justo, que na victoria o faria tão
herdeiro, como fizera a El-Rei D. João, de cujos lombos
sahira.
Com esta resposta despediu os embaixadores de Castella, que com todas
suas ameaças passadas não
publicaram a guerra como mostravam.
FIM DO I VOLUME